Sobre a Filha Perdida

Sobre A Filha Perdida

O livro já foi um susto, e o filme o materializou de forma primorosa para mim.

Acendeu-se o debate.

Acordei sobressaltada com sonhos relacionados.

Eu, que sou mãe por escolha, ainda assim estremeci. Não pelo impacto das emoções da personagem (sombra intimamente conhecida), mas pela coragem de Elena Ferrante (e de Maggie Gyllenhaal, que escreve e dirige o a adaptação cinematográfica) de expurgarem o indizível.

Reflito: qual o impacto da nossa época no que hoje chamamos de maternidade?

Essa imensa, intensa carga mental a que as mães são submetidas não é algo natural, não é resultado da maternidade em si, mas da forma insana como nossas relações estão configuradas, de como nos organizamos socialmente. Performar maternidade perfeita é uma pressão a mais, mais um item a ser ticado na lista de metas diárias. Nesse caso, além de corrermos atrás da estrelinha, ainda fugimos do monstro da culpa. Entre o esgotamento e o banimento da Mamaland, ficamos com o primeiro. E ainda tomamos para nós o mérito de conseguirmos, sozinhas, a proeza de criar a prole.

(importamos a meritocracia proletária, e ainda não remunerada)

Até que a gente abra mão.

Não da maternidade em si, caso seja importante. Mas do modelo.

Uma coisa, para mim, é atravessar a fileira de renúncias que a maternidade exige. Veja bem, estou falando de escolhas, não de sacrifícios. Certa vez, um grande amigo e mestre querido definiu essa palavra, renúncia, como um “investimento naquilo que é realmente importante”. Achei maravilhosa essa definição, porque ela me ajuda a discernir quando me deparo com aquelas decisões em encruzilhadas. Decisões em ir ou ficar. Quando é importante maternar, quando e essencial me dedicar a outras atividades. Nem falo de passar três anos longe, mas curtos períodos de solitude em que precisei entender quem eu era depois de tudo. Depois de me tornar uma, duas, três, mil.

Não, a gente não deveria se dividir. É isso o que quebra a gente.

Não, eu não sou mil em uma. Sou uma. E gostaria de ser cada vez mais inteira.

Renunciar ao que me afasta de mim, o essencial que me nutre.

Qual a diferença, então, entre uma renúncia e um sacrifício?

Renunciar é abrir mão do que, no momento, é menos importante do que é essencial. No caso, estar presente. E também ter a sinceridade de revelar as nossas emoções, o cansaço e nossa necessidade de estarmos a sós para os próprios filhos. Exigir que eles tenham essa noção é uma inversão absurda. É a gente que ensina esse limite quando conseguimos viver essa verdade sem culpa.

Sacrifício é abrir mão do que não poderia ser renunciado, não sem cortar um pedaço de quem se é.

Isso cobra seu preço.

Como diferenciar uma coisa da outra?

Eis a questão.

Lembrando que a possibilidade de escolher não abrir mão de um tempo nosso só é possível com uma rede de apoio. Para mim, nunca se fez tão obviamente necessária essa rede como depois de ter me tornado mãe. Nunca a falácia do individualismo se mostrou tão claramente. Somos seres gregários, e aquela história de que é necessária uma aldeia inteira para se criar um ser humano, para mim, é bem real.

Sem essa rede, eu não seria nada.

Sem essa rede, meus filhos teriam apenas meu cansaço e meu sacrifício, que seriam cobrados com juros futuros.

E olha que nem mencionei nada sobre o machismo estrutural, que é parte essencial desse drama, porque senão esse texto seria um livro.

Só comento: pai não é apoio, é corresponsável.

Não, eu não me basto.

Não, sozinha eu não dou conta.

Nem preciso dar.

só hoje.

Foco no abacaxi, que ele tá quase estragando, coloca a roupa da máquina, tira a batata do forno, concentra também no job que já tá atrasado e aproveita e foca no corpo que anda meio parado que que custa andar um pouco e também fazer yoga cadê horário ainda bem que a minha mãe recém operada tá bem e tenho uma irmã e um irmão e toda família ajudando foca agora no sorteio dos boletos pendura uns mas não esquece de tirar do prego sem sonhar com livro no prelo porque agora não da tempo nem pra sentar e nem pra acento pontuação é privilégio reticências nem se fala mas ponto final tem que colocar minha filha entrega logo esse job pra pegar os próximos graças a Deus que tem trabalho não posso reclamar de nada mas reclamo sim dessa familicia e sua corja de seguidores passando motosserra em tudo cagando por onde passam uberizando geral e deixando corpos empilhados e um país inteiro pra gente arrumar lembra do abacaxi senão vai desperdiçar bora virar esse jogo esse ano tem eleição chega desse martírio não fica parada que nem fruta na fruteira esperando alguém tomar uma providência senão você vira banana tipo exportação dada quase de graça com propina em paraíso.

Ou tipo essa aí, que perdeu o ponto.

.

(Vai lá. Descasca logo esse abacaxi.)

Mulher:

Eu tenho frio.
Um corpo arrepio.
É um corpo sem pontas, arredondado,
pedindo por presença como um vaso,
cheio de vazio, de futuro.
 
Quem sou eu?
 
Silêncio.
 
Um canto que vibra depois da última nota. Espreitando, esperando, o dia em que puder ser.
Ou talvez ser agora, no auge da dureza do mundo.
Porque eu broto do contrário.
 
Quantas vezes vou ter que nascer e renascer, ainda nascendo mulher, ainda tentando
entender de corpo inteiro como é se jogar assim, sem o mínimo de resposta, no escuro?
 
Sem vela?
 
Na hora mais escura da noite, aquele segundo em que todas as estrelas piscam?
Quem sou eu? A pausa no respirar nas estrelas?
 
Confesso.
 
Confesso sentir o amor como uma flor escancarada no peito. Confesso medo quase insuportável de queimar nesse calor.
Nessa ida até onde nem sei, confesso.
 
Eu confesso, mas não me orgulho.
 
Confesso não ter seguido meu pulso.
 
Confesso ter desdenhado a dor de tantas outras, confesso ter tentado fugir,
confesso ter nascido no fluxo, confesso ter memória pequena, confesso ter deixado de ouvir o canto,
confesso ter me resignado às migalhas do pouco desse tempo, confesso ter cortado os pulsos e deixado esvair meu ser inutilmente, confesso ter destilado veneno por pura inveja de quem nada teme, confesso ter submetido o meu pranto ao martírio de causas levianas, confesso ter julgado as tantas outras formas de vida,
 
confesso ter me perdido da vida. Confesso ter me deixado na sombra.
 
Confesso ter congelado um sorriso cordial e covarde, confesso a dor da memória de um tempo que eu tenho o medo do acesso, confesso a dor desmedida de quem não esconde ferida exposta,
confesso ter incendiado a minha casa antiga e velha e mofada,
confesso ter me atirado na longa jornada sem pão e sem rumo,

 
confesso soberba danada de quem não confia na ajuda dos homens,
confesso soluço jogado a esmo sem ter uma voz que acalante,

confesso a procura de um tempo onde o ser volta à tona parindo sorrisos,
confesso o peso das coisas que hei de largar mas ainda carrego,

confesso a esperança de ter vislumbrado a saída num longo caminho,
confesso a fé que se escora nos olhos vendados e mãos estendidas,
confesso difícil a entrega pra quem foi julgada, traída e perdida,

confesso uma chance presente de rever história com olhos crianças,
confesso desejo de ser plenamente o que sonho com ar de lembrança,
confesso desejo de dar nova chance a essa vida que é nova e que chama.
 
Confesso que não quero mais confessar.
 
Pelos lados, quero só respirar.
 
Conspirar.
 
Ligar traços,
 
desenhar constelações.
 
 
(trecho da peça teatral Jukebox, publicada no livro Campo de Transe, Editora Presságio.
Arte da Milá Bottura Dias da Silva)

Marielle presente em verde rosa e purpurina

Esse é só o começo.

Não se detém, de forma alguma, o que está no cerne de uma nação.
Em 2018, no auge do meu desalento, eu pensei: “Como as forças dessa terra permitiram isso? Tanto ódio, tanta injustiça?”

Difícil lidar com tanto, partindo da ignorância de quem vive a vida em tempo linear, segundo após segundo, ao rés do chão. Mas em suave perspectiva histórica, poucos meses depois, a despeito de gritos despeitados, a semente não apenas brotou. Rompeu o solo com tudo e desabrochou na maior ópera a céu aberto do planeta.

Eis nossa resistência: o grito forjado na festa. No passo do corpo livre, ao som de tambores, mexendo com tudo, deixando de lado todo moralismo que nunca foi nosso: veio importado em pele extrativista.

Pois bem, bem-vida seja a nossa cura. Pois se as sombras todas também saíram em desfile, é tempo de cuidar. E harmonia, como uma escola de samba bem sabe, não um exército marchando uníssono no medo e na violência covarde. É diversidade que dança junto, cada qual a seu passo, movida pelo sentido de alegria e beleza.

Valeu, Mangueira, por ter me lavado a alma!

 

Performers hold flags with an image of slain councilwoman Marielle Franco during the perform of the Mangueira samba school during Carnival celebrations at the Sambadrome in Rio de Janeiro, Brazil, Tuesday, March 5, 2019. (AP Photo/Silvia Izquierdo)

 

 

 

Meu inverno é fluxo. Minha paz é vermelha.

 
30 dias já. Nada dela chegar.
Isso é terrível. Essa suspensão, sob um céu cinza, trovejante.
Tempestade que ameaça, mas nada de água.
 
Às portas da tenda, aguardo a autorização para o repouso. Tenho me dado esse suspiro: pelo menos, um certo recolhimento. Aquele, para a refazenda.
(ai, abacate do Gil, fruta-fêmea que se escuta e respeita).
 
Mas nada.
Não é gravidez, fiz até o teste. Nada excepcional.
Apenas espera.
 
O fluxo, antes, era reduzido. De 28 pra 25. Três dias apenas na conta da diferença, até passei em consulta pra ver se tudo bem ficar assim, “desregulada” e tal – contudo, em segredo, gostava dessa estação adiantada. O resguardo virou luxo em tempos de tanto barulho. Essa era minha pequena subversão: adiantar-me à lua. Experimentava o fluxo ora na cheia, ora minguante, nova ou crescente, esse pequeno delay me fazia caminhante pelas fases, vivendo o descanso em cada uma delas.
 
Agora, tudo parou.
Aguardo, estática, a chegada da quarta estação. Anseio por ela, que para mim não é fria.
É silêncio.
 
Mas nada.
 
Quem me avisa?
“Não farei mais por você, ó mente inquieta, a tarefa de apaziguar tremores.”
Avisa a mim ou o que penso ser, identificada com o pensamento que já voa além do calendário gregoriano?
 
Corpo, taurino que é por essência, empacou.
A cabeça do touro, forma-útero, então me falou por dentro, por baixo, do centro:
 
“Se eu sou você, então venha aqui me escutar. Venha e seja, desidentifique-se com a palavra corpo, como algo que se vê sem estar. Corpo é só ser, coisa una. Seja corpo, e deixe a mente ser o outro – até estranho – a que você se refere como coisa fora de si.”
 
Muito confuso – pensou o ser-mente, coisa que penso ser.
 
“Seja, ou não sentirás mais o giro do fuso” – Sentenciou.
 
Sede de vermelho. Sede de fluxo, do descanso do ciclo. Quero noite, quero escuro, quero a caverna que me refaz e acalenta. Quero o colo da mãe, aquele que me embala nesses três/quatro dias de júbilo. Quero sangue.
 
Em mim, o inverno ainda aguarda.
Céus em tempestade.
Nunca senti que seria tão desesperadora a imortalidade.

há que se cuidar

Há que se cuidar do broto

pra que a vida nos dê flor

e

fruto.

Três brotinhos: esse foi o templo que a vida me concedeu nos últimos tempos.

Parei. Tive que parar tanta coisa. Tive que começar tanta coisa… A cada um que chegava, rever minha própria chegança. Porque há que se tomar tempo pro tempo de cria. Há também que se ter alma lúcida. Há que muita coisa. Mas também há o que está além do “há que”.

Para além do “avental todo sujo de ovo”, comerciais de mamãe-bebê, cartilhas de mãe moderna, todo e qualquer modelo do que ser mãe significa e se ressignifica ao longo de todos os tempos, essa parte da música do Milton trouxe, de repente, de forma linda e sintética, a noção do que é esse ofício: um imenso laboratório alquímico. Ou, se preferir, a figueira debaixo da qual sentou Buda. Campo para transformação, ou até transmutação.

Começa com o corpo. Mas além do parto, o que ainda nos espera? A longa estrada da criança: criar além da chegança. Burilar palmo a palmo da pequena alma que eu era, nesse reflexo renovado que, dia a dia, me abraça e mira com todo amor que um dia sonhei sentir.

Cuidar do broto, a cada dia. Entender que espírito é esse que me brindou com sua presença. Ouvir nossa história juntos. Conduzir carinhosamente essa plantinha até a elevação máxima dos seus potenciais, ser também solo, terra. E quando sentir as raízes profundas no corpo do meu ser, confiar que o sol fará sua parte.  Celebrar cada flor que desabrocha, exalando um perfume ímpar: saber-se testemunha do propósito, então do filho, alcançado, vertendo em novos frutos pro mundo.

A co-criação com a vida: é isso, mãe?

todo mundo merece um creditozinho, né não?

crefisa-credito-facil-2

Não passe vontade. Compre agora. Pense depois. Pegue já o que é seu. Positive-se. Dedo em riste. Não espere. Aproveite! Últimas unidades.

vencedores não esperam. vencedores pegam a oportunidade.

vencedores não se frustram. pegam agora e pensam depois. o futuro não existe.

mercadorias abundam

bundas também.

mulheres tem bundas

(homens também. mas nenhum quer ser bundão)

ninguém merece esperar. pode pagar depois.

as mercadorias não merecem esperar. querem ser consumidas.

especialmente, se vestirem curtas embalagens

fáceis de rasgar.

 

algumas saem de graça

não precisa nem pôr na conta.

 

algumas já vem cortadas em fatias

(só o filezinho, sem osso)

e ainda embalando amortecedores de consciência.

 

cervejamulher

 

Vem, meu bem!

tá esperando o que?

corre, que vai acabar!

 

pinup

 

(reflexões e analogias trazidas pelo companheiro de vida Djair Guilherme, em nossas conversas estimulantes sobre o corpo, a atualidade e o SER.

Aqui tem a versão dele dessa mesma história)

frases do cão (de se ouvir e acreditar) sobre vida com filhos

normalmente, parecem grandes elogios, ou pequenas piadas.

mas são a porta pro fundo do poço.

sobre pais:

“que sorte que ele te ajuda em casa”

“quer dizer que você tem dois meninos na sua casa?” (um é o pai)

“que bom que ele é um pai carinhoso!” (oi? não era pra ser?)

“nossa, ele trabalha e também ajuda a cuidar dos filhos” (variação das anteriores, mas sintetizando o espanto)

(história termina com um moleque-mimado-mimimi  – mas ainda pai – posando de herói e secretamente arrependido de ter se metido nessa “roubada” . Ainda achando que merece uma medalha cada vez que pega o filho no colo)

 

sobre mães:

“como ela é forte!” (como uma mula de carga)

“impressionante como ela dá conta!”

“e ela faz tudo sozinha!”

“tem coisas que só a mãe pode fazer” (isso só vale pra aleitamento. o que nos primeiros 6 meses, significa pelo menos 5 horas do dia dedicadas a isso, no mínimo.)

(história termina com uma mãe-chuck-norris com síndrome de mulher-maravilha completamente esgotada, cheia de medalhas por ter dado conta de tudo melhor que qualquer um.)

 

no futuro:

O pai nunca deixa de ser filho, e passa a ser filho de seus filhos, mala eterno.

A mãe, depois de anos de raiva acumulada, manda a conta de tudo o que deu conta pros filhos, virando vítima eterna do fardo maternal.

 

(gente, a Medéia já passou por isso, virou mito, peça grega, até sambinha do Chico. tá na hora de aprender e largar essa carroça, né não?)

38 em vênus

olhos irradiam raios
apontando nas bordas
presentes da maturidade

 

vEnUs

 

 

a tempo: carxs canalhas da indústria-da-estética-padronizadora: meu rosto não é poleiro pra ter pé de galinha.

não me importam as marcas. o que me interessa é se elas vão registrar mais sorrisos (sinceros) que tristezas (escondidas).

as feministas vão destruir o mundo

e rápido.

 

Porque elas não sossegarão enquanto tudo não terminar.

 

Elas são Kali. mostram a língua, tem dentes afiados. são o terror, e não vão parar enquanto não fizerem em pedaços todo o tecido fiado pelo pecado original. enquanto Eva for vadia, enquanto Conhecimento for leite de cobra,

elas não descansarão.

 

Invadirão casas com sua intensidade de vida, com seus cheiros de vida, sua sexualidade livre,

morderão quilos e  quilos de maçã, sem medo,

influenciarão seus filhos e filhas, suas moléculas, seu DNA.

Irão banir de nossas células o sofrimento da culpa, do pecado, do controle,

 

 

do medo da vida,

 

 

não se importarão com o formato dos contornos, dos pelos, mas vão arrepiar seus pelos em êxtase a cada contato de pele.

Irão destruir os templos da sexualidade imposta

e reconstruir os degraus que levam ao templo sagrado do corpo.

 

Terão sangue entre as pernas, pois sabem que esses rios nos contam o fluxo de nossas histórias.

Terão marcas no corpo, honrando a dança do tempo.

Terão flores brotando de sua terra, mas não serão cultivadas em estufa.

Terão os cheiros das intempéries.

Terão plugadas as antenas ancoradas no útero, caverna imemorial de toda sabedoria.

 

Elas vão destruir o mundo

(realidade imposta como prisão)

e reconstruir o amor.

Kali_By_Piyal_Kundu

arte de Piyal Kundu