
quem?

de Claudia Pucci Abrahão
Qual é o palco?
Qual o lugar que me resta?
Se sou chamada pra festa mas nela não me cabe mais?
Qual é a voz?
Qual é o tom que se expressa?
Se sou um sol que infesta, ou chama que não satisfaz?
Qual a canção?
Qual é a nota liberta?
.
.
Se sou um som que espreita
.
Eita
Eita
.
Se sou um eco que clama
.
Ama
Ama
.
Se sou
Sou?
.
u.
.
.
(poema integrante do conto fantástico A Rainha das Pérolas)
Este título – o mais perfeito, ao meu ver, para traduzir o ofício de ghostwriter – não foi escrito por mim. É o nome de um conto de Gabriel Garcia Márquez.
Eu poderia ter pensado em outras palavras, mas foram exatamente essas que me vieram à mente. Mas, ao tomá-las de empréstimo, foi inevitável me deparar com o dilema: por que eu não criei um título original? Por que, sendo capaz de forjar personagens, histórias, universos, eu decidi me expressar através de palavras cunhadas por outro escritor?
(Eis a questão.)
O trabalho de quem escreve por encomenda passa por lugares assim, espinhosos. Não me refiro àqueles “jobs” solicitados por pessoas mais práticas, que buscam reunir em algumas páginas um conteúdo específico, por conhecerem a potência que esse objeto carrega. Um filho, uma árvore, um livro – não é essa a tríade da imortalidade? Tais pessoas não querem escrever, só precisam de seu nome na capa para circularem com o livro pelo mundo, como síntese do seu conhecimento, ou da sua história de vida.
Porém há um segundo grupo: o das pessoas que querem muito escrever, mas não se sentem prontas para isso. É aí que vivem as maiores contradições. Porque, ao mesmo tempo em que sentem-se agraciados por ter sua expressão perfeitamente transposta em frases, parágrafos e capítulos, pode-se ouvir, de um lugar bem longínquo, com uma ponta de tristeza: “Por que não fui capaz de criar algo assim?” Nesse caso, o termo “ghostwriter” torna-se irônico: ele, que deveria se referir ao ocultamento da escritora ou escritor contratado, pode acabar nomeando um sentimento de ausência de quem contrata. O “ghost” torna-se o nome que consta na capa, uma presença vazia num conteúdo forjado. Por isso, não raro, a pessoa pode se sentir uma fraude. E, por mais que esse tenha sido o “combinado”, esse desassossego cobra seu espaço, e acaba invadindo a arena dos afetos.
É possível também que aconteça o contrário: uma escritora ou escritor que, por jamais assinar seus textos, sente-se como um ser ausente não apenas nas obras que escreve, mas na sua própria expressão no mundo. Esse é um perigo constante para quem se aluga para sonhar: não mais lembrar onde fica a própria casa.
Acho que já deu para perceber o quão dramático pode ser esse ofício. Eu poderia contar páginas e páginas sobre a vida de uma ghostwriter, incluindo passagens de inveja, vaidade, transtornos de personalidade e até abusos – Deem a uma escritora um mote, e ela pode lhe devolver um romance. Mas, sinceramente, prefiro falar sobre como duas pessoas em plena sintonia podem compor uma história juntas – ainda que apenas uma delas dê àquela obra palavras. É essa a relação me interessa construir. E digo “construir” porque descobri que ela não está dada de saída, precisa ser intencionada no passo a passo do trabalho.
Isso começa dando voz à pessoa que te contrata. Não apenas no livro, mas na própria relação interpessoal. Para mim, a pessoa que assina o livro deve ser, no mínimo, uma coautora. E isso pode acontecer sem que ela redija uma linha sequer, mas é essencial que reconheça, em cada palavra criada, algo que falaria. Ou até algo que já disse, nos tantos encontros prévios à escrita propriamente dita, recheados de memórias, insights e conversas profundas que – ao menos na minha metodologia – são parte fundamental do processo criativo.
Essa coautoria se constrói com alteridade. E esse conceito, para funcionar bem, precisa ser uma via de mão dupla. É esse o campo de força que compõe um bom livro por encomenda, quando nos reconhecemos nas histórias do outro, a ponto de também serem nossas. Não por posse, mas por identificação.
Você me mostrou parte da minha história, e eu te mostrei as palavras que a eternizam.
Nessa dança, não há fantasmas.
Apenas conexão.
(ilustração de @desenhonario / @lucasdrlopes )
Há mais de vinte anos, me entreguei a esse ofício: o da escuta. Como escritora, roteirista, dramaturga, poeta, seja qual for a forma que a letra dança nos vácuos do silêncio, entendi: a gente escreve com os ouvidos. As mãos apenas tocam o teclado, como teclas de piano, compondo a canção.
Pelo menos comigo é assim.
Comecei a escrever em salas de ensaio, na caverna da dramaturga que testemunhava o rito, buscando sintetizar o caldeirão de impressões fomentado a cada laboratório teatral. Depois, quando me tornei uma autora solitária (ou em solitude) entrei nas cavernas de mim, e de lá comecei a ouvir as personagens que vivem dentro. Tantas. Algumas constrangidas, esquecidas, ocultas pelo medo da minha própria sombra. Outras relegadas a ela. Beldades pintadas de purpurina, outras tortas, todas ambíguas. Pouco a pouco, iam se mostrando. Decibel por decibel.
A seguir, a vida me trouxe o ofício de escrever as histórias de outras pessoas. Memórias, relatos, travessias de vida, reflexões. Por sintonia, a maioria mulheres. Muitas, de todas as idades e tipos, vivas ou mortas (sim, já conversei com elas), que me sopravam sua história (e sua estética, e sua voz) enriquecendo absurdamente minha compreensão da própria vida, e das muitas facetas que carregamos.
Finalmente, comecei meus encontros com as mulheres que escrevem, artistas como eu que, ainda que tenham “um teto todo seu”, ainda caminham na direção de uma autonomia artística.
(Nesse percurso, vou junto. Chamo isso de consultoria literária, embora o nome seja outro. É um partilhar da aventura.)
Na semana deste 8 de março, faço um imenso agradecimento a todas elas. Porque juntas partilhamos não apenas histórias, mas relatos inconfessáveis (ou nem tanto), dores invisibilizadas, sonhos aparentemente impossíveis, tudo isso tomando forma de histórias. Não vou expor aqui nomes ou rostos, por respeito à intimidade, mas apenas digo: vocês me tornam melhor. Através de vocês, de sua trajetória, de suas relações, conexões, essa aventura da vida torna-se mais suave, porque é na alteridade que eu colho a coragem para ir além do que me amedronta. Vocês, mulheres queridas, puxam em mim a coragem de ser, de me contar, de seguir mesmo sem rumo, confiando que sempre há uma estrutura, ainda que invisível, orientando nossa jornada.
Hoje eu presto homenagem, então, a essas tantas mulheres que caminham comigo. As tantas da minha ancestralidade, as que em mim vivem, equilibradas ou desequilibradas, e àquelas que caminham compartilhando comigo nesse espaço tempo, dividindo a lira, o amor pelas palavras e esse maravilhoso ofício de contar…
… E, com isso, fiar um destino.
(Ilustração de Eve Mae)
Ah Bituca amado!
O que foi esse show, meu Deus, o que foi isso? Por um instante lembrei do que é ser humana, lembrei que a realidade pode ser doce, que em meio a tantos gases lacrimogêneos os sonhos não envelhecem, tecem, tecem, tecem…
Que show foi esse, minha gente, que me fez mergulhar na nascente, abrir memórias da infância, que me encheu de esperança, que me fez ter vontade de abraçar todo mundo, que me fez respirar de pulmão cheio e lembrar de tanto ar que ainda cabe, que me relembrou que somos feitos de sonhos eternos…
Ah Milton! Obrigada por dar vida às Min(h)as Gerais que guardam mistérios cheios de graça, por mostrar que nas esquinas podemos encontrar muito mais que desvario infértil, que o amor é muito, muito, muito mais potente que qualquer outra influência nefasta que tente se achegar…
Que show foi esse meus Deus? Minha Deusa, meus Deuses, todos os Anjos cantantes… essa gente toda junta celebrando o AMOR, o amor, o amor, a música, a poesia, a amizade, a força da canção quando sai do lado esquerdo do peito … ai minha terra!!! O poder dessas montanhas, desse sorriso sincero, do afeto que cura que cura tudo e rio rio rio rio rio….
Que coragem essa despedida! É preciso ter força e muita raça pra aguentar viver esse momento! Celebrar nosso tempo com sua dor e alegria, sobretudo com tanta tanta tanta poesia.
Obrigada Milton. É preciso ter sonho sempre, e você nunca me deixará esquecer disso. Talvez porque eu também escuto essa canção das montanhas, aquela mesma que faz a gente ter essa estranha, (talvez mineira) mania
de ter fé na vida.
(Imagens do show “A Última Sessão de Música” , realizado no dia 13/11/22, no Mineirão, em BH. Esse foi o último show da carreira de Milton Nascimento, mas sua música segue para sempre)
Mãe e filha estão lado a lado.
A filha está grávida. A mãe, inquieta.
MÃE
Mas você me chamou muito cedo! Podia ter esperado.
FILHA
Você é que não quis esperar! Eu não te chamei, você quis vir sem me perguntar nada!
MÃE
São dez horas de viagem, não ia dar pra vir de repente.
FILHA
Ainda falta.
MÃE
Agora eu sei que falta.
FILHA
Eu te falei pelo telefone!
MÃE
É, mas agora eu tô vendo.
Filha desiste de argumentar.
Tempo
MÃE
É que você sabe, nossa família tem um histórico de…
FILHA
Eu sei.
MÃE
Não tô dizendo que vai acontecer, só que pode acont…
FILHA
Eu não preciso ficar ouvindo isso.
MÃE
Tá, tá. Não tá mais aqui quem falou!
Silêncio.
FILHA
Também não precisa ficar sem falar nada!
Mãe aproxima-se da filha.
MÃE
Como é que ela tá?
FILHA
Tá linda! Mesmo no ultrassom.
MÃE
Você nasceu bem bonitinha.
FILHA
Já dá pra ver as bochechas, acredita? E já tá encaixada, na posição, a parteira falou que…
MÃE
Eu não disse? Vai que essa menina nasce assim, de repente, e você sem ninguém aqui.
FILHA
Eu não sou sozinha!
MÃE
Sem mãe. Sem mãe pra te ajudar.
Tempo.
MÃE
Ainda mais dessa forma que você escolheu de…
FILHA
Fica quieta!
MÃE
Ainda mais desse jeito.
Tempo.
A filha afasta-se da mãe.
MÃE
Eu só quero seu bem.
FILHA
Eu sei.
MÃE
Não sabe. Só vai saber depois.
FILHA
O que você quer que eu faça?
MÃE
Eu quero que você me escute.
FILHA
Não, você quer que eu faça o que você quer que eu faça.
MÃE
Tá vendo? Você não me ouve!
FILHA
Então fala.
MÃE
A nossa família tem um histórico…
FILHA
Não fala!
MÃE
De aborto.
FILHA
Eu disse pra não falar!
MÃE
Eu falo pro seu bem.
FILHA
Isso você já falou. Mil vezes.
MÃE
Por que é sempre tão difícil conversar com você?
Tempo.
Filha senta-se ao lado da mãe.
FILHA
Olha, eu fiz pré-natal direitinho, tá tudo certo, não tem risco, entendeu? E isso aí que você tem medo, quando acontece, é mais no começo da gestação.
MÃE
Sua prima perdeu com oito meses. Completos.
FILHA
Eu desisto.
MÃE
Devia desistir mesmo. Essa loucura de parir em casa… Custa ir pra um hospital?
FILHA
Custa respeitar minhas decisões?
MÃE
Você não sabe o que é isso, perder uma criança. Você não sabe o que é isso. Tô falando pra você se cuidar! Pensar, pensar, pensar! Deixar de ser louca! Irresponsável! Agora você não pode mais ser assim, vai ter uma vida pra cuidar…
FILHA
Eu já entendi. Você veio antes pra tentar me convencer a viver do seu jeito.
MÃE
Você está vendo tudo enviesado!
FILHA
Tá claríssimo agora!
MÃE
Você não pode ficar nervosa!
FILHA
Para de dizer o que eu tenho que fazer!
MÃE
Eu estou falando pro seu bem!
FILHA
Bem? O que é o bem? Se tá falando pro meu bem, me fala, então! O que é o bem pra você? Porque a gente não pode estar falando da mesma coisa!
MÃE
Por que você transforma tudo em uma guerra?
FILHA
Porque onde não tem respeito tem guerra, mãe!
MÃE
Você não pode ficar nervosa! Fica calma!
FILHA
Por quê? Por que eu preciso ficar calma?
MÃE
A nossa família tem um histórico…
A filha levanta-se, exaltada.
MÃE
Eu tenho medo que…
FILHA
Eu sei que tem. Eu cresci nesse mar fofo de medo, nesse conforto de medo, nessa massa disforme de medo misturada com carinho e cuidado. Antes de aprender quem eu era, eu passei a ter medo de coisa que nem sabia. E sabe do que eu tenho mais medo agora? Sabe? De quem tem medo. Porque são essas pessoas, essas, fedendo a paranoia, que são capazes de tudo. São escravas desse terror, e pior, se sentem senhores! Agem como superheróis lutando contra delírios. Delírios! São capazes de qualquer coisa, só pra se livrar desse desespero! Um desespero que não passa. Não veem mais nada, não escutam, não pensam! Só correm, correm, correm, atropelando tudo pela frente, desde que dê segurança.. Eu bebia seu medo junto com leite, mãe. E seu medo foi tanto que o leite secou em um mês! De tanto medo que você tinha que o seu leite faltasse. De que eu faltasse. De que a vida faltasse!
Silêncio.
A mãe levanta-se.
MÃE
Você nunca passou fome!
FILHA
Eu sei.
MÃE
Eu nunca… nunca quis te fazer mal.
FILHA
Desculpa.
Tempo
A mulher-mãe está abalada. A fala da mulher-filha ainda ressoa, trazendo à tona feridas.
MÃE
São… capazes de qualquer coisa… pela segurança.
FILHA
Eu não queria tocar nesse assunto.
MÃE
Ele é tão onipresente que volta. Sempre volta. Sempre, sempre volta.
FILHA
O meu pai…
MÃE
Não fala!
Tempo.
FILHA
Ainda não passou?
MÃE
Não sei.
FILHA
Você foi muito corajosa.
MÃE
Não sei.
FILHA
Mas eu sei.
MÃE
Como você consegue?
FILHA
O que?
MÃE
Não ter medo?
FILHA
Eu também tenho medo.
MÃE
Não parece.
FILHA
A vida protege a gente, mãe.
MÃE
Será?
FILHA
Você sempre me protegeu.
MÃE
Nem sempre.
FILHA
O suficiente. Até demais.
Tempo.
MÃE
Eu só queria… que a nossa família…sobrevivesse.
FILHA
Nossa família vai viver.
Ela já está viva!
Vem aqui, sente ela chutando!
Mulher-mãe aproxima-se da mulher-filha. Senta-se ao lado dela, e coloca a mão na sua barriga.
Ficam assim por um tempo, em silêncio.
Aos poucos, a filha encosta a cabeça no ombro da mãe.
MÃE
Acho que ela vai ser brava que nem você.
FILHA
Ela vai ser o que ela quiser ser.
MÃE
Já escolheu um nome?
FILHA
Ainda não.
MÃE
O nome da sua avó era tão bonito…
FILHA
Esperanza.
MÃE
(carrega no sotaque espanhol)
Esperanza!
FILHA
Fala de novo?
MÃE
Esperanza!
FILHA
Esperanza!
MÃE
Esperanza!
As duas riem.
No meio da risada, a filha emite um som mais agudo, como um grito.
MÃE
O que é que foi? Tá tudo bem?
FILHA
Tá!
Começou mãe! Começou!
FIM
Cena apresentada no Dramamix, Satyrianas, em 13/11/22
Elenco: Pri Maggrih e Michele Cardoso
“Em um altar, ao lado de uma cesta de flores, há sempre uma cesta de pedras”.
Essa frase foi soprada no meu ouvido, e desde então, penso sobre ela.
Não é uma crítica à sincera devoção, que sim, existe. É sobre um determinado tipo de “devotos” – às vezes chamados de seguidores – que na verdade são perseguidores. Do poder, do trono, e também de qualquer pessoa ou proposta que atrapalhe seu projeto individualista.
Pois bem, são esses “devotos” que levam flores a um altar onde padece seu manequim, a quem chamam de líder. O boneco mitificado, também iludido, pensa ser ele o objeto de adoração, e crê que o poder que experimenta é seu.
Não, é emprestado.
Não percebe que sua própria face foi transformada em mortalha, onde são projetados os rostos de cada um de seus adoradores no momento em que se curvam. Mas, quando o boneco passa a se mover por si mesmo e deixa de prestar o serviço de ser uma tela de projeção, os mesmos adoradores voltam seu olhar para a cesta de pedras.
E atacam.
O manequim, então, se percebe sozinho, e não entende como seus milhões de seguidores desapareceram. É porque nunca existiram. Adoram, na verdade, o poder que poderiam ganhar através dele, que não era nada além de mais um degrau para a ascensão.
Na pirâmide social.
A pirâmide é uma forma interessante. São quatro faces que, quando elevadas, encontram-se em um ponto comum, que as unifica. Representa, portanto, a visão integral, a confluência na diversidade. Vista assim, em dinâmica, é uma forma-síntese da evolução da consciência, que integra as várias faces que nos divide internamente. Formas similares, como as espirais, já foram utilizadas por diferentes culturas como símbolo da transformação interna, que acontece devido ao movimento em direção ao alto.
Um movimento.
A pirâmide, portanto, como uma imagem de percurso unificador, é um símbolo de integração interna e externa. Porém, se sua forma torna-se estática, como uma arquibancada de classes e poderes onde são fixados seres da mesma espécie e de igual grandeza, uma doença se instala. Porque, assim como acontece no nosso corpo, algo que deveria fluir fica estagnado.
Nessa pausa forçada, ao invés do movimento ser um caminhar coletivo para a unidade, torna-se uma luta incessável pela ocupação do topo. Que deveria ser de todas e todos, no seu momento coletivo de caminhar rumo ao ápice.
São essas duas visões que experimentamos hoje. Grupos que acreditam na comunhão, em caminhar juntos, em integrarmos as singularidades, e aqueles que precisam garantir que nada se mova, porque creem, ilusoriamente, que estão sentados em uma camada mais arejada da dita pirâmide, e temem perder seu suposto privilégio. Sofrem miseravelmente o terror dessa perda, condicionam seu presente a uma luta inglória pela manutenção do que acreditam ser estático. Passam a vida tentando segurar o fluxo da vida, tornando-se doentes, posto que a vida é perpétuo movimento.
A cura consiste em liberar esse fluxo e confiar que os “altos e baixos” não são determinados por castas sociais, mas pelo quanto que conseguimos caminhar em direção ao nosso centro.
Cada vez mais leves e livres, e em comum união.
Sobre A Filha Perdida
O livro já foi um susto, e o filme o materializou de forma primorosa para mim.
Acendeu-se o debate.
Acordei sobressaltada com sonhos relacionados.
Eu, que sou mãe por escolha, ainda assim estremeci. Não pelo impacto das emoções da personagem (sombra intimamente conhecida), mas pela coragem de Elena Ferrante (e de Maggie Gyllenhaal, que escreve e dirige o a adaptação cinematográfica) de expurgarem o indizível.
Reflito: qual o impacto da nossa época no que hoje chamamos de maternidade?
Essa imensa, intensa carga mental a que as mães são submetidas não é algo natural, não é resultado da maternidade em si, mas da forma insana como nossas relações estão configuradas, de como nos organizamos socialmente. Performar maternidade perfeita é uma pressão a mais, mais um item a ser ticado na lista de metas diárias. Nesse caso, além de corrermos atrás da estrelinha, ainda fugimos do monstro da culpa. Entre o esgotamento e o banimento da Mamaland, ficamos com o primeiro. E ainda tomamos para nós o mérito de conseguirmos, sozinhas, a proeza de criar a prole.
(importamos a meritocracia proletária, e ainda não remunerada)
Até que a gente abra mão.
Não da maternidade em si, caso seja importante. Mas do modelo.
Uma coisa, para mim, é atravessar a fileira de renúncias que a maternidade exige. Veja bem, estou falando de escolhas, não de sacrifícios. Certa vez, um grande amigo e mestre querido definiu essa palavra, renúncia, como um “investimento naquilo que é realmente importante”. Achei maravilhosa essa definição, porque ela me ajuda a discernir quando me deparo com aquelas decisões em encruzilhadas. Decisões em ir ou ficar. Quando é importante maternar, quando e essencial me dedicar a outras atividades. Nem falo de passar três anos longe, mas curtos períodos de solitude em que precisei entender quem eu era depois de tudo. Depois de me tornar uma, duas, três, mil.
Não, a gente não deveria se dividir. É isso o que quebra a gente.
Não, eu não sou mil em uma. Sou uma. E gostaria de ser cada vez mais inteira.
Renunciar ao que me afasta de mim, o essencial que me nutre.
Qual a diferença, então, entre uma renúncia e um sacrifício?
Renunciar é abrir mão do que, no momento, é menos importante do que é essencial. No caso, estar presente. E também ter a sinceridade de revelar as nossas emoções, o cansaço e nossa necessidade de estarmos a sós para os próprios filhos. Exigir que eles tenham essa noção é uma inversão absurda. É a gente que ensina esse limite quando conseguimos viver essa verdade sem culpa.
Sacrifício é abrir mão do que não poderia ser renunciado, não sem cortar um pedaço de quem se é.
Isso cobra seu preço.
Como diferenciar uma coisa da outra?
Eis a questão.
Lembrando que a possibilidade de escolher não abrir mão de um tempo nosso só é possível com uma rede de apoio. Para mim, nunca se fez tão obviamente necessária essa rede como depois de ter me tornado mãe. Nunca a falácia do individualismo se mostrou tão claramente. Somos seres gregários, e aquela história de que é necessária uma aldeia inteira para se criar um ser humano, para mim, é bem real.
Sem essa rede, eu não seria nada.
Sem essa rede, meus filhos teriam apenas meu cansaço e meu sacrifício, que seriam cobrados com juros futuros.
E olha que nem mencionei nada sobre o machismo estrutural, que é parte essencial desse drama, porque senão esse texto seria um livro.
Só comento: pai não é apoio, é corresponsável.
Não, eu não me basto.
Não, sozinha eu não dou conta.
Nem preciso dar.
4.7. Hoje.
Entre sensações ambíguas, mergulhando nas rachaduras, pedi de presente um abraço do sol.
Estava frio, e ele me acolheu.
Mirando as cicatrizes no cimento, revelou-se o além do solo desgastado.
Havia pontos radiantes.
Constelações que brilhavam em pleno dia, encarnadas.
Talvez as estrelas que me sussurraram fossem ilusão de ótica, desvio de olhos cansados.
Talvez (não).
Não fosse o desgaste do tempo, escurecendo o cinza, não haveria o brilho revelado pelo contraste.
Não há concreto que resista quando o espelho da alma te convida a sonhar.
(escrito no dia do meu aniversário, mas postado só hoje)
Entre sensações ambíguas, mergulhando nas rachaduras, pedi de presente um abraço do sol.
Estava frio, e ele me acolheu.
Mirando as cicatrizes no cimento, revelou-se o além do solo desgastado.
Havia pontos radiantes.
Constelações que brilhavam em pleno dia, encarnadas.
Talvez as estrelas que me sussurraram fossem ilusão de ótica, desvio de olhos cansados.
Talvez (não).
Não fosse o desgaste do tempo, escurecendo o cinza, não haveria o brilho revelado pelo contraste.
Não há concreto que resista quando o espelho da alma te convida a sonhar.