enquanto passo um café

– Dona Chaleira, por que a senhora usa uma cartola e essa bengala curva?

– Na verdade, mocinha, não sou uma chaleira, mas um ilustre cogumelo trajando uma casaca vermelha.

– Então por que te vejo com essa forma, soltando fogo pelas ventas?

– Porque, minha querida, você acaba de me lamber.

 

o fim

Eram apenas dois olhos vertendo, vertendo, vertendo…

Sentiu seus braços se erguendo em prece,

e todos os seus espinhos saindo, lentamente,  do centro do peito em direção à superfície.

Sua pele, enfim, enrijeceu,

a antiga ardência nas plantas dos pés deu passagem a pequenas raízes,

e a água que era antes jorrava agora também provinha da terra.

 

Olhou adiante e não mais viu o deserto,

apenas uma enorme pradaria sedenta por novo saber.

 

Olhou além do horizonte e perdeu-se, enfim, de seu próprio mirar

 

Ergueu-se entre nuvens frescas

e viu, lá de cima, pela última vez,

um único cacto remanescente sombreando a aridez,

futuro remanso para outros errantes fatigados.

 

Despediu-se do antigo invólucro,

sorriu em gratidão,

engendrou novas promessas,

teceu uma outra trama.

 

Então partiu para um próximo sonho onde, enfim, tornaria-se rosa.

 

 

 

(obrigada, Lauren.

Enfim, livre.)

 

 

 

 

 

um fim

Num dia de mais caminhar errante

deixando, ao sul, um rastro de fio sangrado dos pés,

um vento bateu no já sempre ar cáustico.

 

Que era esse sopro? – sussurou-lhe à morada,

depois deslocou com leveza o eixo do mapa de suas miragens

livrou-lhe a areia dos olhos,

arranhou-lhe a fina casca das tantas feridas,

revelou a represa.

 

Então Lauren ficou ali, lavrando um vasto mundo de infinitas perdas.

Lavando a poeira de tantos desertos caminhados

banhando-se de água salgada,

ai, doce acalanto que brota dos cantos de si.

 

Passou ali algumas eras

era muitas, e tantas dela levavam às costas flores vincadas na carne.

Da miragem, nada restava.

Da promessa, apenas a seca visão de mais pesadelos de sangue e torpor.

 

Então decidiu: enterrou ali sua esperança.

Com ela, a coleira,

aquela que arrancou do pescoço, antes atada às mãos do diabo.

 

Enlutou, por três dias, o Cão e a Rosa.

Depois partiu sem partir.

 

Não buscou novos caminhos.  

Não aceitou seu destino inexorável.

Pairou em um não-lugar, paradoxo.

 

Mas esse não era o rascunho de nova miragem desenhada,

era um profundo desejo de alma gritada.

Ficou ali mergulhada nesse novo sentimento,

nessa nova fonte que jorrava do mais profundo desespero.

Nada mais importava: nem caminhar, nem morrer.

 

Plantou-se, imóvel, abaixo de sol e estrelas em incansável alternância.

Parou ali. 

vereda da promessa

A flor da pele

é feita por fios brotados de fendas

conta casos de dessassossego

desmedidas deseducadas

vermelhas pétalas desamparadas em terra seca e bruta 

surgidas em pés de quem caminha em desertos

(crendo, ainda, nos oásis gramados

mesmo que em outras eras)

Arremedo de flor cheirosa,

caminho traçado por espinhos arando aridez

Esperança de rosa

de terra fofa e cuidada,

única promessa de quem escala tantas pontas.

A princesa e o pescador

Lenora, uma princesa encantada, linda e formosa, já havia recebido a visita de inúmeros pretendentes. Os mais corajosos traziam-lhe objetos exóticos de lugares distantes, os mais líricos criavam versos de amor incomparáveis, aqueles mais impetuosos lhe ofereciam jóias jamais sonhadas, com pedras puríssimas trazidas de minas profundas. Porém tudo para ela era inútil. Os presentes que conseguiam entrar pelos portões do palácio transformavam-se em pedra bruta, da mais comum, na melhor das hipóteses. Palavras amáveis e lindas canções soavam como ofensas e guinchos, provocando um terror jamais visto, sobrepondo-se ao esplendor da princesa.

Era essa a maldição do palácio, lançada há muitos e muitos anos por um velho feiticeiro que se sentira desprezado por Lenora: Nunca mais ela poderia ser amada por nenhum outro ser vivente. Mas por se tratar de um homem perverso, concedeu a ela um único fio de esperança: uma remotíssima saída. A única forma da princesa quebrar o feitiço seria cruzar os portões do palácio de mãos dadas com outro ser humano.

Para isso, cada pretendente teria que se submeter a três grandes provas: Na primeira, passando por dois guardas, deveria ofertar seu maior tesouro. Ricos príncipes, de posse de um valioso bem – mas não o mais precioso – terminavam ali sua jornada atingidos implacavelmente por um raio, pois o feitiço assegurava que nenhuma mentira fosse encoberta. A segunda prova era curta, porém intensa: Cruzar a ponte levadiça, que provocava logo ao primeiro passo um tremor jamais sentido, despertando um medo intenso e uma instabilidade sem tamanho.

Por mais difíceis que fossem as duas primeiras provas, até ali muitos conseguiram chegar. Mas o feiticeiro, conhecedor da sombra dos homens, sabia que humano algum suportaria a metamorfose à qual estaria sujeito na terceira prova. Dessa forma, ele selou sua vingança: A princesa estaria fadada a algo mais cruel que a solidão infinita: estaria sujeita à eterna espera.

Lenora não sabia disso, e atava-se a essa possibilidade como a única razão de viver. Do alto de sua torre, avistava cada um dos seus pretendentes que ousava se aproximar do castelo, testemunhando, em muda torcida, alguns que chegavam perto dos portões. Nessa hora, sempre, um corvo sobrevoava sua cabeça e grasnava com voz metálica, parecida à do feiticeiro: Jamais! Ao ver a profecia confirmada, a princesa lamentava, e foi tornando-se, pouco a pouco, a Dama dos Tristes Ais. 

Muito tempo se passou, porém o encantamento, para a princesa, tinha o efeito contrário: Tornava-a cada dia mais bela e desejada. Ano a ano, aumentava a fila de príncipes, cavaleiros, ricos comerciantes, todos instigados pela maldição do castelo. Um nobre e corajoso príncipe, certa vez, chegara bem perto, conseguira passar pelas duas primeiras provas e, mais que nenhum outro, esteve próximo de cruzar a terceira. Ele levava consigo dois tesouros ofertados: em uma das mãos, uma espada do mais puro metal, cravejada de diamantes. Na outra, a rosa mais perfeita e delicada que seu reino havia produzido. Os portões estavam sempre abertos, nenhuma outra resistência era oferecida. Mas ao segurar a rosa um pouco além do limiar, já no interior do castelo, vira com terror a flor murchar num segundo, enquanto verrugas virulentas brotavam por sua pele ao lado de grandes pêlos grossos, suas unhas cresciam e ficavam amareladas, e isso já foi o suficiente para que ele cortasse sua mão com a preciosa espada e corresse horrorizado para nunca mais voltar. Nunca mais.

Mesmo com essas histórias correndo léguas, ainda não lhe faltavam ofertas. O brilho emanado por Lenora era como um grande farol, orientando viajantes de terras cada vez mais longínquas. Enquanto esperava, tornou-se quase como uma estrela cintilante, transformando seu desejo numa dança infinita em que girava, girava, girava do alto de sua torre de eterna esperança.

Um certo dia, um jovem pescador apresentou-se. No passado, sua origem humilde tornaria seu acesso ao castelo absolutamente proibido, mas depois de tantos séculos em que a maldição operava, os critérios primordialmente estabelecidos foram sendo esquecidos, estendendo o acesso às populações mais simples. Trazia em suas mãos sua oferenda: uma pequena vara de bambu com um pedacinho de chumbo ligado ao anzol, seu instrumento de trabalho. Enganchado a ele, um pequeno peixe dourado, porém de um brilho vívido, que lhe custara anos de audaciosa estratégia, paciência e habilidade para que fosse fisgado. Era, certamente, seu maior tesouro. Desse modo, passou pela primeira prova, apesar de ter sido recebido pela guarda com gargalhadas por sua ingênua pretensão. Mas ele não se abalou. Nascido em uma aldeia próxima ao castelo, havia sido cativado pelo brilho pulsante da Dama dos Tristezais desde a tenra infância, e toda sua vida foi dedicada a se preparar para aquele momento.

Ao chegar na ponte, resistiu aos tremores que tomavam seu corpo como ondas, começando pelos pés e depois atingindo a própria estrutura óssea, como se seus músculos virassem água e seu corpo perdesse todos os contornos. O medo que sentiu foi incomparável, mas ele já havia atravessado algumas tormentas marítimas, e confiante que mais uma vez a sorte estaria ao seu lado, navegando nas ondas que seu corpo emanava, conseguiu chegar até os portões.

Mas frente a frente ao umbral, ele oscilou.

Lá do alto, o corvo profetizou: Jamais.

Então ele lembrou-se do verso que, desde menino,

ouvia junto aos ruídos do cais.

No limiar de entrada, outra voz encantada indagou:

Quem és tu, ó peregrino, que bate nesse portal?

Sou marinheiro, retirante, da tribo dos homens do sal

Para ofertar à princesa, trago-lhe esse vil metal

E preso ao chumbo, atado ao gancho, esse dourado animal.

Que em sacrifício se deu, tirando da terra o mal.

Feito ele, agora eu

me entrego ao destino fatal.

Fechando os olhos, sem mais oscilar, num salto o pescador adentrou no castelo. Sua pele foi dilacerada enquanto ele se tornava uma enorme e terrível criatura, e todo seu nobre sentimento tornou-se forte desejo de aniquilar brutalmente qualquer forma de beleza. O peixe dourado que ele carregava fez-se em cinzas imediatamente. Seu caminhar tornou-se pesado e errático, ainda agravado pela cegueira. Porém, ao dar três passos para dentro do castelo, das cinzas onde jazia o peixe nasceu um enorme boto de ouro. Ao abrir seu bico, deixou sair o mar de lágrimas que a Dama dos Tristezais verteu por toda a eternidade que atravessara em pranto. Com o mesmo bico atirou a criatura em seu dorso e foi nadando pelas escadas, tal como uma cachoeira invertida, até o aposento onde vivia a princesa.

Ao sentir a força das águas que atingiram o topo da torre, Lenora, cuja dança já havia se transformado num transe, abriu os olhos pela primeira vez em séculos. Em segundos, o ser grotesco no qual o pescador havia se transformado avançou sobre ela, mas o brilho que emanava do boto fundiu-se com a luz que ela também irradiava, obrigando o horrível ser a abrir os seus grandes olhos amarelos. Nesse momento, ela mirou na retina do monstro que a devorava e viu, lá no fundo, o olhar do pescador.

Então, no mais denso e escuro, se encontraram,

e palma a palma, pelas mãos se beijaram.

Palma a palma, o portal atravessaram.

Alma a alma, para sempre se amaram.

E “nunca mais”…

Nunca mais escutaram.

A Rainha das Pérolas

Tudo começou com apenas uma pérola que ela havia encontrado na beira do mar. Era de uma beleza rara, pura e muito brilhante. Naquela época, ela era apenas uma menina que brincava nos altos das montanhas, conversando com as estrelas. Então surpreendeu-se ao ver o presente que o mar lhe trouxera.

Brincou com a pérola, encantada com seu brilho. Guardou-a numa pequena caixinha que havia ganhado da avó, e sentia-se agraciada pelo lindo presente trazido pelas ondas. Tanto que, no ano seguinte, ficou feliz em saber que voltariam à mesma praia.

A época era a mesma. O sol brilhava muito parecido.

Mas o mar havia mudado.

As ondas traziam apenas conchas vazias. Lindas conchas, algumas pintadinhas de madrepérolas. Mas nada de grandes surpresas.

A menina esperou muitos dias. Durante toda a temporada na praia, esperava que as ondas lhe trouxessem, novamente, um tesouro. Mas nada lhe aparecia. Até que, no último dia de suas férias ali, ela fez um pedido ao mar: se ele lhe enviasse outra pérola, ela lhe devotaria sua vida.

Terminado o pedido, a menina chorou. E qual foi sua surpresa ao ver que, ao tocar aquela lágrima, sentiu que era uma pérola o que seus dedos acariciavam. Ela ficou radiante com aquele novo presente, e uma nova lágrima desceu, e era também uma pérola perfeita. Porém, ao tentar colher as esferas do seu rosto, a menina percebeu que elas estavam coladas à sua pele. Desesperada, entrou no mar, para ver se a água poderia soltá-las, e ao mergulhar o rosto nas ondas, ela foi atraída, como se uma grande força a puxasse, para as profundezas do oceano.

Lá chegando, a esperava um lindo palácio totalmente torneado em madrepérolas e corais. Seres encantados receberam-na com muita festa, e coroaram-na como uma grande rainha há muito tempo perdida e finalmente encontrada. Contaram-lhe histórias sobre como ela havia desaparecido de seu berço mágico, ainda bebê, e levada à superfície para ser criada com os seres humanos. Sereias entoavam as mais lindas canções em alegria pela sua volta, e toda uma corte foi gerada para acolher a rainha em seu castelo esplendoroso.

Seu reino era de uma riqueza infinita. Só havia abundância, cores desconhecidas aos olhos humanos e harmonia. A ela, foi reservado um aposento magnífico, com almofadas de uma maciez jamais vista, tramadas pelo fio mais fino das algas encantadas.

Todos riam e cantavam. No dia de sua chegada, banquetearam em sua homenagem. A então rainha observava tudo completamente em êxtase, até que lhe pediram que ela lhes concedessem algumas palavras.

Ao tentar falar, a rainha percebeu que não havia voz possível no fundo do oceano. Então ela se concentrou, e toda sua vontade foi derramada em uma nova pérola, uma terceira, que também tornou parte de seu rosto. Ao verem aquela mágica, os seres aplaudiram extasiados. A rainha ficou feliz, e novamente tentou falar. Mas nada ainda lhe saía da boca. Depois de um minuto de silêncio e expectativa, uma sereia iniciou timidamente um canto, e logo várias somaram-se ao coro, e o palácio foi inundado pela música mais pura que seus ouvidos já conheceram.

As músicas formavam histórias em seu coração…

Então a rainha suspirou, sentindo um leve torpor. Amparada pelo canto daquelas encantadoras criaturas, tocou as pequenas pérolas em seu rosto, sentindo-as tão belas, e olhou para seu reflexo nas paredes de madrepérolas, sentindo-se também muito bela. Aninhou-se nos mimos e concluiu que era feliz ali.

Então ela acostumou-se a falar no silêncio. Passava os dias a contemplar seu reino, comovida com tanta beleza. E uma vez a cada ano, subia até o alto do seu castelo, até o alto da torre, para contemplar seu mundo e todos os habitantes reunido em um só coro de infinitas vozes. Era o ritual mais importante, e acontecia na décima terceira vez que a lua tornava-se pérola radiante no céu acima do oceano. Nesse dia, e só nesse dia, lhe surgia um desejo irresistível de também cantar. E ao abrir a boca, o canto lhe saía pelos olhos na forma de uma nova pérola radiante.

Ano após ano, as pérolas formaram uma linda máscara, um tesouro vivo, composto por mil vezes mil circunferências perfeitas.

A rainha foi se tornando pesada, e cada vez mais imóvel. Não podendo mais sair, ela alimentava-se das histórias que ouvia pelos cantos das sereias ao lado do seu trono. E eram infinitas as lendas, e uma mais linda que a outra. A rainha perguntava-se como poderia ter vivido sem conhecer tantas histórias. Não entendia como não chegaram à superfície, pois uma vez cantadas, espalhavam-se pelo reino com uma velocidade de um raio. Até que ouviu a lenda do que aconteciam àquelas histórias ao cruzarem o fio prateado das águas: mudavam sua natureza, tornavam-se líquidas, móveis, e compunham parte da superfície espelhada da areia beijada pelas ondas. Depois retornavam ao profundo, novamente sugadas pelo mar.

Passaram-se muitos e muitos anos, tantos que não haveria grãos de areia ou estrelas suficientes para contar. A rainha já havia se tornado lendária, e seu rosto-máscara era tão radiante que nem as próprias criaturas encantadas o suportavam mais. Somente uma vez a cada tempo, no dia de maior escuridão, na noite sem lua e de estrelas apagadas, ela podia mostrar-se lá do alto, tal como um sol, e assim contemplar seu reino, e somar mais uma esfera radiante a sua máscara, cada vez mais pesada.

Até que chegou o dia em que nem a mais escura das noites comportava a intensidade de tantas pérolas radiantes. E ela não podia mais ouvir as histórias, nem contemplar o seu reino, muito menos ser vista.

Ela não dormia mais. Nem acordava. Seu pulso era mínimo, como um eterno transe.

Seu reino estava em perigo.

Sua única saída era descer. Descer ao mais profundo do oceano, o único lugar em que a escuridão era ainda maior que se brilho.

E a rainha desceu. Desceu, desceu, desceu numa escada de dez mil caracóis. Desceu, desceu, desceu.

Escuro
Só escuta.

Desceu, desceu, desceu
e no mais escuro, conseguiu silenciar os olhos,
dormiu.

Não se sabe quanto tempo ali ficou.

A única mudança que acontecia era quando a lua, lá em cima, tornava-se novamente pérola radiante no céu escuro. No ápice do brilho da lua, saía do meio de suas pernas um líquido avermelhado, que logo se misturava ao intenso azul das profundezas, envolvendo-a de uma suave névoa violeta.

um leve pulsar, respiração quase imperceptível.

sem quase respirar, seu reino murchou.

as criaturas desapareceram, e o castelo ficou abandonado.

a única coisa que se movia era a suave névoa violeta, que espalhava-se pelo mar de tempos em tempos, colorindo nas ondas um sinal de vida.

e o violeta vagou, vagou, até chegar em um ponto do mar onde se entoavam cantos de rosas e risos. Um canto do mar onde se ouvia alegria. Não se sabe se eram sereias, bruxas submersas ou princesas anfíbias, mas era fato que sua música pintava com cores douradas o frio das duras correntes.

E o canto daquelas que riam reverberou ao mais profundo do oceano, levando de volta a névoa violeta com um leve movimento de dança espiralada.

E a nuvem carregada de risos vagou, vagou, desceu, esquentando de dourado o azul escuro profundo…

Até que um dia, no céu, a lua novamente brilhava qual grande pérola prateada. Nesse mesmo dia, a névoa voltou à rainha e, ao tocar sua pele, essa onda provocou um suave deslocamento. E a primeira de suas pérolas alinhou-se perfeitamente com a lua.

A tensão da distância gerou um íma, uma atração irresistível, desejo de fusão jamais visto.

O feito gerou movimento no céu e no mar: ondas celestes de nuvens galopando ventos, ondas marítimas revirando areias.

E uma tempestade aconteceu na superfície, com uma força jamais vista. Tão forte que chegou ao mais profundo do oceano, onda nada parecia se mover.

e lá no fundo, uma onda se fez,

e lá do fundo, ela despertou,

não se sabe como, ouviu os risos da menina que brincava nas ondas.

e uma corrente de água quente passou pelas suas pernas, e ela sentiu alegria, um prazer desconhecido, e então sonhou que era mulher.

E sonhou que amava, mesmo sem conhecer o amor,

e teve uma sede infinita.

E um grande raio rasgou o céu até as profundezas, rompeu a máscara em mil vezes mil vezes mil pérolas, que se espalharam pelo oceano compondo traçados tal qual constelações

E livre, a mulher sonhou com um céu estrelado, com uma menina que brincava nas montanhas e conversava com as estrelas,

e a menina acendeu uma fogueira,

e aquele fogo lhe deu vontade de cantar. Mas com medo que lhe brotasse mais uma pérola, ela segurou o choro.

Então o impulso saíu-lhe pela boca. não conseguindo segurar, ela deixou sair não apenas pérolas, mas pedras preciosas de todas as cores. Poderia sufocar, mas seguiu cantando. até que perdeu os sentidos e mergulhou num azul intenso, infinito, límpido e puro. Deixou-se cair nesse silêncio,

e então abriu-se uma fenda no oceano, de onde ela emergiu.

Acordou na beira do mar. Tossiu muito, tirou água da boca, mas alguma coisa ainda lhe obstruía a garganta. então ela vomitou uma última pérola. Uma pérola perfeita, radiante. E ela, colocando-se de pé, surpreendeu-se ao ver que já era uma mulher.

E então ela olhou para a pérola em suas mãos, e surpreendeu-se ao ver que ela estava descascando. Soltou a brilhante camada de madrepérola, tornando-se uma semente.

Então a mulher voltou às montanhas. Era tanta a saudade daquela terra que a mulher deitou-se e agradeceu.

Sob a luz das estrelas, plantou a semente mutante. Então teve vontade de chorar, mas dessa vez foram águas que verteram de seus olhos. E ela ofereceu essa fonte pura à semente que havia plantado. E a semente tornou-se uma grande árvore.

E ela descobriu que tinha frio,

e acendeu uma fogueira.

E a mulher abriu a boca, temerosa. Não sabia porque, mas infinitas músicas dançavam no seu coração, e ela precisava cantar. Ensaiou um canto tímido, que logo cresceu. E tornou-se um canto tão forte que logo chegaram pessoas.

E ela ganhou amigos, e fez ali a sua casa, à sombra da árvore, ao pé da montanha.

E todas as noites, à luz da lua, deixa sair uma história. Daquelas tantas que lhe contaram as sereias.

E assim foi, até o último dia de sua vida, em que ela voltou às estrelas.

canto do templo daquelas que riem

Há um templo.

Há um trono.

Nesse trono, sentadas em  pérola,

precioso grão-fonte de puro prazer,

somos.

 

Nesse ser, geradas em festa,

encobertas por véus da floresta dos sonhos,

emergimos.

 

Frente ao mar, num coro oscilante

pulsando nas palmas da pura alegria,

dançamos,

cantamos,

subimos…

 

E bebemos os fluidos de lua na noite estrelada dos ternos delírios,

acendemos fogueira de cura na terra sulcada de tensos abismos,

ofertamos, no topo da torre, o gosto da vida banhada de rios

e lambemos o gosto orvalhado da pele lustrada de gozos e risos.

 

orquidia

Senhor Rosa

ele já tinha sido assaltado mais de 20 vezes.

ele tinha uma rosa de plástico no painel do seu taxi.

ele me mostrou uma marca de bala na porta do carro.

ele dirigia à noite, mas agora anda só de dia.

ele disse que piorou muito de dois anos pra cá.

ele era muito simpático.

ele me disso tudo isso em cinco minutos de rota.

fazer o que?

– o sr. já pensou em mudar de profissão?

– eu não sei fazer outra coisa, né? e ninguém me dá oportunidade…

– esse táxi é seu?

– ainda não, tô pagando. o que era meu me roubaram.

– ah…

assim falou cedefina

Cedefina é uma menina não tão fininha, apesar da dieta. Mas também não é gordinha, porque faz dieta. É tipo na média.

Cedefina adorava CDs.

mas gostava mesmo era da caixinha quadrada, porque ela segurava o disco.

as formas redondos davam muitas voltas na sua cabeça…