Quando me convidaram pra falar alguma coisa no debate que ia rolar na ESPM sobre feminismo, a violência contra a mulher e o abuso da mídia (mais informações no post anterior), achei que ia estar em casa. Fiquei revirando minhas memórias de mais de 15 anos em ativismo humanista pra buscar uma forma simples e sintética de falar de um caminhão de coisas que o tema “feminismo” sugere. Eu, particularmente, sempre penso na não-violência num campo mais abrangente, mas sei que às vezes as “lutas” tem que tomar formas mais recortadas para melhor representar problemas específicos de violência: sejam eles de desigualdade social, sem-terra, sem-teto, violência contra homossexuais, contra mulher, violências raciais e tantas variedades no cardápio de horror que vivemos nessa era de luz e sombra.
Alguns dias antes da conversa, comecei a perceber uma criação de borboletas no meu estômago. Não entendi a razão desse sentimento. Será que eu estava nervosa? Era estranho. A coisa foi piorando até chegar no dia do debate, quando eu já acordei com trombetas na cabeça. Além disso, havia dois fatores intensificadores de sensibilidade: o estado de gravidez (que normalmente me faz ficar entre-mundos) e as reverberações de uma vivência que experimentei durante o último final de semana baseada em ensinamentos do profundo feminino. Ou seja, eu era tudo menos um cabeção. Era um nervo exposto e um coração em taquicardia.
Ao entrar no auditório, a intensidade desse sentimento cresceu. Era, pra mim, um lugar conhecido, com muitos rostos conhecidos, mas a sensação era estrangeira. O local estava cheio, na grande maioria, por alunos. De “fora” , apenas uma convidada, a blogueira Nádia Lapa, que escreve sobre feminismo e liberação feminina, e eu, que também era meio de dentro: Por estar bastante próxima do coletivo que iniciou a discussão, fui convidada a abrir o bate-papo, não apenas por ser professora da casa e ex-aluna, mas por ter feito parte, há 20 anos, do grupo que fundou a TV Pixel, um dos temas da discussão. Fiquei honrada com o convite, mas não sabia a intensidade da questão até aquele momento em que entrei no auditório com as tais borboletas batendo asas em frequência máxima.
“Vou fazer o que dá”, pensei, já me degladiando com meu ego-militante-fascista que me exigia nada menos que a perfeição (sobre esse senhor falarei mais tarde). Quando a coisa começou, minha voz parecia uma gelatina. E uma pergunta começou a palpitar na minha cabeça: Por que estava tão difícil falar? Por que essa sensação de estar falando baleiês? Mas fui tocando em frente. Já adianto que sou uma pessoa bem venusiana e tenho terror de conflito. Terror. Não acho que isso seja virtude, é praticamente um preconceito. Então quando me percebi numa arena armada, vi o tamanho da encrenca: estava muito longe da minha zona de conforto.
A conversa seguiu com outras apresentações, e quando eu parei de falar, fiz o árduo exercício do silêncio e da observação. Minha vontade era falar por horas, mas muita gente precisava também se colocar, e eu precisava entender – ou sentir – o que estava acontecendo. Havia algo se materializando no subterrâneo do auditório. ” Por que está tão difícil falar?” acabou virando, na minha mente, “por que está tão difícil?” E quando a forma da conversa passou da apresentação pro debate, quando as pessoas começaram a tomar a palavra, percebi que a dificuldade de falar não era só minha, mas de todo mundo que colocava (ou não) as mãos no microfone. Era uma densidade impressionante o que eu sentia, um estado de confusão latente, anos e anos de opressão eclodindo em tentativas de conter em simples palavras sentimentos contraditórios e antigos. Por que está tão difícil, por que está tão difícil?.. E de repente, sapatos começaram a voar pela platéia, e logo depois eram bolsas. E então eu percebi, num rapto, que não estávamos falando só de um video, só de festas universitárias, de passadas de mão, era um negócio mais antigo. Era uma ferida profunda, muito doída, séculos e séculos de opressão, tudo encolhido numa palavrinha de sete letras: estupro. Pronto, aí eu vi: abrimos esse portal. Agora vamos ter que aguentar isso aqui… Agora vou ter que sentir as feridas de minha história pessoal, de todas as mulheres oprimidas da minha ancestralidade, da origem do meu próprio país. Não era só eu, era toda uma linhagem, que em última instância abarcava a humanidade inteira.
De volta do rapto, percebi que voavam línguas. E a discussão foi para o conceitual, para as terminologias, para os “ismos” e o problema dos “ismos”. Uma fuga, seria? Vamos pro racional conceituar porque é o termo é confuso ou porque é insuportável ficar no corpo e lidar com essa dor coletiva? Uma dor que tem nas mulheres suas maiores representantes, mas que também atinge todos os homens, é claro. A dor existencial é a mais igualitária de todas. E havia um grau de contrariedade e violência, de resistência, uma outra coisa que eu tentava entender ali. Por que tanta dificuldade em aceitar o direito humano a suas próprias escolhas? Nos meus anos de ativismo, só tinha visto esse estado de tensão e patrulha em movimentos que tratavam de uma polêmica em especial: o direito à propriedade privada.
Então, tóin. Um gongo.
Entendi.
Da mesma forma que é tão difícil abrir mão do direito irrevogável (e ilusório) à propriedade da terra, de um pedaço de um planeta boiando num mar de estrelas e infinitos universos assegurado por um pedaço de papel registrado em cartório, assim era com o corpo. No momento em cada um reivindica o direito de ” dar pra quem quiser”, oficializa-se o fato de que “isso não é do outro por direito”. (Aliás, se alguém desse mesmo sairia da transa sem corpo. O que às vezes acaba acontecendo simbolicamente. Na verdade, se a coisa rola gostoso, a gente compartilha). Então vi que esse “direito tácito ao corpo humano alheio”, em especial o da mulher, (talvez por ser tão parecido ao corpo do planeta) é o que faz parecer que esses corpos estão à disposição para uso e abuso de quem assim queira. Ao ter esse “direito” negado, há, é claro, resistência. Então percebi que estávamos discutindo o direito à propriedade. Ou a confusão sobre o que é propriedade.
Novo rapto. Então vi o que é nascer. Chegar a esse mundo tão só, e ter como consolo um seio jorrando leite. E ter a plenitude da vida pulsando no planeta. Sim, a vida é plena e generosa, e caminhamos para uma autonomia. Primeiro aprendemos a extrair o ar por conta própria, e não por um cordão. Depois, aos poucos, substituímos a nutrição no corpo da mãe pela nutrição cedida pelo corpo da Terra. E a Terra é farta, especialmente no país onde vivemos, cheio de água, de árvores, de terra. Não precisaríamos tomar nada, só colher o que nos é dado de bom grado, agradecer, e também CUIDAR, e DEVOLVER. Muitas sociedades entenderam isso, e por isso havia tantos ritos de gratidão, reverência e fertilidade. Ao agradecer, tomamos consciência de nossa dádiva, e nos tornamos felizes por estar sendo cuidados. E assim, embalados por essa graça, também cuidamos. É essa a troca. E nosso querido Brasil era pleno dessa dádiva, e não é à toa que se tornou o Eldorado para quem, já refugiado de guerras, escassez e violência, aqui aportou há alguns séculos.
Mas quem chegou, não veio criança. Já havia perdido sua conexão, sua CONFIANÇA na plenitude e no amor. Chegaram pedaços de homens, e por isso fizeram em pedaços a natureza que aqui vivia. A dor do abandono, do auto-abandono, que nos leva a querer tomar do outro esse amor não recebido. Porque cortamos o canal, porque a abundância vem da mesma fonte onde também damos ao mundo alguma coisa. Mas na nossa ferida, nos sentimos vazios, e vamos talhando do mundo o que nos falta, manipulando, oprimindo, e reclamando o direito quando ele nos é ” negado”. E todos nós, homens e mulheres, somos assim. E compensamos esse vazio tentando pegar do outro o que, em nosso delírio, pensamos não ter. E também fazemos isso com nós mesmos, viramos um servo desses infinitos desejos sem saciedade, das ordens daquele senhor que nos manda fazer isso ou aquilo, ser isso ou aquilo, de provar que somos importantes, de provar que somos melhores, que existimos, e viramos adictos de algo que pelamordedeus acabe de vez com essa dor de estar vivo,
e sozinho.
Porque perdemos a conexão e a confiança na bondade e na abundância.
Então, possuímos. Fazemos do planeta, do outro e de nosso próprio corpo uma prótese bidimensional dos desejos desse tirano – ou tirana – que essa dor cultivou. Ficamos cegos à tridimensionalidade, à subjetividade do outro. Somos os bárbaros saqueadores, somos as terríveis manipuladoras (quem já viu a animação Kiriku e a Feiticeira?), somos almas rasgadas por espinhos cobrando do mundo e de outros um remédio contra essa ferida. Se não recebemos, vamos pegar por roubo. Ou, no mínimo, passar a mão na bunda.
…”E passaram a mão na bunda da minha amiga”,
e aí retornei do transe durante um relato pessoal ocorrido em uma festa da ESPM. E já não voavam tantos sapatos, e algumas pessoas colocaram algumas histórias pessoais na roda. E alguns pedidos de desculpa aconteceram. E eu percebi que todo aquele barraco tinha sido também necessário, o circo precisou pegar fogo pra limpar um mínimo de feridas. Porque tem coisa que a gente limpa com a água, e tem coisa que só o fogo transmuta. E por mais difícil que tenha sido, cada um teve um papel importante, seja na lucidez ou na confusão, para mover a carga de energia que foi mexida naquele auditório.
Do começo àquele momento, haviam se passado 3 horas. Oficialmente, houve um fim, mas quando eu saí de lá uma grande quantidade de pessoas ainda conversava, e seguiu conversando nos bares. Pessoalmente, eu segui o debate nas horas seguintes, com a cabeça física no travesseiro e a mente vivendo outras grandes discussões em sonhos. Acordei numa ressaca incrível. Fui meditar, fazer tai chi, qualquer coisa que me trouxesse de volta ao meu corpo, e então chorei, chorei, chorei. Não de tristeza, nem sei dizer que sentimento movia aquelas águas. Só sabia era o tempo de recolher e aprender. De ouvir de mim o que ficou daquilo tudo.
E percebi, agradecida, que depois de tanto tempo de ativismo, o que eu vivi foi uma experiência nova.
Difícil, mas nova. E viva.
Bonito este blog novo… é sempre um prazer embarcar na tua prosa, Claudinha. Bjs virtuais, Lívia.
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Agora eu entendi o porque de voce querer esperar pra compartilhar com a gente isso tudo. Você leu nossos corações – e estomagos. Obrigada, Claudinha.
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Querida irmã.Que lindo forte e firme suas palavras na exposição da vida.Parabéns por tudo, pela graça e pela força do Ser que tu ès Muito amor pra vc e sua linda familia.Saudades Bjos no coração
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amor eterno a vocês
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