Pronto. nasceu.
nem vou falar mais nada, depois de tanta coisa… taí!
Monografia Romeu e Julieta em Recorte – a poesia posta em cena
de Claudia Pucci Abrahão
Pronto. nasceu.
nem vou falar mais nada, depois de tanta coisa… taí!
Monografia Romeu e Julieta em Recorte – a poesia posta em cena
“Tem coisas que nos deixam sem palavras. E tem coisas que as palavras não dão conta de dizer. É aí que entra a dança”
Essa frase, presente no filme “Pina”, de Win Wenders (sobre Pina Bausch) me gerou inquietude. Sou uma pessoa de silêncios (apesar de falar muito) e talvez tenha escolhido escrever porque constantemente as palavras me fogem. Mas o corpo não cala, jamais emudece. E muitas vezes desejei que palavras saíssem de meus gestos com tal espontaneidade com que movia meus braços. Sem filtro do córtex frontal, mas com a precisão de conteúdo que um gesto encerra.
A poesia, porém, me trouxe um pouco desse lugar, pois é parte palavra, parte silêncio. E há certos conteúdos que, para serem tocados, necessitam do verbo permeável. Geralmente, são os conteúdos que se referem a realidades invisíveis, a atmosferas, determinados sentimentos. E o que a ciência prova com fatos e a filosofia com a lógica, a poesia traduz em sentimento.
Assim, ela é como a luz da lua: ao incidir sobre as palavras, gera sombras cambiantes. É mutante, não há lugar seguro, não há contornos definidos: entende-se mais pelo ouvido que pelo olhar, ainda que seja palavra. E a palavra não é o ponto de chegada, mas apenas o barco que conduz àquele lugar onde nenhuma palavra chega. A poesia é rodamoinho de vento que, girando, nos leva à morada do indizível: então, assim como o corpo, torna-se lugar de passagem.
Porém, apesar de efêmera, também pode ser feita de carne. Também pode servir à expressão de sentimentos terrenos, densos, matéria sólida sobre terra firme. Nesse lugar, ela se funde com o teatro. Torna-se palpável, podendo atravessar o corpo do ator, podendo fazer tremer suas estruturas para, novamente, chegar até nós nessa dupla natureza.
A poesia, se levada ao palco, é raio que toca o chão, trazendo um pouco dos céus à terra. Mas assim como a faísca, é rápida, efêmera. E muitas vezes só sentimos seus efeitos pela sua reverberação, o trovão.
(parte da apresentação da monografia, quase pronta, quase aqui.)
21 de abril, sábado, feriado fictício. Manifestações contra a corrupção seguidas de repressão policial. A polis de Escalo não está dando certo faz tempo, e a violência não tem mais nome, nem sobrenome – é tudo S.A. S.A X Anonymous.
Sentada no metrô, carregando uma sacola recheada de flores de papel crepon, um pozinho mágico e dois lança-confetes, eu pensava novamente na razão daquilo tudo. Em qual era o sentido dessa peça hoje, nesse tempo e nessa cidade. De repente o trem parou no meio do túnel, e só depois de algum tempo ouvimos: “atenção senhores passageiros, estamos aguardando a normalização do sistema”. Então, sentada confortavelmente, no ambiente climatizado e civilizado de um trem sem condutor, lembrei da fragilidade que tanto tentam nos esconder, do colapso iminente. Mas não queria que fosse ali, naquele instante. Com uma cena a apresentar. Com uma vida a viver. Então aceitei a segurança artificial e, obediente, refiz meus destinos: ao invés da luz, o paraíso. Dali pra liberdade, inclusive de estar acima do chão. (jurei que nunca mais faria trocadilhos com estações, perdoem a recaída.)
Como cheguei mais cedo, tive tempo de, sozinha, repensar algumas marcas, especialmente as entradas e saídas, que no ensaio anterior tivemos que decidir às pressas. O teatro do Célia Helena possui um pequeno balcão de cada lado do palco, onde se colocam cadeiras para uma platéia lateral. Ali, do lado esquerdo, seria o balcão de Julieta. Do lado direito, pensei que seria uma boa entrada para Romeu. O ator poderia saltar até o palco, pular, literalmente, um muro, dando o código da subversão do personagem ao entrar clandestinamente na casa dos Capuletos. Entre esse e outros detalhes, passei minha primeira hora.
O teatro já emanava o clima de expectativa de todos. Cenas curtas, de até 15 min, seriam mostradas uma seguida da outra. Romeu e Julieta seria às 14h. Apesar de saber que seria uma demonstração de pesquisa, apesar de saber que a cena estava longe de estar pronta, não pude resistir às borboletas no estômago. E percebi que todos, com mais ou menos experiência, sentiam-se do mesmo jeito.
Garbel chegou mais cedo, e fomos tomar um café. Em seguida, Cris juntou-se a nós. Conversamos sobre os efeitos do processo na nossa vida pessoal. Ambos confessaram que em diferentes momentos pensaram em desistir, mas que o fato de seguirem em frente, de encararem esse texto, foi muito transformador. Isso é incrível, porém visível. Não vou entrar em detalhes da vida pessoal alheia, mas imagino que levar o processo ao fim tenha sido uma escolha árdua. É que Shakespeare te coloca em cheque, é grande demais para se viver pela metade, para ficar escondido. Ele é rosa com espinhos, vida em carne exposta. Lembrei de algo dito pela Tatiana: “É preciso muita coragem para dizer aquelas palavras”. Concordo.
Quando Dani chegou, já estávamos no camarim. Fizemos uma pequena concentração, e eles ficaram repassando o texto. Não havia como ensaiar as marcações no palco, pois a platéia já estava presente devido às cenas anteriores, então tudo seria feito de primeira. Fiquei próxima à mesa de luz, para dar as instruções para Jeferson, e de lá vi a cena.
Por estar muito de cima, também fiquei distanciada. Mas pelo que pude sentir, a apresentação dilatou um pouco alguns momentos, seja por esquecimentos de texto, seja por nervosismo. Claro, não havia ainda maturidade suficiente: foi uma fruta colhida verde do pé, e isso era evidente. É muita pretensão fazer Shakespeare em nove ensaios, e com uma diretora de primeira viagem. Mas como o que valia era a pesquisa e não tinha outro jeito, corremos o risco.
O efeito das flores, da chuva de estrelas e do polvilho tingido funcionaram bem, ficou tudo muito bonito. Em relação a esse último, aconteceu como todos queríamos: foi quase um ilusionismo. Antes da cena do balcão, na coxia, Dani polvilhou seu figurino com o pó esbranquiçado (do mesmo tom do vestido, portanto, invisível ao público), enquanto Cris, também da coxia, molhou sua calça. No primeiro contato, o efeito se seu, porém sutilmente. E ao longo da cena, a mancha vermelha foi ficando maior, e ninguém conseguia entender muito bem de onde vinha. Funcionou. Nessa hora, apesar de estar comemorando internamente a descoberta, percebi o quanto minha mente havia divagado em direção a tantos outros aspectos cênicos, tão diferentes do meu objetivo inicial, que era justamente o trabalho de interpretação com o texto.
Depois, ouvindo o retorno da banca e de Tatiana, foi justamente essa a percepção geral. O resultado, apesar de interessante, ficou ainda na ante-sala. Entre várias observações, figuram o “tocar em muita coisa ao mesmo tempo” , a ausência da violência externa à cena e, principalmente, ao desequilíbrio entre a força das imagens e o trabalho com o texto, que estava aquém da composição e da potência dos corpos. A composição cênica estava bem resolvida, mas a interpretação ainda não. Faltou encaixar o corpo à palavra, pois o texto recém-decorado ainda não vinha fluido, havia uma dilatação extra devido à constante evocação de memória, que amarrava as ações num campo menor. Faltou trabalho, tempo para deixar aterrar as descobertas, para que o ator se sentisse totalmente confortável e que o personagem pudesse se apresentar em sua plenitude. Como cordas de um instrumento ainda não tão afinadas, mas que precisam começar a sinfonia. Por mais que se toque a melodia, há algo fora do tom. Um certo desencaixe. Por outro lado, gostaram bastante da relação entre os atores e da composição, com poucos elementos sobre o palco. O que, sim, conseguiu se fazer presente foi a conexão entre os dois, construída pela afinidade entre os atores, e o movimento e jogo dos corpos a partir dessa relação.
Tatiana fez outros comentários precisos. Ela sentiu falta de uma abertura maior da cena em relação ao público, sentiu como se a platéia estivesse excluída do jogo. A princípio, entendi que isso seria resolvido com alguma triangulação e falas em direção ao espectador, mas depois entendi que não era só isso que ela queria dizer. O lugar da fala às vezes resvalava para um certo intimismo que trazia excessiva “pessoalidade” aos personagens, dificultando uma amplitude maior – a vivência do êxtase, a fala de Eros, o Amor maior que os nomes, acima da realidade quotidiana. Também comentou a diferença entre “falar sem receios, e depois sentir no corpo o eco da própria fala”; ou “buscar primeiro sentir para depois falar”. A primeira forma gera mais amplitude, enquanto a segunda traz um certo cálculo, personaliza demais, impede a soltura necessária para que os personagens sejam movidos por forças maiores.
Em síntese, na cena que apresentamos, chegamos a um lugar muito bonito, mas não tocamos o ponto exato da potência que a peça é capaz de despertar. Mas sei que vivemos esse lugar nos ensaios. Em momentos preciosos, essa relação se estabeleceu, e essa dimensão mítica se fez presente – foi comovente, mas uma vez só não basta ao teatro. Intimamente, só, não é suficiente. E o amadurecimento da cena é justamente dar contorno ao intangível que se manifesta eventualmente, para que possa acontecer sempre.
Revendo a cena através das fotografias, entendi o que Tatiana quis dizer, e só depois percebi que a cena que apresentei não era exatamente teatro, mas cinema sobre o palco. Entendi que a distância sentida por ela era a tela onde o filme foi exibido, a quarta parede, ou minha própria barreira de proteção projetada como película invisível aos olhos, mas impermeável aos demais sentidos. Só depois vi o problema de ter tido como maior referência justamente o filme de Baz Luhrmann. E só consegui entender exatamente o que seria essa interpretação aberta ao público quando, relembrando as outras cenas apresentadas no dia, recordei do trecho de Borandá, de Luiz Alberto de Abreu, dirigida pelo Ednaldo Freire (que também era meu colega na turma) e interpretado pelos atores da Cia. Fraternal de Arte e Malas-Artes. A presença deles em cena era fantástica. Não estou fazendo comparações absurdas entre um processo recente e um grupo absolutamente amadurecido, mas foi ali que entendi o que me faltava: era realmente delicioso me sentir uma interlocutora daqueles personagens migrantes, e não apenas uma espectadora voyeur de seu drama. O olhar, lançado a mim, dizia além das palavras, além do específico de ser migrante: era a dor de ser humano que compartilhavam comigo. Não um olhar em direção, mas para mim, e isso tem uma força arrebatadora – uma vez que se rompe a tela de proteção, o público passa de espectador a testemunha. Não é à toa que, como Shakespeare, a Fraternal está no lugar do “teatro popular”. Talvez popular seja isso:a fala de todos nós.
Apesar de tudo, a experiência foi incrível. Fiquei muito feliz com o que apresentamos e, se compartilho essas reflexões, é pelo amor à verdade, e para que talvez possa servir a outros, pois todas essas críticas ao processo são também frutos colhidos, faróis apontando a direção – uma coisa é saber-se muito longe da praia, perdido em alto mar, outra é avistar a terra ainda distante, mas já sabendo por onde seguir. O processo te devolve a exata medida do que você dá a ele: e nós vivemos essa experiência intensamente, mas entre as brechas de tantas outras coisas da vida, e a grandiosidade do texto dependeria de um pouco mais da nossa entrega para florescer. No meu caso, reconheci as muitas limitações que impediram passos maiores, mas, ao final, agradeci profundamente ter percebido tudo isso, e por ter avançado algumas ondas sobre o mar de ignorâncias que me separa do conhecimento. Também agradeci estar entre amigos tão queridos – cuja confiança em uma diretora estreante foi comovente -, pela orientação cálida e entusiasta de Tatiana, e pelo privilégio de ter tido a coragem de viver esses momentos.
Termino esse diário de bordo citando um grande mestre dos palcos. Aliás, de fora-dos-palcos. E que esse seja apenas um começo de muitos e muitos delírios embalados pela música do bardo, atual desde sempre, farol apontando ao que somos: cheios de luz e sombras, matéria semelhante à dos sonhos.
“Shakespeare é um pedaço de carvão que está inerte. Posso escrever livros e conferências sobre a origem do carvão – mas meu interesse real no carvão é numa noite fria, quando preciso me aquecer. Levado ao fogo, ele se torna o que realmente é. Só então revela seu potencial.”
Peter Brook
Antes de falar da apresentação, preciso compartilhar algumas percepções sobre a arte da direção teatral. Minha postura de vida, é claro, reverberou diretamente nesse ofício que acabo de experimentar. Não estou falando do óbvio, das minhas escolhas estéticas, mas daquilo que, por ser involuntário, sai de mim sem que eu perceba e interfere no que todos percebem: a própria cena.
Meu olhar é enviesado, através. Meio de canto, meio de esgueio, meio emoldurado por bordas de óculos. Pelo enquadramento do cinema. Pela distância das palavras. O contato direto com a experiência me assusta, mas em dimensão maior, me encanta: daí o conflito. O conflito de amar o conflito e temê-lo, ao mesmo tempo. Como a menina que via filmes de terror entre dedos.
Sempre me pergunto o por que de ser dramaturga, já que minha dificuldade em relação ao trabalho é justamente escrever de forma mais literária que teatral. Por que não me lançar diretamente aos livros, por que insistir no teatro? Antes, só conseguia responder assim: Porque é um íma. Porque não se compara. Mas só agora entendo: porque tem o risco da presença, o risco de alguém te falar aquilo face a face, o risco da emoção aflorando com testemunhas, o risco do contato. Porque é mentira que seja tudo mentira – talvez, a história, mas não a experiência. Teatro, quando é teatro, faz mentira virar verdade.
E se é você a pessoa a despertar tais verdades? Despertar os conflitos?
No cinema é mais fácil, porque a gente sente tudo às prestações, plano a plano, e só depois manipula. Não digo que é impossível – quando o susto também tem espaço na tela, entre um “ação”e um “corta” aquilo se imortaliza e dá origem ao inesquecível. Mas essa não é uma condição sine qua non para que o cinema aconteça, porque a hipnose das imagens, das câmeras e da edição conseguem jogar uma poeira, a emoção pode ser construída artificialmente, na sala de montagem, longe do risco da experiência. E ainda há a equipe, a repetição em diversos takes, os monitores de video, há portos seguros te lembrando que aquilo é só um filme, é só um sonho, não tenha medo, já passou. No cinema, aprendi a construir imagens, decifrei a poesia dos enquadramentos, da luz, das composições. E nesse olhar contemplativo, através de janelas, estava segura para observar a emoção de longe. Mesmo que fosse verdade, mesmo em documentário. A íris da lente não chora.
Depois me lancei às palavras. Não digo que sem risco – não é fácil explorar os abismos. Mas é uma aventura sem testemunhas. O outro só entra depois, compartilhando a aventura já vivida, mas a viagem é de um só: experiência que posso interromper quando quiser. Sim, há perda de controle, há desvario, mas não há risco de ser banido da vida do outro por desagrado. Como poderia me excluir de mim? Posso calcular as palavras, voltar, reescrever. Não há o que temer, nem do que se arrepender, apenas a coragem pra ver. Descer com a lanterna e decifrar mundos, mas mundos de uma só. Mil personagens dentro, apenas uma voz. Então me faltava diálogo, faltava gente. Intercâmbio.
Minha transição para o teatro foi como dramaturga. Adoro acompanhar processos, não tenho problema com o colaborativo – desde que seja, de fato, uma co-criação – e meu lugar na sala de ensaio era o “cantinho da dramaturga”. Enquanto observava os atores trabalhando, anotava minhas percepções para depois compartilhá-las com o diretor ou diretora com quem trabalhava. Não falava diretamente com os atores sobre a cena, e meu olhar estava no texto: a estrutura, as palavras, o que faltava ou sobrava, a construção das personagens, o diálogo. Como dizer as palavras, como colocar o corpo, como atingir o estado necessário, tudo isso eram questões alheias a mim – estavam a cargo de quem dirigia. Meu papel era estar ao mesmo tempo presente e distante, avaliando o todo, de longe, no canto. Através.
Eis que, um dia, resolvo me lançar à direção. O palco, os atores, a vida ao vivo. A experiência concreta, com todos os seus atritos, com todos os problemas de tempo, locais de ensaio, falta de dinheiro, excesso de coisas, dificuldades dos atores, intersecção de cronogramas, expectativas. Lidar com emoções alheias, com a imprevisibilidade, com o desejo de controlar a experiência sabendo-se impotente para isso. Não havia câmera para intermediar, nem cortes para separar a emoção em pedaços mais respiráveis. Não era suficiente ficar no canto observando e só trazer observações. Era necessário provocar, estar presente, estar na pele, estar no corpo. Ao contrário do que pensava, dirigir é perder o controle. Lançar-se, junto, à experiência, ser transpassada por ela. Provocar a fricção, para que o conflito do texto possa realmente se corporificar, descer abaixo da linha do pescoço. Dirigir é um ato de amor, porque implica em deixar seus limites, incomodar, se necessário, colocar a atenção no que é importante para que a cena chegue onde tem que chegar. Dirigir é romper as bordas. É estar em evidência, no centro do palco, com luzes em cima, exposição absoluta. Sem intermediários.
Talvez por isso, nessa última semana, meus óculos quebraram justamente na armação. Talvez por isso eu tenha também ficado sem as bordas, frágil, permeável – e sem poder remediar com um pouco de superbonder. Percebi, durante os ensaios, minha dificuldade de estar presente, totalmente presente: era como se, rompidas as barreiras, por não ter mais janelas, eu tivesse criado uma película invisível que se manifestava numa espécie de torpor. Isso me atrapalhou muito, impedia que eu registrasse a cena como um todo, que visse onde deveria interferir, que soubesse a palavra precisa a se dizer para o ator. Em alguns momentos conseguia furar essa névoa, e ao invés de primeiro pensar, calcular, para depois fazer, fazia sem pensar e sentia as reverberações do ato. Perdia o controle e me deixava conduzir pela própria força do processo: e nesse momento não era eu em controle, e sim eu não era meu nome, era só fluxo, fazendo o que tinha que fazer para que a cena cobrasse força. Logo depois descobri que entre dirigir e atuar não há diferença, porque essa mesma questão também pertencia ao ator.
Depois dessa experiência, vendo o resultado, pude ler todo esse percurso interno. O que funcionou e o que não funcionou, no momento, foi a medida do quanto consegui furar essas barreiras, o quanto consegui resistir ao impulso de me fazer invisível e, ao contrário, estar exposta no tempo presente, nua em pêlo, e à serviço. Dirigir é ser conduzida e, só por isso, conseguir conduzir.
Concluí, então: “que lindo” não basta. Nem para palavras, nem para imagens. Talvez sirva às outras artes, mas não ao teatro. Claro, o belo tem seu valor – lindas imagens e palavras podem gerar as condições adequadas para que uma atmosfera favorável se instaure no público, para que o estado de poesia se estabeleça, amaciando a dureza cotidiana para um estado de maior permeabilidade. Mas isso é só a ante-sala do que deve vir em seguida, para o grande susto, que só é possível através do ator. Se não temos essa segunda parte, ainda que bela, a peça é só promessa. E para que a platéia chegue nesse lugar, deve ser conduzida. E para que isso ocorra, a gente tem que estar lá. Lá. Lugar onde só se chega na instabilidade, no risco, na perda das bordas, dos nomes. Local de coragem. Lugar exato de Romeu e Julieta.
Era o último que nos restava. A única coisa que eu tinha certeza é que precisaria de foco.
Acaso fosse uma pesquisa nas condições ideais, arriscaria dizer que só agora começamos a entender algumas coisas, e seria o momento de brincar bastante com as possibilidades do texto, de sua música, da métrica, do efeito das palavras. É o que eu faria se tivéssemos um prazo maior. Talvez todo diretor sinta isso, independente do tempo que tenha para a montagem, e talvez esse sentimento seja parte de qualquer processo. Divagues à parte, querendo ou não, era hora de fechar a cena.
Durante a semana, fiz uma pequena descoberta cenográfica. Ainda buscando algo que pudesse dar o efeito de uma poeira colorida, resolvi testar o uso de polvilho doce – que já havia visto em cena com bons resultados, na peça Frio 36 e meio, dirigida por Arthur Belloni. Como queria gerar um tom avermelhado, resolvi misturar um pouco de corante para doces. O resultado foi decepcionante a princípio: a cor não se alterou, o que aconteceu foi “sujar” o branco puro do polvilho, que apesar de ter ganhado pontos escuros, continuava branco. Porém, ao lavar a mão, tive a surpresa: em contato com a água, aquela mistura esbranquiçada se dissolveu e tornou-se um vermelho forte, que parecia muito com sangue.
A partir daí, pensei em quinhentas formas de inserir essa descoberta na cena, até que concluí que talvez a melhor seja essa: polvilhar o chão com essa mistura para que, em contato com o figurino previamente molhado, esse efeito vá se desenhando lentamente – e, tomara, magicamente. Então, além de todas as observações, reflexões e marcações, além de todos ajustes de intenções, ainda queria testar o ilusionismo do sangue lentamente subindo pelos pés. Em três horas de ensaio.
Começamos ajustando a cena de Mercúcio. Como o texto já estava firme, ao mudarmos a intenção da fala o personagem ficou bem mais próximo ao que queríamos, com um certo ar de deboche. O cuidado com o jogo era não perder o objetivo da cena – Mercúcio está o tempo todo procurando Romeu, provocando-o para que ele apareça de volta – mas também trazer alguma triangulação com o espectador. Na cena original, Mercúcio contracena com Benvólio, mas o público pode perfeitamente fazer esse papel de interlocutor. Assim, alternando a direção da fala entre o espectador e um Romeu distante, o jogo se estabeleceu. A cena ganhou mais dinâmica e conseguiu, pela primeira vez, ter o efeito de contraste com Romeu e Julieta.
Depois passamos à cena do balcão, que precisava de maiores cuidados. Tentei integrar as sugestões de Tatiana no ensaio anterior – que Romeu desse suas falas parado, com os pés fincados no chão, para que o texto cobrasse força – mas também incluí a inquietação que eu imaginava para o personagem. O resultado foi: entre uma fala e outra, ele se movimentava, mas na hora de dar o texto, ficava parado. Ao princípio ficou um pouco marcado, mas depois ganhou organicidade e evitou tanto a movimentação excessiva (que fazia o texto perder as imagens evocadas) quanto a estaticidade.
Passamos uma primeira vez bem técnica, ajustando a marcação já incluindo os cortes da cena e as minhas reflexões posteriores ao último ensaio. Tentamos evitar qualquer movimento mais passivo da parte de Romeu, e buscar sempre o jogo trabalhado: o ímã entre os dois, a brincadeira de pega-pega disparada pelo vai-e-vem de Julieta (presente na intenção de suas falas, que a coloca sempre dividida entre a convenção e o seu desejo). Esse movimento interno do texto, ao ser corporificado, ajuda a abrir a cena, pois faz com que ela se afaste de Romeu e que ele, consequentemente, vá em direção a ela.
Depois de marcar, passamos o texto com as intenções, e muitos problemas me pareceram solucionados. Como já há uma forte conexão entre os atores, a precisão da marcação ajudou a conter a energia, evitando dispersões. Em seguida, resolvemos passar todo o recorte, com as três cenas. Ajustamos o início ritual, que ficou mais rápido e enxuto, e sua passagem para a cena da festa não tem mais a quebra de fora/dentro da cena. O baile já estava mais maduro, mas ainda fizemos ajustes, especialmente na transição para o corte de Mercúcio, e desse para o balcão. Terminada a cena, passamos tudo de novo, dessa vez sem interrupções, pois eu precisava ver o tempo total do recorte. Foi incrível. Com as marcações que fizemos, a cena ganhou muito mais ritmo e conseguimos que ela atingisse a duração necessária.
Como não podíamos sujar muito o espaço, não consegui testar o efeito do polvilho. Bruno sugeriu que o tingir do vestido não acontecesse logo no começo, mas só pelo contato entre os corpos, durante a cena do balcão. Então chegamos na seguinte marca: durante a cena de Mercúcio, Dani irá espalhar o polvilho no seu vestido, enquanto Cris, na coxia, irá se molhar. No primeiro contato físico entre os dois, – espero – , conseguiremos o efeito desejado. De qualquer forma, um pouco do polvilho estará no chão, e durante a cena algum tingimento vai acontecer. A idéia é que seja um efeito discreto, e não algo que vá puxar o foco. Meu objetivo é que a atenção do espectador esteja no jogo entre os atores, e em algum momento se perceba que manchas vermelhas apareceram nos corpos, como o amor feito carne, como um prenúncio do que virá. Mas sem muito alarde, pelo menos nesse momento – o vermelho, aqui, ainda está em segundo plano. Só passaria a ter destaque no momento da morte de Mercúcio, onde a tragédia tem seu início.
Ao final de tudo, mesmo com todos os problemas que temos, fiquei realmente feliz. Hoje muita coisa se ajustou, e o material precioso trazido pelos atores pôde, pela precisão da forma, aflorar ainda mais sua potência. Não nos encontraremos mais até a apresentação, mas penso que o que criamos, apesar de ainda imaturo, já pode ser considerado representativo da pesquisa. É certo que, relembrando o objetivo inicial dessa investigação – testar os efeitos do texto sobre os atores e sobre a atmosfera da cena – eu poderia considerar que o ponto em que estamos agora é só o começo, e daqui poderíamos ir bem mais longe. Muito mais.
Talvez nunca tenha fim. Não acaba a vontade de continuar trabalhando nessa teia maravilhosa enredada pelas palavras do bardo. Agora entendo porque alguns diretores montam a mesma peça de Shakespeare pela segunda vez: é impossível abarcar totalmente todas suas possibilidades. É essa sua maior riqueza, e por isso sua obra é tão próxima da vida: quanto mais se apreende, mais se parece um mistério. E quer entendamos tudo ou não, o fluxo não pára: depois de nove encontros, a cena vai ter que nascer.
Uma hora de palco no teatro do Célia Helena, e mais outra de conversa com Tatiana. É o que tínhamos hoje. O dia seria para fazer as marcações de cena e luz (único ensaio no palco antes da apresentação), e todos os outros diretores que mostrarão suas cenas no dia 21 teriam que se preparar também. O horário estava escalonado, e não poderíamos atrasar.
Estávamos marcados para as 11h. Cheguei um pouco mais cedo com Garbel, e Tatiana e Cris já estavam nos esperando. Minha mente operava em duas velocidades: o tempo externo, absolutamente corrido, porque era claro que não teríamos como cuidar de tudo, e o tempo interno, que estava absolutamente dilatado. Chegando ao interior do teatro, olhando para o palco vazio, um segundo de rapto: lembrei do por que de tudo isso, como um flash da primeira vez, do amor à primeira vista num teatrinho de escola. O grande espaço pintado de preto por um instante me tragou até essa memória, e me lançou, como um túnel, a tantas memórias futuras. Mas logo a Dani chegou, e hoje era tempo de correr e estar presente.
Eu havia passado na 25 de março para comprar algumas coisas que queria testar na cena. O tal lança-confetes de festa e papel crepon para as flores. Enquanto conversávamos, fui fazendo bolinhas de papel amassado para testarmos o efeito cênico, enquanto conversávamos sobre o que seria o ensaio, enquanto falava com o técnico sobre a luz desejada, enquanto pedia um balde de água – para testar o que seria a idéia de se molhar em cena – enquanto marcava a cena com os atores. Enquanto tentava não pensar no quanto que faltava pra cena ficar razoavelmente boa.
Enquanto Jeferson, o técnico de luz, montava os refletores, passei com os atores um esboço de marcação. Nunca havíamos feito o recorte corrido, com todas as cenas juntas. Garbel deu uma idéia interessante para as transições: ele e Cris correndo em círculos separados, um horário e outro anti-horário, dando a idéia de desencontro entre os personagens, porém evitando um realismo desnecessário (efeito mais fácil de fazer que explicar). Como eles ainda não tinham o texto totalmente seguro, optamos por ainda ter o papel em mãos, para a cena do balcão. E depois de tudo mais ou menos combinado, começamos.
As “flores de papel” deram um efeito inesperadamente bom, mesmo sendo, ainda, bolinhas de papel amassado. A idéia de preparação do espaço pelos atores ficou interessante, porém longa. É incrível como há uma medida certa para o tempo ritual. Ou se estabelece ou não, e ver somente a forma do ritual ao invés de termos a verdadeira atmosfera torna tudo muito lento. Claro que era uma primeira vez, portanto foi tudo muito técnico, mas já deu para perceber que o tempo não poderia ser aquele. O tempo de Romeu e Julieta é rápido, não há tempo, nunca há tempo. Ou esse era meu tempo?
Dali passaram à cena do baile. Também está clara a necessidade de fechar uma partitura, porque ainda há altos e baixos. Tatiana sentou ao meu lado e ia fazendo comentários. No início da fala de Romeu, ela achou que estava tudo muito intimista, como se nós, espectadores, não participássemos do momento. Quando Cris abriu a cena para o público, melhorou bastante. Fica evidente, pelo menos nesse processo, que os maiores desafios do texto estão exatamente nos solilóquios. Ancorar o olhar em direção à platéia ajuda a ter algum interlocutor, do contrário o personagem literalmente flutua, perde o lastro das ações, e as palavras ficam cheias de ar, perdendo sua consistência. Ao chegarem no momento do soneto, melhorou um pouco. A marcação que já havíamos conseguido para a cena se perdeu um pouco no novo espaço, mas eles descobriram um cantinho ao fundo do palco que foi essencial para a intimidade do beijo.
Na entrada de Mercúcio, o efeito do estouro do lança-confetes foi muito bom, apesar de ter sido em um momento anterior ao ideal. O barulho foi maior do que eu imaginava, e deu exatamente o efeito desejado: uma entrada brusca, violenta, como um tiro. Em contraste, o tubo liberou uma chuva de estrelas prateadas, que caíram lentamente sobre o palco, e deixaram o espaço forrado delas. A princípio, minha idéia era comprar uma chuva de corações laminados (para que o espaço fosse sendo gradualmente pintado de vermelho), mas como apenas encontrei essa opção de prata, resolvi levar só para testar o efeito da explosão. Felizmente, porque pude ver o resultado dessa nova possibilidade, o céu espelhado no chão. O que é, exatamente, o clima da próxima cena: como se os céus pudessem, por um instante, coexistir na densidade.
Sobre o texto de Mercúcio, Tatiana também fez alguns comentários. Segundo o que combinamos, Garbel falou o texto para a direção que Cristiano havia saído. Mas vendo o resultado, essa opção gerou um efeito bem estranho, pois o ator estava bem em frente à platéia, sozinho em cena, porém olhando para o lado. Se fosse apenas um problema ajuste da direção de olhar, eu poderia pedir para que Romeu saísse pela platéia, fazendo com que Mercúcio se voltasse para a frente. Mas além desse problema, Tatiana observou que ao olhar em direção ao personagem recém-saído, parecia que ele já se referia àquele Romeu que vimos, ao Romeu que já havia se encontrado com Julieta, quando na verdade Mercúcio ainda não sabe desse encontro, não sabe onde está Romeu, sabe bem menos que nós, espectadores. Se a intenção do olhar não for direcionada a um ponto referente ao personagem, ao invés disso, tiver a intenção de uma procura, o efeito muda. E Mercúcio ganha uma fragilidade interessante, pelo simples fato de sabermos mais do que ele.
Assim, corrigidas a direção e a intenção do olhar, o código preciso se estabeleceu. Então a questão era outra: a intenção da fala. Ainda falta imprimir o deboche, especialmente quando o personagem evoca Rosalina (que pensa ser, ainda, o objeto de desejo de Romeu), nessa fala:
Vês? Nem me ouve, nem dá sinal de vida.
Só se o diabo morreu, vou ter que apelar.
Pelos olhos brilhantes de Rosalina, eu te invoco!
Por tua fronte elevada, lábios vermelhos,
seus pequeninos pés e pernas finas, torneadas,
Pelas coxas tremulantes e pelo reino aos arredores,
Apareça do jeito que for!
Ele está escondido ao pé de um pessegueiro
pensando em fusões com aquela fruta de formato
que faz as mocinhas rirem escondidas.
Ó Romeu! Se ela fosse, se ela fosse um pêssego rachado
e tu, uma pêra pontuda!
O texto, claramente provocador, ainda padece de um certo lirismo, que é até interessante de ver na evocação da rainha Mab (na cena anterior ao baile), mas que não pode existir nesse momento. O objetivo dessa cena no texto – e nesse recorte cênico – é apresentar o contraste entre as diferentes formas de “amor” presentes na dramaturgia: o puramente romântico-idealizado de Romeu por Rosalina, o erótico/sagrado/carnal/sublime de Romeu e Julieta, e o erótico/banalizado/pêssego-pêra de Mercúcio. Ao menor sinal de lirismo, o sarcasmo se esvai, e a cena perde o efeito desejado. Ajustes ainda necessários, especialmente para um ator que nos últimos anos vem transitando entre Drummond e Guimarães Rosa, e atualmente orbita o universo de Hamlet.
Percebi, então, que esse trabalho de encontrar a energia correta, vibrar exatamente na frequência do personagem, não acontece da noite para o dia. E não importa se o objetivo seja montar uma cena ou a peça inteira – o trabalho é o mesmo. E assim como ainda buscamos Mercúcio, também buscamos Romeu, especialmente o Romeu desse momento. Diferente de Mercúcio, que não sofre muitas transformações ao longo da história, Romeu e Julieta atravessam os ácidos alquímicos, e a partir do amadurecimento disparado pelo momento do encontro – expresso também nas diferenças poéticas do texto – a cada cena são pessoas diferentes. Assim, se no baile vivem o êxtase do amor verdadeiro e encarnado, se no baile vivem o instante do encontro absoluto, do desejo recíproco e sem barreiras e da alma em festa, mesmo que a madrugada no jardim dos Capuletos seja um prolongamento desse estado, ele já está contaminado do perigo, da morte iminente, da tragédia sempre à espreita, porque a festa termina com o conhecimento de seus sobrenomes. Mas como as saídas ainda não estão fechadas, o momento ainda é luminoso.
Isso me dá sempre uma sensação de um Romeu inquieto, ágil, com o corpo em constante fricção, o que não está ainda acontecendo em cena. Novamente, nos deparamos com o problema dos solilóquios:
Silêncio! Que luz é essa agora na janela?
É o oriente! E ela, o sol nascente!
Surge então, formoso sol! E mata a lua invejosa
que desfalece doente e pálida de tristeza
ao ver que sua fiel sacerdotisa
é mais linda que sua face prateada. Deixa então,
de servir a essa deusa ciumenta
e essa veste esverdeada e doente das vestais
que só as dementes vestem, joga fora!
Minha amada, meu amor!
Se ao menos ela soubesse…
Ela fala! Mas não diz nada ainda. O que será?
São os olhos que estão falando! então respondo?
Vou-lhe responder.
Sou muito ousado! Não é pra mim que ela fala!
Duas das estrelas mais brilhantes desse céu
receberam uma tarefa, assim, chamaram seus olhos
para orbitar em seus lugares até que elas retornem
estarão, então, as estrelas em seu rosto
enquanto estão os seus olhos no céu?
o brilho da sua face ofuscaria a luz dos astros
como uma tocha empalidece à luz do dia
e seus olhos, lá de cima,
entornariam à escura noite tanto brilho
que os pássaros acordariam pra cantar
como fazem, todo dia, à luz da aurora.
Ai! Quem me dera ser a luva dessa mão
para poder tocar seu rosto!
Como dizer esse texto sem atropelar as palavras, porém na velocidade necessária, na energia necessária, para que sintamos a força do desejo que não se contém num corpo parado? E como a ação do personagem é aparentemente passiva – observar Julieta da janela – realizá-la com essa intenção não ajuda em nada o ator. Foi o que vi com clareza pela primeira vez. É certo que o ralentar da fala que observo na cena ainda tem suas razões no tempo de lembrar o texto, que ainda não está totalmente firme, mas também sinto que o Romeu que aqui se apresenta já carrega uma melancolia que só seria vista num momento seguinte da peça. Nesse momento do texto, o personagem está tão tomado pelo entusiasmo que possui uma coragem quase alucinada, sobe por muros, diz possuir asas. Tem o corpo energizado, também por seu desejo crescente por Julieta. Então, apesar de só termos mais um ensaio no horizonte, nele certamente será incluída uma partitura nada estática para esse primeiro movimento.
Em relação ao solilóquio de Julieta, está um pouco mais resolvido, porque Dani encontrou um lugar que ajudou o texto a ter, simultaneamente, intimidade e visibilidade. Como uma adolescente que escreve em seu diário, mas sabendo que será visto. Testamos localizar o “balcão” de Julieta em diferentes lugares do teatro, até que encontramos um cantinho ideal, uma pequena elevação na lateral do palco onde ficam cadeiras para a platéia.
Logo que Julieta vê Romeu, ela desce do pequeno balcão e a cena passa a ser no palco. Nesse momento, o texto ganha certa agilidade, especialmente devido à sintonia existente entre Cris e Dani. Apesar da partitura ainda não estar clara, há momentos bem interessantes, alternados com outros em que ainda tenho a impressão de vê-los um pouco perdidos na gestualidade e na movimentação. É clara a necessidade de direção, de parar a cena e ir marcando passo a passo, enxugando e sintetizando o que eles já trouxeram, para que eles fiquem mais confortáveis e não percam a energia já conquistada. Mas como estávamos com o tempo totalmente estourado, tivemos que seguir em frente sem muitas interrupções.
Talvez seja uma boa saída recuperar a partitura da cena do baile com algumas variações. Dentro do que já temos desenhado, um momento muito bonito é quando, nesse momento, eles vão para o chão:
Romeu – Juro, pela lua encantadora
que com suas luzes prateadas
tinge o topo dessas árvores.
Julieta – Não! Não jures pela lua!
Ela tem alma inconstante,
cada mês com um semblante!
Romeu – Pelo que devo jurar?
Julieta – Não jure então!
Ou jura por ti mesmo
querido deus amado,
e te acreditarei.
Romeu – Pois jurarei!
Se o amor sincero desse coração…
Julieta – Pare! Não jures!
Apesar de tua presença ser razão da minha alegria,
eu não posso querer sentir tudo numa noite só
Tanta alegria num encontro tão brusco,
súbito, imprevisto,
qual relâmpago que, mal luz na escuridão,
Se apaga antes que a gente exclame: que clarão!
Ao final desse trecho, eles estão deitados, Julieta de braços abertos, enquanto Romeu a beija. E esse momento, no texto, encerra também um movimento. A partir daí, o acúmulo de desejo é tão grande que ou ele seria interrompido ou levado até sua consumação. Mas como Shakespeare é Shakespeare, é claro que ele nos deixaria em suspensão, até que esse ato seja consumado somente no quase-fim do terceiro ato. Então ele segue assim:
Julieta – Querido, boa noite!
E que o sopro do verão amadureça esse botão de amor
para que ele possa se abrir em linda flor
no nosso futuro encontro.
Boa noite, boa noite!
Ah, que essa doce calma que me enche o coração
encha também a sua alma!
Romeu – Vais deixar-me assim, insatisfeito?
Julieta – Mas que satisfação esperas ainda, essa noite, de mim?
De qualquer maneira, se a fala “que clarão” é o ápice desse acúmulo do desejo, precisamos sentir esse crescente, e para isso ele tem que ser construído anteriormente. O que me deu a idéia de trabalhar de trás pra frente. Então, esse efeito já tem que ser construído durante os solilóquios – como se a fala de cada um fosse uma forma com que evocam, novamente, a presença do outro, e essa presença tingida dessa necessidade dos corpos presentes. No momento em que os dois se encontram e o diálogo se inicia, o movimento se acelera, o que é também indicado pelo ritmo do texto, que soma desejo e perigo, aumentando a carga de erotismo:
Julieta – (…) Romeu! Renuncia o teu nome, que não é parte de ti,
Em troca dele, toma-me a mim, que já sou inteira tua!
Romeu – Aceito! Eu farei o teu desejo
Por ti serei, então, rebatizado.
Não mais serei Romeu, mas sim Amor.
Julieta – Quem és, que vem assim, acobertado,
na noite, desvelar o meu segredo?
Romeu – Não sei mais como devo me chamar
Meu nome, minha querida,
é tão odioso a mim, agora,
por ser nome odioso a ti,
que se o tivesse escrito aqui, o rasgaria.
Julieta – Meus ouvidos nem beberam
cem palavras de tua boca
mas já reconheceram seu tom.
Não és Romeu, e um Montecchio?
Romeu – Nem Romeu nem Montecchio, se os dois te desagradam!
Julieta – Como pudeste vir até aqui? O que vieste fazer?
Como conseguiste entrar?
Os muros do jardim são muito altos pra escalar!
Aqui é tua morte se um parente te encontrar!
Romeu – Pelas asas leves do amor
eu voei sobre esse muro!
Porque o amor não é barrado
pelos duros limites da pedra.
o que o amor deseja e não consegue?
Nenhum parente seu poderá me segurar!
Julieta – Sim, mas se te virem, irão matar!
Romeu – Ai! Mas nos teus olhos tem mais perigo
que em vinte espadas de inimigos.
basta um doce olhar do teu olhar
e ficarei imune a qualquer ódio.
Julieta – Por coisa alguma desse mundo
gostaria que fosses visto aqui!
Romeu – A noite me protege com seu manto
basta que tu me ames
e não me importa quem me veja
Pois prefiro morrer cedo por teu ódio,
do que muito viver sem teu amor
Julieta – Quem foi que te ensinou a vir aqui?
Romeu – Pelo amor, que primeiro encorajou
me deu conselhos e eu lhe emprestei meus olhos
não sou piloto, mas se acaso tu estivesses
na mais longínqua praia do oceano,
eu me lançaria à travessia
só pra esse tesouro encontrar.
O diálogo segue no ritmo até aqui, e o jogo cênico se ancora no texto. A próxima fala de Julieta, contudo, é um momento perigoso. Por ser relativamente longa, caso a partitura não esteja totalmente desenhada de forma a seguir o movimento, pode fazer parar a cena:
Julieta – Tu bem sabes que a máscara da noite
vela o meu rosto, senão verias
o pudor que se pinta em minha face
só de pensar no que eu disse essa noite.
Deveria ter recato, e então negar,
negar cada palavra que eu disse
Mas não me importa. Adeus formalidade!
Tu me amas?
Pois se disseres que sim, eu acredito.
Mas não o jures!
Poderias trair teu juramento. Dizem que Júpiter ri
dos perjúrios de amor. Meigo Romeu,
se me amas, diz, então, sinceramente.
ou se julgas que eu fui fácil demais
eu farei cara de má e direi não;
para que, de novo, me conquistes.
Mas se achas que não fui assim tão fácil
por nada nesse mundo farei isso
Ai Montecchio!
A verdade é que eu estou mesmo perdida!
Louca de amor!
Se parece que estou sendo leviana,
acredite! Serei a mais sincera
que as outras de aparência recatada.
Confesso que seria mais reservada
se tu já não tivesses surpreendido,
escondido,
essa minha paixão já declarada.
Então perdoa.
Não julgues leviana minha entrega a esse amor
que nem a escuridão pôde esconder.
Esse momento de Julieta resume o movimento da personagem ao longo da peça: Apesar de saber as convenções, apesar de ser pressionada por elas, ela se rende à força de seu desejo. Porém não é uma entrega louca, inconsciente, ela se dá pela luz, é uma entrega a algo maior que ela. Tem, portanto, algo de religioso. Julieta é uma sacerdotisa do amor e da luz, como bem observa Romeu no seu solilóquio apaixonado. E essa transformação se dá dentro do próprio texto, como se as próprias palavras por ela faladas tivessem o poder de liberá-la de toda a convenção. Porque, ao fim dessa fala, Julieta está totalmente entregue à força desse sentimento, mas com consciência e manejo suficientes para interrompê-la com um “boa noite”, no momento seguinte.
A questão aqui é: que ações terá Romeu enquanto Julieta vive essa transformação? Da forma como estão fazendo, há momentos preenchidos, mas em geral Romeu está apenas escutando. Isso dá a impressão de uma Julieta mais ativa que Romeu, mas como tudo o que acontece com um é resultado da ação do outro, e vice-versa, de alguma forma a ação de Romeu deve alimentar Julieta para que ela chegue a essa entrega. Portanto, sua ação não pode ser apenas a de “escutar”.
E se no momento seguinte a cena atinge seu ápice erótico, é esse o pulso que deve ser alimentado a partir daqui. Ao ver a cena no palco, tive vontade de ver Romeu beijando o pescoço de Julieta, ou quaisquer outras ações que sugerissem preliminares. Porque apesar de ambos servirem ao Amor, o contato com essa divindade se dá a partir do outro, portanto deve ser disparado pelas ações do outro. Dessa forma, Romeu dá a Julieta a força necessária para que ela supere as convenções, assim como Julieta dá a Romeu a coragem para que ele supere, em si, a sintonia competitiva característica do seu grupo de amigos – em especial, Mercúcio – que, mesclando sexo e violência, não conseguem fazer com que a potência dessa energia vital se eleve – a palavra “coragem”, não coincidentemente tem o mesmo prefixo que “coração”.
Loucura mesmo é perceber tudo isso, querer testar em cena, e saber que só teremos mais um ensaio.
Mas voltando ao teatro, quando a cena chegou ao fim, tivemos que rapidamente deixar o palco para que o próximo grupo pudesse trabalhar. Fomos para o camarim para discutir o que vimos, e ainda com um problema extra, relativo às regras da apresentação: a cena está longa demais. Calculo que tudo esteja levando quase meia hora, e teremos, no máximo, 15 minutos. É claro que ela ainda será enxuta, mas o texto também precisaria de cortes. Então começamos a conversa pensando que trechos seriam possíveis de se descartar.
Apesar dessa decisão ser contrária à minha proposta original – ver o sentido da ação de cada fala na dramaturgia – tive que me render a ela por razões evidentes. Rapidamente pensamos dois trechos que são “retiráveis” sem muito prejuízo à cena (em vermelho):
Julieta – Como pudeste vir até aqui? O que vieste fazer?
Como conseguiste entrar?
Os muros do jardim são muito altos pra escalar!
Aqui é tua morte se um parente te encontrar!
Romeu – Pelas asas leves do amor
eu voei sobre esse muro!
Porque o amor não é barrado
pelos duros limites da pedra.
o que o amor deseja e não consegue?
Nenhum parente seu poderá me segurar!
Julieta – Sim, mas se te virem, irão matar!
Romeu – Ai! Mas nos teus olhos tem mais perigo
que em vinte espadas de inimigos.
basta um doce olhar do teu olhar
e ficarei imune a qualquer ódio.
Julieta – Por coisa alguma desse mundo
gostaria que fosses visto aqui!
Romeu – A noite me protege com seu manto
basta que tu me ames
e não me importa quem me veja
Pois prefiro morrer cedo pelo ódio de quem seja,
do que muito viver sem teu amor
Julieta – Quem foi que te ensinou a vir aqui?
Romeu – Pelo amor, que primeiro encorajou
me deu conselhos e eu lhe emprestei meus olhos
não sou piloto, mas se acaso tu estivesses
na mais longínqua praia do oceano,
eu me lançaria à travessia
só pra esse tesouro encontrar.
Julieta – Tu bem sabes que a máscara da noite
vela o meu rosto, senão verias
o pudor que se pinta em minha face
só de pensar no que eu disse essa noite.(…)
Como esses cortes não seriam suficientes, também resolvemos terminar a cena antes do previsto. E pensamos que um bom momento para isso seria justamente no “boa noite”, logo após “que clarão”. Assim chegamos ao ápice de um movimento, e terminamos com a primeira fala que inicia o último movimento da cena, quando eles se despedem muitas e muitas vezes.
Refletindo sobre o que torna esses trechos “retiráveis”, concluí que sua função é reforçar o lirismo de Romeu. As duas falas são parecidas, e são a tentativa de descrever o próprio Amor que o toma. Elas não movem a ação adiante, ou seja, não afetam diretamente o outro, mas reforçam o estado apaixonado, colaborando para a atmosfera da cena. Como essa atmosfera também pode ser dada com outros códigos além do texto, a cena não sofre grande mutilação em relação a seu movimento dramático.
Não coincidentemente, essas palavras também tinham problemas quando ditas em cena. Percebi, então, que assim como nos solilóquios, nas falas de função lírica se dá o mesmo desafio: como dizer as palavras sem descolar os pés do chão? Em um dado momento do ensaio, Tatiana deu a Cris a instrução de firmar as imagens propostas – se não me engano, justo quando ele falava das estrelas – e isso fez com que ele aterrasse. Eis o grande desafio: firmar o pé dos atores para que a palavra ganhe corpo, ganhe imagens e sentido, e o que voe seja apenas a sua reverberação.
Sobre a ambientação cenográfica, pensamos em já começar com os atores meio molhados, e manter a idéia ritual somente com as flores, e também sendo tudo mais enxuto. Gostei também da chuva de estrelas prateadas, que completou o espaço deixado pelas flores. Talvez eu ainda teste o pó vermelho (ainda queria sujar o figurino em cena), mas do jeito que está já existe uma proposta cênica, e ainda que seja simples, não está distante do que poderia ser numa montagem (talvez eu insistisse nos arames farpados, coisa que agora é impossível). A proposta de figurino que eles levaram me agradou bastante: um vestido fininho para Julieta (com alguns detalhes levemente estampados e prateados), uma bermuda de algodão cru para Romeu (sem camisa) e um Mercúcio meio “Alex-Laranja-Mecânica” com camiseta prateada. Sobre a projeção, acabei desistindo da idéia, porque algumas coisas, para ficarem boas, precisam de maturação. E penso que seria mais um item a ter que manipular no dia, e prefiro dar esse espaço ao trabalho com os atores.
Ao final, depuramos mais algumas coisas. Não falarei mais da falta de tempo, porque esse é um assunto recorrente e já é redundante. No pouco que nos restou, Tatiana reforçou a necessidade de Cris e Dani ocuparem o espaço com a fala (evitando um intimismo psicológico), e concordamos sobre a necessidade de marcar com precisão a partitura cênica, o que será feito no próximo ensaio. Também falou sobre a força do texto, da sua capacidade de, em si, gerar as imagens que movem a cena – talvez, pensei eu, como uma máquina que já funciona sozinha e, se bem articulada, aumentando em sua potência. Para finalizar, entre risos gerais, ela comentou sobre minha timidez em dirigir, porque a cada necessidade de instruir os atores, eu ia até eles, no palco, para falar ao pé do ouvido. Eu achei realmente engraçada essa observação e, obviamente, me deu o que pensar. Falarei sobre isso depois, em outra reflexão.
E muito mais coisas aconteceram, mas de tão concentradas me escaparam à memória. E por estarmos na Liberdade e com fome, fomos juntos almoçar, para celebrar o encontro. E por estarmos em liberdade, foi bom, muito bom, termos mais uma horinha juntos, falando da vida e dos astros, comendo sushis e devorando sonhos.
Depois de bastante tempo sem que conseguíssemos nos encontrar, marcamos uma noite comum: a quinta-feira que antecedia o feriado da Páscoa. Nesse tempo entre um ensaio e outro, engendrei algumas idéias para cenografia e figurino.
Estava um pouco inquieta para conseguir passar um código sobre a violência que a peça contém, e não cair no erro de ficar somente no encontro amoroso. A estrutura do texto tem essa atmosfera bélica do início ao fim, e o amor dos dois só chega àquela intensidade impressionante e encantadora porque é cercado pela densidade que gera a violência e, sobretudo, pela iminência da morte.
Além disso, havia a precipitação. A tragédia da precipitação, segundo o ator Eduardo Moreira, do grupo Galpão, quando explicava o uso das pernas de pau na montagem do grupo: o clima de instabilidade. Então fiquei imaginando como trazer isso à cena. Pensei em colocar um balanço no palco, depois me veio à mente uma rede de pesca com leds, conformando um céu estrelado, gerando um véu que protege Romeu e Julieta, onde eles poderiam também se pendurar, sugerindo a trama da outra realidade que eles plasmaram com seu amor. Cheguei a tentar descolar uma rede, quando a luz da consciência bateu sobre minha cabeça. Era óbvio que não teria tempo pra isso. Mesmo se conseguisse, ia passar mais tempo tentando pendurar a coisa do que ensaiando com ela.
Retornei do meu delírio ainda inquieta. Arame farpado? Poderia ser. Seria ótimo ter arame sobre o palco, mas voltei ao problema da falta de tempo. Talvez projetado. Descolei, certa vez, um retroprojetor que gostaria de experimentar em cena, ver que efeitos podemos gerar colocando objetos nele. Me pareceu mais adequado ao tempo que tenho, e ao tamanho da cena. Mas ainda assim queria algo concreto sobre o palco, além dos atores.
Depois percebi que tudo isso era uma grande ansiedade porque não conseguia ensaiar, e estava tentando me apoiar em recursos externos. O mar infinito das possibilidades de encenação, a parafernália para me tranquilizar porque não tinha o essencial: O humano. Eu tinha passado por uma semana absolutamente pragmática, burocrática, e com risco de transformar um processo até então bem prazeroso num tormento. Pela graça de algum passarinho que piou de madrugada, lembrei que a pesquisa era, simplesmente, a ação das palavras sobre o corpo, sobre os sentimentos. Está tudo no texto, e com um bom trabalho com os atores, imagino que essa atmosfera possa ser ressaltada sem necessidade de muitos elementos. Mas essa é sempre a opção radical, e também é a mais próxima da que escolhi como pesquisa. Então percebi como é fácil, nesse momento do processo de direção, que a mente divague pedindo socorro, que o espaço cênico seja preenchido por muitas coisas – mesmo que essa não seja sua opção, tudo por medo de não ter atingido o essencial, por medo de que o código não seja claro. Mas se Peter Brook faz com um tapete…
No meio disso tudo, acabei indo assistir ao filme sobre (e para) Pina Bausch, de Win Wenders. Fui sozinha, numa tarde de terça, pedindo por inspiração como quem pede por água quando se tem sede. Então recebi muita água, e em abundância. Então pude também derramar os meus rios sobre testemunhas silenciosas, o escuro e a amplitude da sala de cinema. Eu já havia sido vítima do rapto inevitável do trabalho do Tanztheater Wuppertal, mas aquilo é um sempre-susto. E o que já era uma das minhas referências há muito tempo tornou-se a definitiva pra esse trabalho. Nada me parece mais adequado: um palco aberto com poucos elementos, e seres deixando que seus corpos sirvam ao inexplicável. Lembrei da referência de Romeu molhado, e mais uma vez divaguei com terra e água sobre o palco, mas foi numa conversa com alguns amigos, Bruno Ribeiro e Renata Oliveira, que cheguei em algo possível: um palco forrado por algumas rosas e pequenas flores de papel crepon, um figurino claro e molhado que vai se sujando de tinta vermelha. Simples e realizável.
Além da plástica inspirada por Pina, colhi mais uma pérola de seu trabalho: o efeito cumulativo das ações repetidas. É um dos traços de identidade da sua poética, não era novidade para mim, mas revendo agora, à luz do efeito reator que observo em Romeu e Julieta, percebi que isso pode se dar também na camada das ações físicas, além do efeito gerado pela carpintaria do texto. Claro, isso pode ficar bastante estilizado como uma dança, mas também pode se sutilizar em alguns gestos. O corpo move a ação, a ação se acumula e revela, para alem dela, o nosso pathos. Ainda não sabia exatamente como usar isso em cena, mas guardei a possibilidade.
E quinta à noite, cidade fervendo de calor e vontade de festa, mais uma vez nos reunimos. Garbel estava viajando para visitar a família, então éramos Cris, Dani e eu, e também a Renata, que convidei para esse encontro. E do último ensaio para esse, a única coisa que tinha ficado no lugar era o fundo infinito do estúdio. Parecia que todos passavam por um tempo de provações, e não vou entrar em detalhes porque o assunto não diz respeito só a mim, mas posso dizer que, nesse dia, fazer um ensaio de Romeu e Julieta e falar de amor foi praticamente uma ironia dos deuses. E como a ironia está bastante presente no texto, imaginei que estava tudo certo.
Estamos realmente vivendo tempos estranhos. E estranho também foi ver que eles estranharam o fato de terem se atrasado mais de uma hora e não terem sido recebidos com impaciência, mesmo com todos os problemas que justificavam. Porque hoje é estranho ter problemas pessoais, porque também é estranho ter vida pessoal quando se trata de trabalho. E a essa estranheza chamam profissionalismo, e não ao constante esforço de fazer o melhor dentro do ofício que você escolheu realizar. E o fato de ter o amor como regente de nossos encontros, como a tônica de nosso trabalho, ser motivo de surpresas, deveria ser motivo de espanto. Porque não poderia ser de outra forma, ainda que fosse pela simples coerência com o conteúdo que estamos burilando.
Esses pequenos detalhes no campo das relações, mais que as guerras, ou a tensão evidente das ruas, ou qualquer outra coisa que vêm à mente ao pensarmos na palavra violência, é o que deixa para mim evidente a necessidade desse texto hoje, bem como falar do amor incondicional. Somos todos permeáveis. Romeu foi permeável, e daí o seu ponto de virada ao trágico. Aceitamos a violência como algo natural, inerente, e não como algo mecânico, mas passível de direcionamento. E o problema da violência é que ela parece terrível para quem a vê de fora, mas irresistível para quem sente o impulso. Ao entrar na rede de ilusão traçada por esse impulso, somos manipulados como “joguetes do destino”, e só retornamos desse transe momentâneo pelo esgotamento da energia vital, ou pela imagem da consequência. É, portanto, uma energia tão potente quanto o amor, e seu maior antagonista. E o importante, na análise da peça, é perceber que isso não acontece apenas fora, mas também dentro da egrégora formada pelo casal. Apesar de compartilharem momentos de pura perfeição, em que talvez estivessem acima desses sentimentos, são humanos como todos nós, seu lugar é na terra, reino de todos os sentimentos. E esse “subir e descer” é parte de seu movimento. O branco, em contato com a terra, não está impassível de se colorir.
E essa era a camada que faltava, ainda, à cena. Então, antes de começar o aquecimento, conversamos um pouco sobre as idéias de flores vermelhas, somada a algumas sugestões da Renata de uma poeira colorida. Depois me ocorreu também misturar tudo isso àqueles lança-confetes de festa, uns canudos que estouram liberando papéis coloridos, que também podem sugerir um estouro de uma arma – e para a cena de Mercúcio pode funcionar bem. Dani sugeriu que eles começassem a cena montando esse cenário, molhando o figurino, e achei bem interessante, porque logo de cara já se apresenta a linguagem ritualística que estamos priorizando, sem espaço e tempo cronologicamente definidos. Pensei em usar o pó para delimitar um círculo. Coisas que só poderemos experimentar numa próxima vez.
Dali, partimos para o ensaio da cena. Começamos com o baile, que já estava mais firme, apesar de ainda patinarem no texto. Gostei de perceber que o que trabalhamos no ensaio anterior, o jogo e a sensualidade da cena, ainda estavam ali. E algo ficou bem claro: quanto mais o texto era dito durante o jogo físico, melhor ele ficava. Sem a pressa para o próximo verso, podendo preencher os entreversos com ações, sem se prender a uma musicalidade obrigatória. Tivemos bons momentos. O jogo está bem claro. Não consegui fechar ainda uma partitura, porque isso implicaria em ficar parando, e não tínhamos muito tempo. Anotei momentos que gostei, e fomos adiante, para a cena do balcão.
Eu estava com receio dessa cena. Como disse, passei a semana pensando se não deveria colocar algum elemento no palco, qualquer coisa que desse a mínima idéia de um balcão, ou um jardim, ou qualquer coisa. Além do delírio da rede de pesca e do balanço, cheguei a cogitar uma escada -o já comentado pedido de socorro ao objeto concreto. Mas como eu não tinha nada disso naquele momento, pedi para que fizessem como na cena do Baile: que começassem em uma diagonal, cada um em uma ponta, e aos poucos fossem se aproximando, pensando no mesmo jogo da outra cena: um pega-pega sutil. E os dois foram desenhando os momentos com os corpos, e uma dança muito bonita apareceu. Então não eram apenas Romeu e Julieta na cena do balcão, mas dois adolescentes rolando pelo chão e curtindo o amor recém-descoberto. Muitos beijos. Cris preferiu fazer a cena sem camisa, e adorei o resultado. Então percebi que o baile e o balcão não eram duas cenas diferentes, mas a mesma cena em momentos diferentes. Ambas tratam da delícia do encontro – porém, na segunda, já existe a informação mais clara do perigo iminente. Então percebi uma aplicação possível à estrutura de acumulação da partitura física inspirada por Pina Bausch. A mesma pulsão, alguns mesmos movimentos, em crescente de intensidade. E o efeito-reator também se desenha sobre os corpos.
Além disso, mais uma descoberta: percebemos que nos momentos em que o texto era dito durante uma ação, inclusive sendo entrecortado por ela, seja por por um beijo, ou por uma respiração, um movimento, aí ele brilhava. Aí não era declamado, e sim vivenciado. Aí era o ponto em que a poesia se corporificava, porque também era sentida com os poros.
O mais engraçado é que isso aconteceu justamente num trecho que para mim era um problema pessoal. Nessa fala de Romeu:
Romeu – Ai! Mas nos teus olhos tem mais perigo
que em vinte espadas de inimigos.
basta um doce olhar do teu olhar
e ficarei imune a qualquer ódio.
Toda vez que eu lia isso, um espírito de porco se aproximava do meu ouvido e cantarolava Tiro ao Álvaro, do Adoniran.
(…) Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estriquinina
Que peixeira de baiano (…)
Confesso que tenho minhas cretinices, mas isso me atrapalhava muito. E justo nesse pedaço, Romeu resolveu falar enquanto beijava Julieta e caminhavam juntos, como um único corpo. Foi tão, tão lindo, que entendi, nesse ponto, o que deveriam fazer durante o texto inteiro. E isso tudo se deu com eles ainda lendo papel nas mãos, lendo o que ainda não estava decorado. Posso imaginar onde pode chegar, quando estiverem com olhos e mãos livres.
Passamos a cena duas vezes. Um esboço de partitura se desenhou. Mesmo com os problemas que temos, mesmo que ainda, em alguns momentos o texto soe declamado, na maior parte do tempo o jogo está presente, e a atmosfera é muito bem preenchida. Há muita potência nos corpos, e há um querer genuíno aproximando os dois. O afastamento só se dá pelo prazer do novo encontro, para manter o jogo aceso. Assim como diz o trecho:
Julieta – (…) Boa noite, boa noite!
Ah, que essa doce calma que me enche o coração
encha também a sua alma!
Romeu – Vais deixar-me assim, insatisfeito?
Julieta – Mas que satisfação esperas ainda, essa noite, de mim?
Romeu – Tuas sagradas juras de amor,
em troca das que te jurei.
Julieta – E as que antes de pedires eu dei?
Pois seria melhor que não as tivesse dado!
Romeu – Por que razão, amor, quer retirá-las?
Julieta – Assim, uma vez mais, poderia lhe dar.
Mas estou desejando o que já tenho.
Minha bondade é como o mar: profunda e ilimitada.
Quanto mais eu te der, mais tenho, pois ambos são infinitos.
E mais uma vez, sobre um fundo infinito branco, passamos por essas palavras. Cristiano manifestou a delícia que é dizer esse texto. Dani acrescentou que nunca teve dificuldades para decorar, mas que no caso dessa peça essa resistência se apresenta. Vendo o ensaio, acho que essas duas observações se complementam, porque fica óbvio que é um texto para ser vivido, e não apenas dito. É evidente a influência da ação de um sobre o texto do outro, e talvez seja a cena o lugar em que ele deve ser totalmente memorizado. Porque é pela ação que ele faz sentido.
Gostaria de ter experimentado a versão em inglês, para sentirmos juntos o movimento e a música no idioma em que o poema foi originalmente escrito. Mas assim como no ensaio de hoje compartilhamos do texto sua ironia, também sentimos a escassez do tempo. Talvez num próximo encontro, com o texto finalmente decorado, isso se dê. Mas em escala de prioridade, não está em primeiro plano.
Fiquei com a impressão de que ainda há muito a fazer, mas que algo importante já foi conquistado. O que me tranquilizou foi sentir a atmosfera deixada no estúdio depois do ensaio, prova de que o essencial se apresentou. Agora falta lapidar a pedra, que aparentemente já foi descoberta da terra. Não sei se terei tempo suficiente, até a apresentação da cena, para que isso aconteça, mas esse é o rumo que gostaria de tomar a partir de agora.
Combinamos os próximos encontros: como Dani e Cris estão reestreiando o Orfeu Mestiço (do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos), na semana seguinte não conseguiremos nos ver. Pedi para que passassem o texto juntos, em algum momento, para que finalmente possa ser decorado. Teremos agora apenas dois encontros antes da apresentação: o ensaio geral no próximo sábado e um ensaio no meio da semana que antecede o final de semana da apresentação.
Então, entre amor e chocolates, nos despedimos.
Essa foi uma semana atípica de começo de Outono. Não conseguimos nos encontrar, apesar de dois encontros marcados. Como pedi para que o que regesse esse processo fosse o aprendizado, não faria o menor sentido brigar com as circunstâncias, especialmente aquelas fora do nosso alcance. E se nesse ano de 2012 as coisas estão realmente intensas, como creem vários – inclusive eu – achei por bem entender a mensagem, a começar por algo óbvio: o que significa essa mudança de estação?
“O útero da Mãe Terra é representado pela caverna do Urso. É o lugar de morrer para renascer. Da nutrição e da proteção. Do mundo subterrâneo e da escuridão, o Feminino Profundo. (…)
Segundo Meadows, o Outono vai se firmando, criando uma tensão. Ao sair do verão, o tempo flutua diariamente as vezes com o morno e como as chuvas do frio do inverno. A natureza faz a passagem da estação do crescimento e da produtividade para a estação da colheita e do ajuste. Onde o urso nos ensina o valor de sonhar, de entrar na introspecção, e como usar isso para a manifestação na realidade física.
O poder do Espírito do Oeste é a Introspecção, a Consolidação. A última colheita, quando para o crescimento e o esquema natural das coisas.
Humanos armazenam frutos dos seus esforços e também examinam a si mesmos para descobrir mudanças necessárias para progredir, quando o tempo de renovação chegar.
Entramos na Caverna do Urso, no lugar de introspecção e de escutar…”
(fonte: site do Viavidya)
Além da chegada do Outono, as estrelas revelam o fenômeno de mercúrio retrógrado. Isso quer dizer que podem acontecer:
(fonte: site de Vanessa Tuleski)
Introspecção + problemas de comunicação. E talvez outras coisas, porque nunca vi tanta gente com problemas de saúde variados ao mesmo tempo. Não foi só aquela virosezinha típica de mudança de estação, aquela que serve à indústria farmacêutica. Eram coisas complexas, limpezas profundas, e pelo menos três integrantes de nosso pequeno grupo de cinco (incluindo Tatiana), por razões diversas, pediram tempo.
O que isso tem a ver com a peça?
E dá pra fazer teatro desconectado do seu tempo? Não. Palco não é museu. E de tantas coisas a filtrar entre as tantas notícias cotidianas, fiquei com essas duas, porque são também da época de Shakespeare, em que outonos também existiam, assim como os humores dos astros. Aliás, são eles que regem a peça desde o início, no prólogo-soneto onde conta-se que from forth the fatal loins of these two foes, a pair of star-cross’d lovers take their life.
E o texto é povoado por leituras estelares, intuições vindas dos céus. E mercúrio não é, também, Mercutio? E não é o drama disparado também pelas falhas de comunicação? Historicamente, todos os desentendimentos mútuos entre as famílias, cuja incapacidade de dialogar geraram o enrijecimento, terreno fértil para as tragédias. E depois, no tempo cronológico da peça, a história é repleta de personagens que não se escutam, mensagens extraviadas e a própria tragédia final se dá por um pequeno lapso de tempo (se Romeu esperasse mais um pouco pra tomar aquele veneno…)
Então, nessa semana, sem poder ensaiar, dediquei-me ao estudo da peça. Reli os teóricos já lidos, e foi grande a minha surpresa em descobrir coisas novas. Posso dizer sem medo de errar que essas horas passadas com os livros foram o melhor da semana. Ando cansada de máquinas (especialmente carros e computadores) e desse cotidiano doente e acelerado, então esse estudo me reporta a um tempo mais lento, a uma época em que nem se sabia que era a Terra que girava em torno do sol, e as estrelas eram um pouco mais que pontos reproduzíveis em planetários. Então regredi alguns séculos, ou talvez saltei dimensões – pois se o tempo é só uma forma de enxergar realidades simultâneas e sobrepostas, pode ser que eu também ainda viva, em algum lugar, ao lado das margens do Tâmisa. Lembro do que senti certa vez, estando lá no Globe, mesmo sendo apenas uma réplica: uma identificação estranha, certa alegria familiar e instigante, em plena Londres de 2006 que, para mim, era bem asfixiante.
Se o estudo desse texto é uma fusão entre mundos, o meu de agora e o daquela época, ou até mesmo no tempo em que Romeu e Giulietta eram de carne e osso, na Itália-berço dessa história, pode ser que Mercuccio morto tenha virado do avesso a comunicação daquele tempo quando, parece, era verão. E sendo Verona ou um palco, de alguma forma isso tudo me gera uma profunda identificação. Desde uma fresca memória de infância, em que vi o filme pela primeira vez. Ou talvez antes.
E peço aos céus que nos tragam lucidez e saúde. E que consigamos deixar morrer o que não mais nos pertence, por mais difícil que seja, para nos jogar no fluxo do que é vivo. Por mais que pareça suicídio. Para depois descobrir que suicídio não é buscar a morte, mas não querer nascer.
(talvez isso mude minha leitura do final (trágico?) da peça. assunto pra um outro momento.)