Peça curta apresentada no evento Satyrianas-2008
Sinopse:
Uma carta de uma amiga a um amigo que tentou o suicídio.
Uma pessoa (homem ou mulher*) cercada por comprimidos. Nas mãos, um pacote de presente.
Olha para o pacote por um tempo, até que resolve abri-lo. Retira dele um cristal de rocha bruto e uma carta.
Deixa o cristal no chão e pega a carta com certo desânimo. Finalmente, depois de um tempo, resolve ler.
* para facilitar a fluência do texto, nessa versão o personagem será uma mulher.
MULHER
Querida amiga,
(por que todas as cartas começam assim? Que falta de imaginação…)
Querida amiga,
Há tempos, por dolorosas experiências, aprendi que não tem como falar de sentimentos. Quer dizer, a gente pode até falar, mas passar o que se sente é outra coisa. Isso acontece, e quando acontece, só por ressonância, então só o que podemos fazer é vibrar. Então vibro essa carta, esperando que ela reverbere no seu vácuo. Talvez ainda exista uma partícula de alguma coisa que possa conduzir o dentro de mim para dentro de você.
São épocas difíceis, não? Talvez, por isso, um cristal.
Mulher olha em direção à pedra jogada no chão. A partir de agora, a carta não mais é “lida”, ela a cita como se já a soubesse.Sua postura varia entre o ceticismo e a fé.
MULHER
Desde pequena, pego pedras no chão. Ninguém conseguia entender por que uma criança ficava horas a fio alinhando minerais, mas era um prazer enorme encontrar pedras redondas, umas até transparentes, num tanque de areia de praça.
Um dia, aconteceu uma coisa mágica. Estava passando férias na fazenda do meu avô, e fui com meus primos para um lugar diferente, perto de um riozinho que brotava no meio de árvores. Lá a terra brilhava. Pedras lindas saltavam como presentes. Várias eram totalmente transparentes, com pontas lapidadas. Encontrei meu tesouro secreto. Você pode imaginar o que foi isso para uma criança? Pedras coloridas e brilhantes brotando da terra, acessíveis às minhas mãos que cavavam o solo. Foi a confirmação do mistério: a concretude da magia.
Observe um cristal. Milhares de microformações, alguns tem desenhos, outros tem arco-íris. São os senhores do tempo, banalizados nos relógios. A glândula pineal também tem cristais, descobri isso outro dia. Há quem diga que eles sejam guardiões das informações relevantes pelos séculos a fio, há quem percorra neles infinitos caminhos. Há quem pendure no pescoço porque a pedra brilha e reflete a luz. É estranha essa natureza dos seres vivos que parecem inanimados, em que uma mesma coisa pode ser uma pedra enterrada na terra ou um portal pra outros mundos.
Nesse caso, essa pedra que você segura nas mãos é um presente. É uma daquelas guardadas no meu tesouro de infância, daquelas que eu tirei das terras do meu avô, terras que antes eram de outro, até que, voltando mais, eram terras da Terra, e só. Esses cristais são do tempo sem ilusões das cercas ou de propriedade. Eles também me contaram isso: não eram meus. Então tecnicamente não estou dando nada a você, estou só passando aos seus cuidados. Porque esqueci de dizer, tudo o que é vivo pode morrer se a gente não cuida. Uma pedra também pode morrer, mesmo durando séculos. Você já viu uma pedra com alma longe? Fica com os olhos opacos. É difícil encontrar os olhos das pedras, ficam bem no meio delas. Só procurando bem de perto dá pra enxergar. E quando você consegue ver os olhos das pedras, vê refletido os seus. Os nossos cílios ficam enormes, parecem teias, é uma coisa engraçada de ver.
Esses olhos foram, para mim, uma espécie de cura. Não aquele tipo de cura atribuída aos cristais, mas a cura da fé no sagrado. Algo que, em mim, foi tomado, ou foi perdido, há um tempo que não consigo prever, nem ver. Lembro de uma discussão com um primo que me trouxe a revelação do engodo: Papai Noel não existe. Lembro da minha eficiência em defender minha crença, da raiva daquele herege que testava minha fé no mundo invisível, da fúria e da ânsia em segurar um tesouro que parecia escoar pelos dedos a cada palavra maldita, a simples verdade revelada. Verdade? Não sei se foi aí, ou antes, talvez, mas algo trincou. Dessa trinca surgiu um vácuo que me puxou pra um outro lado, e foi criado um véu transparente, mas intransponível, separando o mundo onde até então eu vivia e um outro, muito parecido, mas faltando alguma coisa invisível. Nessa nova morada, a magia do mundo era só fantasia, e fantasia era só uma palavra para definir o que não existe de verdade. Um objeto era só um objeto e o que não se vê não existe.
Eu vejo a pedra. Ela existe. Um belo pedaço de mineral.
Foi humilhante essa separação. É humilhante crer tanto, com tanta devoção e entrega, e se sentir lesado. Sabe qual é a vontade? Dormir para sempre, até que alguém te acorde desse pesadelo do real. É isso o que você sente? Essa vontade de dormir para sempre? De voar de vota para o outro lado?
Porque do outro lado do véu o mago tornou-se o mágico. Sabe, aqueles que enganam a gente, na televisão ou ao vivo? Mesmo que ele não revele seu truque, sabemos que é de mentira. Fingimos nos deliciar com esse truque com a esperança daquele ser um mago disfarçado. Um Merlin escondido nessa época de descrença, esperando para se revelar ao mundo. Esperei por um truque não revelado pela ciência, pelos que sabem da verdade das coisas, pelos que se ocupam em tirar véus.
Mas aquele véu eu mesma tinha colocado, e ele parecia intransponível.
Por que eu não conseguia mais atravessar? Era mais fácil viver desse jeito? E o que eu podia fazer com a crença sem dono que ficou em algum lugar aqui dentro? Um ímã buscando algo a se conectar, buscando um complemento, um novo eixo central. Nunca mais, um buraco negro dizia. Nunca mais com os dois pés, com o peito aberto. A ferida ainda sangrava, e não só no peito, mas nas costas. As asas dos anjos foram arrancadas de súbito, e voar virou coisa da imaginação. Coisa de só um sonho.
Só um sonho.
Mas eu voava em um avião. Foi, realmente, uma infância engraçada. Voava em um teco-teco, um aviãozinho que parecia um fusca de asas, que decolava do aeroclube da minha antiga cidade. Eu ia lá com meu pai, porque ele também tinha o sonho de voar pelos ares, mas ele era médico, e não tinha tempo para tirar os pés do chão. Então às vezes ele roubava um tempo do seu descanso de domingo e chamava a gente pra voar com ele, mas quem pilotava era outra pessoa. Era um amigo de meu pai que resolveu que ia decolar de qualquer jeito e precisava cumprir horas de vôo para ser piloto. Então, enquanto algumas crianças iam brincar nas areias dos parques, eu brincava entre as nuvens. Ia sentada no banco de trás olhando o céu lá de cima. Lembro – e lembro mesmo, porque ninguém viu e só eu sei dessa história – de dar adeus aos anões da Branca de Neve que eu fingia ver lá em cima. Lembro de já não acreditar na existência deles, eu já vivia do lado de cá do véu. Então meu aceno não era um adeus, era um chamado, um pedido por algo que se apresentasse e provasse que minha falta de fé não tinha fundamento. Mas eram apenas nuvens, e seguiram sendo. Nem eram tão concretas e fofas, porque eram feitas de vapor, mas eram visíveis.
A pedra é uma pedra, bem palpável. Eu podia olhar entre elas e ver cores. Será que essa que eu te dei tem arco-íris?
O mais engraçado é que o mundo invisível não existia mais para as minhas fantasias, mas era muito real para os meus medos. Por que ele só existia para as coisas ruins? Uma guerra nuclear era tão impalpável quanto uma fada, mas a guerra nuclear eu sentia, como um animal à espreita. Como se pode sentir algo que não existe? O sentimento não é concreto?
Depois, mais tarde, eu senti o amor. O amor também não era palpável, nem ruim, e eu senti. Será que eu sentia porque ele se vestia de alguém? Alguém sentível?
O cristal eu sinto na pele. Apertando contra a mão, ele até machuca. Por que a gente precisa se machucar pra sentir? Nem precisaria, se a gente conseguisse ficar só no sutil. Mas a densidade das coisas prova a sua existência no mundo concreto.
A delicadeza é concreta, e é sutil. Ela existe?
Outro dia, de repente e durante um sonho, eu consegui cruzar aquele véu. Dei de cara comigo mesma, muito pequena, mas forte, e sorrindo. Estava à noite em uma clareira, e era frio. E lá estava uma menininha em frente a uma pequena fogueira. Ela não tinha frio, só me esperava. Esperou durante esses anos todos, ela e o pequeno pedaço de fogo. Quando me viu, só sorriu. E eu vi que ela ainda existia, guardiã daquele outro mundo onde o invisível é tão concreto como os sonhos.
Chegando de lá, corri pro meu tesouro. Estava guardado numa caixa antiga, cheio de pó, mas em contato com o cuidado da água, as pedras ainda eram brilhantes. Uma delas é essa, que está aí com você.
Ela é delicada, apesar da natureza bruta das pedras. Nela, guardei um pedido, um pedido de transformação: de que se largue o velho, de que se abra espaço para um novo ser que suporte a felicidade como estado constante de espírito.
Os cristais vibram, não é? A felicidade é invisível, mas pode transparecer em sons.
Cruzar sonhos.
Furar véus.
Escuta.