Parto

Mãe e filha estão lado a lado.

A filha está grávida. A mãe, inquieta.

MÃE

Mas você me chamou muito cedo! Podia ter esperado.

FILHA

Você é que não quis esperar! Eu não te chamei, você quis vir sem me perguntar nada!

MÃE

São dez horas de viagem, não ia dar pra vir de repente.

FILHA

Ainda falta.

MÃE

Agora eu sei que falta.

FILHA

Eu te falei pelo telefone!

MÃE

É, mas agora eu tô vendo.

Filha desiste de argumentar.

Tempo

MÃE

É que você sabe, nossa família tem um histórico de…

FILHA

Eu sei.

MÃE

Não tô dizendo que vai acontecer, só que pode acont…

FILHA

Eu não preciso ficar ouvindo isso.

MÃE

Tá, tá. Não tá mais aqui quem falou!

Silêncio.

FILHA

Também não precisa ficar sem falar nada!

Mãe aproxima-se da filha.

MÃE

Como é que ela tá?

FILHA

Tá linda! Mesmo no ultrassom.

MÃE

Você nasceu bem bonitinha.

FILHA

Já dá pra ver as bochechas, acredita? E já tá encaixada, na posição, a parteira falou que…

MÃE

Eu não disse? Vai que essa menina nasce assim, de repente, e você sem ninguém aqui.

FILHA

Eu não sou sozinha!

MÃE

Sem mãe. Sem mãe pra te ajudar.

Tempo.

MÃE

Ainda mais dessa forma que você escolheu de…

FILHA

Fica quieta!

MÃE

Ainda mais desse jeito.

Tempo.

A filha afasta-se da mãe.

MÃE

Eu só quero seu bem.

FILHA

Eu sei.

MÃE

Não sabe. Só vai saber depois.

FILHA

O que você quer que eu faça?

MÃE

Eu quero que você me escute.

FILHA

Não, você quer que eu faça o que você quer que eu faça.

MÃE

Tá vendo? Você não me ouve!

FILHA

Então fala.

MÃE

A nossa família tem um histórico…

FILHA

Não fala!

MÃE

De aborto.

FILHA

Eu disse pra não falar!

MÃE

Eu falo pro seu bem.

FILHA

Isso você já falou. Mil vezes.

MÃE

Por que é sempre tão difícil conversar com você?

Tempo.

Filha senta-se ao lado da mãe.

FILHA

Olha, eu fiz pré-natal direitinho, tá tudo certo, não tem risco, entendeu? E isso aí que você tem medo, quando acontece, é mais no começo da gestação.

MÃE

Sua prima perdeu com oito meses. Completos.

FILHA

Eu desisto.

MÃE

Devia desistir mesmo. Essa loucura de parir em casa… Custa ir pra um hospital?

FILHA

Custa respeitar minhas decisões?

MÃE

Você não sabe o que é isso, perder uma criança. Você não sabe o que é isso. Tô falando pra você se cuidar! Pensar, pensar, pensar! Deixar de ser louca! Irresponsável! Agora você não pode mais ser assim, vai ter uma vida pra cuidar…

FILHA

Eu já entendi. Você veio antes pra tentar me convencer a viver do seu jeito.

MÃE

Você está vendo tudo enviesado!

FILHA

Tá claríssimo agora!

MÃE

Você não pode ficar nervosa!

FILHA

Para de dizer o que eu tenho que fazer!

MÃE

Eu estou falando pro seu bem!

FILHA

Bem? O que é o bem? Se tá falando pro meu bem, me fala, então! O que é o bem pra você? Porque a gente não pode estar falando da mesma coisa!

MÃE

Por que você transforma tudo em uma guerra?

FILHA

Porque onde não tem respeito tem guerra, mãe!

MÃE

Você não pode ficar nervosa! Fica calma!

FILHA

Por quê? Por que eu preciso ficar calma?

MÃE

A nossa família tem um histórico…

A filha levanta-se, exaltada.

MÃE

Eu tenho medo que…

FILHA

Eu sei que tem. Eu cresci nesse mar fofo de medo, nesse conforto de medo, nessa massa disforme de medo misturada com carinho e cuidado. Antes de aprender quem eu era, eu passei a ter medo de coisa que nem sabia. E sabe do que eu tenho mais medo agora? Sabe? De quem tem medo. Porque são essas pessoas, essas, fedendo a paranoia, que são capazes de tudo. São escravas desse terror, e pior, se sentem senhores! Agem como superheróis lutando contra delírios. Delírios! São capazes de qualquer coisa, só pra se livrar desse desespero! Um desespero que não passa. Não veem mais nada, não escutam, não pensam! Só correm, correm, correm, atropelando tudo pela frente, desde que dê segurança.. Eu bebia seu medo junto com leite, mãe. E seu medo foi tanto que o leite secou em um mês! De tanto medo que você tinha que o seu leite faltasse. De que eu faltasse. De que a vida faltasse!

Silêncio.

A mãe levanta-se.

MÃE

Você nunca passou fome!

FILHA

Eu sei.

MÃE

Eu nunca… nunca quis te fazer mal.

FILHA

Desculpa.

Tempo

A mulher-mãe está abalada. A fala da mulher-filha ainda ressoa, trazendo à tona feridas.

MÃE

São… capazes de qualquer coisa… pela segurança.

FILHA

Eu não queria tocar nesse assunto.

MÃE

Ele é tão onipresente que volta. Sempre volta. Sempre, sempre volta.

FILHA

O meu pai…

MÃE

Não fala!

Tempo.

FILHA

Ainda não passou?

MÃE

Não sei.

FILHA

Você foi muito corajosa.

MÃE

Não sei.

FILHA

Mas eu sei.

MÃE

Como você consegue?

FILHA

O que?

MÃE

Não ter medo?

FILHA

Eu também tenho medo.

MÃE

Não parece.

FILHA

A vida protege a gente, mãe.

MÃE

Será?

FILHA

Você sempre me protegeu.

MÃE

Nem sempre.

FILHA

O suficiente. Até demais.

Tempo.

MÃE

Eu só queria… que a nossa família…sobrevivesse.

FILHA

Nossa família vai viver.

Ela já está viva!

Vem aqui, sente ela chutando!

Mulher-mãe aproxima-se da mulher-filha. Senta-se ao lado dela, e coloca a mão na sua barriga.

Ficam assim por um tempo, em silêncio.

Aos poucos, a filha encosta a cabeça no ombro da mãe.

MÃE

Acho que ela vai ser brava que nem você.

FILHA

Ela vai ser o que ela quiser ser.

MÃE

Já escolheu um nome?

FILHA

Ainda não.

MÃE

O nome da sua avó era tão bonito…

FILHA

Esperanza.

MÃE

(carrega no sotaque espanhol)

Esperanza!

FILHA

Fala de novo?

MÃE

Esperanza!

FILHA

Esperanza!

MÃE

Esperanza!

As duas riem.

No meio da risada, a filha emite um som mais agudo, como um grito.

MÃE

O que é que foi? Tá tudo bem?

FILHA

Tá!

Começou mãe! Começou!

FIM

Cena apresentada no Dramamix, Satyrianas, em 13/11/22

Elenco: Pri Maggrih e Michele Cardoso

Mulher:

Eu tenho frio.
Um corpo arrepio.
É um corpo sem pontas, arredondado,
pedindo por presença como um vaso,
cheio de vazio, de futuro.
 
Quem sou eu?
 
Silêncio.
 
Um canto que vibra depois da última nota. Espreitando, esperando, o dia em que puder ser.
Ou talvez ser agora, no auge da dureza do mundo.
Porque eu broto do contrário.
 
Quantas vezes vou ter que nascer e renascer, ainda nascendo mulher, ainda tentando
entender de corpo inteiro como é se jogar assim, sem o mínimo de resposta, no escuro?
 
Sem vela?
 
Na hora mais escura da noite, aquele segundo em que todas as estrelas piscam?
Quem sou eu? A pausa no respirar nas estrelas?
 
Confesso.
 
Confesso sentir o amor como uma flor escancarada no peito. Confesso medo quase insuportável de queimar nesse calor.
Nessa ida até onde nem sei, confesso.
 
Eu confesso, mas não me orgulho.
 
Confesso não ter seguido meu pulso.
 
Confesso ter desdenhado a dor de tantas outras, confesso ter tentado fugir,
confesso ter nascido no fluxo, confesso ter memória pequena, confesso ter deixado de ouvir o canto,
confesso ter me resignado às migalhas do pouco desse tempo, confesso ter cortado os pulsos e deixado esvair meu ser inutilmente, confesso ter destilado veneno por pura inveja de quem nada teme, confesso ter submetido o meu pranto ao martírio de causas levianas, confesso ter julgado as tantas outras formas de vida,
 
confesso ter me perdido da vida. Confesso ter me deixado na sombra.
 
Confesso ter congelado um sorriso cordial e covarde, confesso a dor da memória de um tempo que eu tenho o medo do acesso, confesso a dor desmedida de quem não esconde ferida exposta,
confesso ter incendiado a minha casa antiga e velha e mofada,
confesso ter me atirado na longa jornada sem pão e sem rumo,

 
confesso soberba danada de quem não confia na ajuda dos homens,
confesso soluço jogado a esmo sem ter uma voz que acalante,

confesso a procura de um tempo onde o ser volta à tona parindo sorrisos,
confesso o peso das coisas que hei de largar mas ainda carrego,

confesso a esperança de ter vislumbrado a saída num longo caminho,
confesso a fé que se escora nos olhos vendados e mãos estendidas,
confesso difícil a entrega pra quem foi julgada, traída e perdida,

confesso uma chance presente de rever história com olhos crianças,
confesso desejo de ser plenamente o que sonho com ar de lembrança,
confesso desejo de dar nova chance a essa vida que é nova e que chama.
 
Confesso que não quero mais confessar.
 
Pelos lados, quero só respirar.
 
Conspirar.
 
Ligar traços,
 
desenhar constelações.
 
 
(trecho da peça teatral Jukebox, publicada no livro Campo de Transe, Editora Presságio.
Arte da Milá Bottura Dias da Silva)

mulher: quem é você?*

O que você vê é um corpo sem pontas, arredondado, pedindo por presença como um vaso, cheio de vazio, de futuro. Quem sou eu? Sou é silêncio. Um canto que vibra depois da última nota. Espreitando, entre as pedras, esperando na concretude para quando puder ser. E o tempo é agora, no auge da dureza do mundo. Porque eu broto do contrário.

Mas eu ainda estou nascendo mulher. Ainda tentando entender de corpo inteiro como é se jogar assim, sem o mínimo de resposta, no escuro. Sem vela. Porque também tem isso, sabe, a gente também pode ser a hora mais escura da noite, aquele segundo em que todas as estrelas piscam, então a gente também pode ser a pausa no respirar nas estrelas. Estou te dizendo, mas ainda não sei dessas coisas.

(…)

Vão te dizer
que a vida é guerra.
Que ela se enfrenta, se encara.
Com ela se luta.
Assim se tornam bravos, os homens.
Pois te digo: ela é boa.
A vida tem coisa de fêmea. Não se conquista ou domina.
Decifra-se.

 

* esse é um trecho da peça Jukebox, escrita para a atriz Alessandra Velho, recém-saída do forno, recém entrada em ensaio (dirigida por Lucienne Guedes), futuramente por aí, se os deuses assim quiserem.

Desde já um processo lindo, entre mulheres incríveis. Orgulho!

meu avô era um peixe

Tô meio sumida aqui, porque ando escrevendo uma peça. Mas como tenho boca grande difícil de ficar fechada, vou deixar escapulir um pedaço.

É história inventada, mas doeu pra sair. Rasgou um pedaço junto, mas essa parte rasgada era só apego. Ou era a placenta, que nem nutria mais essa memória.

Mas se doeu, o que nasceu foi verdade.

E assim percebi que a dor do parto é aceitação.

Quando eu tinha mais ou menos uns sete anos, aprendi a nadar. E o que eu mais gostava era de afundar lá no fundo da piscina, ficar lá parado. Gostava de ficar sem peso e sem som no ouvido. O corpo ficava leve. Eu me sentia parecido com um peixe num aquário, mas era bom. Eu me sentia parecido com meu avô, também, porque quando a gente era menor ficava brincando que meu avô era um peixe. Porque ele dormia no sofá com a boca aberta, minha vó mandava ele ir pra cama, mas ele gostava era de ficar no sofá, com a cabeça pendurada. Eu ficava do lado imitando, mas longe da minha mãe, senão ela ficava brava. Depois ele acordava, olhava pra mim em silêncio, fazia um cafuné na minha cabeça e ia cambaleando buscar uma cerveja. Eu imitava ele nisso também, e ele ria. Meu avô falava pouco, porque quando começava a contar alguma coisa, logo esquecia. Aí ele ficava chateado. Um dia eu perguntei pro meu pai porque ele era assim tão quieto e meu pai falou que ele tinha trabalhado muito, e agora tava descansando tudo o que não descansou na vida toda. Parecia que ele vivia num barco à parte do mundo, no meio do rio. Mas eu entendia o meu avô, gostava dele pra caramba. Ele me entendia também. Num dia, a gente tava num barco pescando mesmo num rio, lá em Oriente, eu e meus primos, todo mundo pegava peixe, menos eu. Eu não falei nada porque estava com vergonha, mas meu avô percebeu. Ele sentou do meu lado, e me passou a vara de pescar dele. Falou que aquela vara era encantada, e com ela eu ia pescar. Depois de um minuto, eu pesquei um peixe enorme. Meu avô fez a maior festa, mostrou pra todo mundo. Hoje eu sei que aquele peixe já tava no anzol do meu avô, mas no dia achei mesmo que a vara era mágica. Mágico mesmo foi aquele dia, que eu vi meu avô sorrindo, e percebi, mesmo sem entender, que lá naquele mundo dele a gente estava junto. Ele levava a gente com ele, e de repente por ficar tão quieto, ouvia de lá nossos sonhos. Naquele dia, meu sonho era pegar um peixe. E só meu avô percebeu.

dramaturgia de improviso. tema: adeus

achei esse texto que escrevi em 2010, numa noite no DCC  (Dramaturgia Concisa e Contemporânea), evento muuuuito bacana que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos produz. não lembrava dele, acho que pela forma como foi escrito, no susto. (lá é assim: a organização dá um tema e escrevemos de improviso, em uma hora, durante o evento. depois ótimo elenco lê o texto para os participantes . sem frescura, na lata, uma delícia.)

já que achei, resolvi colocar aqui. é de uma sincronicidade estranha.

 

PARTO

 

Mãe e filha estão sentadas lado a lado. A filha está grávida.

 

MÃE – Mas você me chamou muito cedo!

FILHA – Eu não te chamei, você quis vir

MÃE – São dez horas de viagem, não ia dar pra vir de repente.

FILHA – Ainda falta.

MÃE – Agora eu to vendo que falta.

FILHA – Mas eu te falei que…

MÃE – Mas agora eu tô vendo.

 

Tempo

 

MÃE – É que você sabe, nossa família tem um histórico de…

FILHA – Eu sei.

MÃE – Não to dizendo que vai acontecer, só que pode acont…

FILHA – Eu não preciso ficar ouvindo isso

MÃE – Tá, tá. Desculpa.

FILHA – Também não precisa ficar sem falar nada!

MÃE – Como é que ela tá?

FILHA – Tá linda! Já dá pra ver as bochechas, acredita? E já tá virada, na posição, encaixadinha, precisava ver só que…

MÃE – Eu não disse? Vai que essa menina nasce assim, de repente, e você sem ninguém pra…

FILHA – Eu não sou sozinha!

MÃE – Sem mãe. Sem mãe pra te ajudar.

 

Tempo.

 

MÃE – Ainda mais dessa forma que você…

FILHA – Não fala!

MÃE – Ainda mais desse jeito.

FILHA – Não fala!

MÃE – Nossa família tem histórico de…

FILHA – Fica quieta!

 

Tempo

 

MÃE – Eu só quero seu bem.

FILHA – Eu sei.

MÃE – Não sabe. Só vai saber depois.

FILHA – O que você quer que eu faça?

MÃE – Me escuta.

FILHA – Então fala.

MÃE – A nossa família tem um histórico…

FILHA – Não fala!

MÃE – De aborto.

FILHA – Eu disse pra não falar!

MÃE – Eu falo pro seu bem.

FILHA – Isso você já falou.

MÃE – Você não sabe o que é isso. Você não sabe o que é isso. Tô falando pra você se cuidar! Pensar, pensar, pensar! Deixar de ser louca! Irresponsável! Agora você não pode mais ser assim, vai ter uma vida pra cuidar…

FILHA – Eu sei!

MÃE – Você sabe.

FILHA – Eu já sei. Você veio antes pra tentar me convencer a fazer do seu jeito.

MÃE – Você está vendo tudo enviesado!

FILHA – Tá claríssimo agora!

MÃE – Você não pode ficar nervosa!

FILHA – Pára de dizer o que eu tenho que fazer!

MÃE – Você não pode ficar nervosa! Fica calma!

FILHA – Por que?

MÃE – A nossa família tem um histórico…

 

A filha levanta-se, exaltada.

 

MÃE – Eu tenho medo que…

FILHA – Eu sei que tem. Eu cresci nesse mar fofo de medo, nesse conforto de medo, nessa massa disforme de medo misturada com carinho e cuidado. Antes de aprender quem eu era, eu passei a ter medo de coisa que nem sabia. E sabe do que eu tenho mais medo agora? Sabe? De quem tem medo. Porque são essas pessoas, contaminadas de pânico, cheirando a adrenalina, que são capazes de tudo. De qualquer coisa, só pra se livrar desse desespero! Eu bebia seu medo junto com leite, mãe. E seu medo foi tanto, que eu lembro, o leite secou rápido por medo da falta dele.

 

Silêncio. A mãe levanta-se e pega a bolsa

 

MÃE – Você não pode ficar nervosa.

 

Tempo

 

MÃE – A nossa família… Eu tenho medo que…

 

A mãe desiste de falar. Vai em direção à porta.

 

FILHA – Mãe!

 

As duas olham-se por um tempo. A mãe volta a se sentar na cadeira. A filha deita a cabeça no colo da mãe.

 

FILHA – Eu tô com medo.

MÃE – Eu sei. Eu também.

 

FIM

Por que poesia (no palco)?

Tem coisas que nos deixam sem palavras. E tem coisas que as palavras não dão conta de dizer. É aí que entra a dança

Essa frase, presente no filme “Pina”, de Win Wenders (sobre Pina Bausch) me gerou inquietude. Sou uma pessoa de silêncios (apesar de falar muito) e talvez tenha escolhido escrever porque constantemente as palavras me fogem. Mas o corpo não cala, jamais emudece. E muitas vezes desejei que palavras saíssem de meus gestos com tal espontaneidade com que movia meus braços. Sem filtro do córtex frontal, mas com a precisão de conteúdo que um gesto encerra.

A poesia, porém, me trouxe um pouco desse lugar, pois é parte palavra, parte silêncio. E há certos conteúdos que, para serem tocados, necessitam do verbo permeável. Geralmente, são os conteúdos que se referem a realidades invisíveis, a atmosferas, determinados sentimentos. E o que a ciência prova com fatos e a filosofia com a lógica, a poesia traduz em sentimento.

Assim, ela é como a luz da lua: ao incidir sobre as palavras, gera sombras cambiantes. É mutante, não há lugar seguro, não há contornos definidos: entende-se mais pelo ouvido que pelo olhar, ainda que seja palavra. E a palavra não é o ponto de chegada, mas apenas o barco que conduz àquele lugar onde nenhuma palavra chega. A poesia é rodamoinho de vento que, girando, nos leva à morada do indizível: então, assim como o corpo, torna-se lugar de passagem.

Porém, apesar de efêmera, também pode ser feita de carne. Também pode servir à expressão de sentimentos terrenos, densos, matéria sólida sobre terra firme. Nesse lugar, ela se funde com o teatro. Torna-se palpável, podendo atravessar o corpo do ator, podendo fazer tremer suas estruturas para, novamente, chegar até nós nessa dupla natureza.

A poesia, se levada ao palco, é raio que toca o chão, trazendo um pouco dos céus à terra. Mas assim como a faísca, é rápida, efêmera. E muitas vezes só sentimos seus efeitos pela sua reverberação, o trovão.

 

(parte da apresentação da monografia, quase pronta, quase aqui.)

Romeu e Julieta em Recorte – finalmente, a apresentação

21 de abril, sábado, feriado fictício. Manifestações contra a corrupção seguidas de repressão policial. A polis de Escalo não está dando certo faz tempo, e a violência não tem mais nome, nem sobrenome – é tudo S.A. S.A X Anonymous.

Sentada no metrô, carregando uma sacola recheada de flores de papel crepon, um pozinho mágico e dois lança-confetes, eu pensava novamente na razão daquilo tudo. Em qual era o sentido dessa peça hoje, nesse tempo e nessa cidade. De repente o trem parou no meio do túnel, e só depois de algum tempo ouvimos: “atenção senhores passageiros, estamos aguardando a normalização do sistema”. Então, sentada confortavelmente, no ambiente climatizado e civilizado de um trem sem condutor, lembrei da fragilidade que tanto tentam nos esconder, do colapso iminente. Mas não queria que fosse ali, naquele instante. Com uma cena a apresentar. Com uma vida a viver. Então aceitei a segurança artificial e, obediente, refiz meus destinos: ao invés da luz, o paraíso. Dali pra liberdade, inclusive de estar acima do chão. (jurei que nunca mais faria trocadilhos com estações, perdoem a recaída.)

Como cheguei mais cedo, tive tempo de, sozinha, repensar algumas marcas, especialmente as entradas e saídas, que no ensaio anterior tivemos que decidir às pressas. O teatro do Célia Helena possui um pequeno balcão de cada lado do palco, onde se colocam cadeiras para uma platéia lateral. Ali, do lado esquerdo, seria o balcão de Julieta. Do lado direito, pensei que seria uma boa entrada para Romeu. O ator poderia saltar até o palco, pular, literalmente, um muro, dando o código da subversão do personagem ao entrar clandestinamente na casa dos Capuletos. Entre esse e outros detalhes, passei minha primeira hora.

O teatro já emanava o clima de expectativa de todos. Cenas curtas, de até 15 min, seriam mostradas uma seguida da outra. Romeu e Julieta seria às 14h. Apesar de saber que seria uma demonstração de pesquisa, apesar de saber que a cena estava longe de estar pronta, não pude resistir às borboletas no estômago. E percebi que todos, com mais ou menos experiência, sentiam-se do mesmo jeito.

Garbel chegou mais cedo, e fomos tomar um café. Em seguida, Cris juntou-se a nós. Conversamos sobre os efeitos do processo na nossa vida pessoal. Ambos confessaram que em diferentes momentos pensaram em desistir, mas que o fato de seguirem em frente, de encararem esse texto, foi muito transformador. Isso é incrível, porém visível. Não vou entrar em detalhes da vida pessoal alheia, mas imagino que levar o processo ao fim tenha sido uma escolha árdua. É que Shakespeare te coloca em cheque, é grande demais para se viver pela metade, para ficar escondido. Ele é rosa com espinhos, vida em carne exposta. Lembrei de algo dito pela Tatiana: “É preciso muita coragem para dizer aquelas palavras”. Concordo.

Quando Dani chegou, já estávamos no camarim. Fizemos uma pequena concentração, e eles ficaram repassando o texto. Não havia como ensaiar as marcações no palco, pois a platéia já estava presente devido às cenas anteriores, então tudo seria feito de primeira. Fiquei próxima à mesa de luz, para dar as instruções para Jeferson, e de lá vi a cena.

Por estar muito de cima, também fiquei distanciada. Mas pelo que pude sentir, a apresentação dilatou um pouco alguns momentos, seja por esquecimentos de texto, seja por nervosismo. Claro, não havia ainda maturidade suficiente: foi uma fruta colhida verde do pé, e isso era evidente. É muita pretensão fazer Shakespeare em nove ensaios, e com uma diretora de primeira viagem. Mas como o que valia era a pesquisa e não tinha outro jeito, corremos o risco.

O efeito das flores, da chuva de estrelas e do polvilho tingido funcionaram bem, ficou tudo muito bonito. Em relação a esse último, aconteceu como todos queríamos: foi quase um ilusionismo. Antes da cena do balcão, na coxia, Dani polvilhou seu figurino com o pó esbranquiçado (do mesmo tom do vestido, portanto, invisível ao público), enquanto Cris, também da coxia, molhou sua calça. No primeiro contato, o efeito se seu, porém sutilmente. E ao longo da cena, a mancha vermelha foi ficando maior, e ninguém conseguia entender muito bem de onde vinha. Funcionou. Nessa hora, apesar de estar comemorando internamente a descoberta, percebi o quanto minha mente havia divagado em direção a tantos outros aspectos cênicos, tão diferentes do meu objetivo inicial, que era justamente o trabalho de interpretação com o texto.

Depois, ouvindo o retorno da banca e de Tatiana, foi justamente essa a percepção geral. O resultado, apesar de interessante, ficou ainda na ante-sala. Entre várias observações, figuram o “tocar em muita coisa ao mesmo tempo” , a ausência da violência externa à cena e, principalmente, ao desequilíbrio entre a força das imagens e o trabalho com o texto, que estava aquém da composição e da potência dos corpos. A composição cênica estava bem resolvida, mas a interpretação ainda não. Faltou encaixar o corpo à palavra, pois o texto recém-decorado ainda não vinha fluido, havia uma dilatação extra devido à constante evocação de memória, que amarrava as ações num campo menor. Faltou trabalho, tempo para deixar aterrar as descobertas, para que o ator se sentisse totalmente confortável e que o personagem pudesse se apresentar em sua plenitude. Como cordas de um instrumento ainda não tão afinadas, mas que precisam começar a sinfonia. Por mais que se toque a melodia, há algo fora do tom. Um certo desencaixe. Por outro lado, gostaram bastante da relação entre os atores e da composição, com poucos elementos sobre o palco. O que, sim, conseguiu se fazer presente foi a conexão entre os dois, construída pela afinidade entre os atores, e o movimento e jogo dos corpos a partir dessa relação.

Tatiana fez outros comentários precisos. Ela sentiu falta de uma abertura maior da cena em relação ao público, sentiu como se a platéia estivesse excluída do jogo. A princípio, entendi que isso seria resolvido com alguma triangulação e falas em direção ao espectador, mas depois entendi que não era só isso que ela queria dizer. O lugar da fala às vezes resvalava para um certo intimismo que trazia excessiva “pessoalidade” aos personagens, dificultando uma amplitude maior – a vivência do êxtase, a fala de Eros, o Amor maior que os nomes, acima da realidade quotidiana. Também comentou a diferença entre “falar sem receios, e depois sentir no corpo o eco da própria fala”; ou “buscar primeiro sentir para depois falar”. A primeira forma gera mais amplitude, enquanto a segunda traz um certo cálculo, personaliza demais, impede a soltura necessária para que os personagens sejam movidos por forças maiores.

Em síntese, na cena que apresentamos, chegamos a um lugar muito bonito, mas não tocamos o ponto exato da potência que a peça é capaz de despertar. Mas sei que vivemos esse lugar nos ensaios. Em momentos preciosos, essa relação se estabeleceu, e essa dimensão mítica se fez presente – foi comovente, mas uma vez só não basta ao teatro. Intimamente, só, não é suficiente. E o amadurecimento da cena é justamente dar contorno ao intangível que se manifesta eventualmente, para que possa acontecer sempre.

Revendo a cena através das fotografias, entendi o que Tatiana quis dizer, e só depois percebi que a cena que apresentei não era exatamente teatro, mas cinema sobre o palco. Entendi que a distância sentida por ela era a tela onde o filme foi exibido, a quarta parede, ou minha própria barreira de proteção projetada como película invisível aos olhos, mas impermeável aos demais sentidos. Só depois vi o problema de ter tido como maior referência justamente o filme de Baz Luhrmann. E só consegui entender exatamente o que seria essa interpretação aberta ao público quando, relembrando as outras cenas apresentadas no dia, recordei do trecho de Borandá, de Luiz Alberto de Abreu, dirigida pelo Ednaldo Freire (que também era meu colega na turma) e interpretado pelos atores da Cia. Fraternal de Arte e Malas-Artes. A presença deles em cena era fantástica. Não estou fazendo comparações absurdas entre um processo recente e um grupo absolutamente amadurecido, mas foi ali que entendi o que me faltava: era realmente delicioso me sentir uma interlocutora daqueles personagens migrantes, e não apenas uma espectadora voyeur de seu drama. O olhar, lançado a mim, dizia além das palavras, além do específico de ser migrante: era a dor de ser humano que compartilhavam comigo. Não um olhar em direção, mas para mim, e isso tem uma força arrebatadora – uma vez que se rompe a tela de proteção, o público passa de espectador a testemunha. Não é à toa que, como Shakespeare, a Fraternal está no lugar do “teatro popular”. Talvez popular seja isso:a fala de todos nós.

Apesar de tudo, a experiência foi incrível. Fiquei muito feliz com o que apresentamos e, se compartilho essas reflexões, é pelo amor à verdade, e para que talvez possa servir a outros, pois todas essas críticas ao processo são também frutos colhidos, faróis apontando a direção – uma coisa é saber-se muito longe da praia, perdido em alto mar, outra é avistar a terra ainda distante, mas já sabendo por onde seguir. O processo te devolve a exata medida do que você dá a ele: e nós vivemos essa experiência intensamente, mas entre as brechas de tantas outras coisas da vida, e a grandiosidade do texto dependeria de um pouco mais da nossa entrega para florescer. No meu caso, reconheci as muitas limitações que impediram passos maiores, mas, ao final, agradeci profundamente ter percebido tudo isso, e por ter avançado algumas ondas sobre o mar de ignorâncias que me separa do conhecimento. Também agradeci estar entre amigos tão queridos – cuja confiança em uma diretora estreante foi comovente -, pela orientação cálida e entusiasta de Tatiana, e pelo privilégio de ter tido a coragem de viver esses momentos.

Termino esse diário de bordo citando um grande mestre dos palcos. Aliás, de fora-dos-palcos. E que esse seja apenas um começo de muitos e muitos delírios embalados pela música do bardo, atual desde sempre, farol apontando ao que somos: cheios de luz e sombras, matéria semelhante à dos sonhos.

Shakespeare é um pedaço de carvão que está inerte. Posso escrever livros e conferências sobre a origem do carvão – mas meu interesse real no carvão é numa noite fria, quando preciso me aquecer. Levado ao fogo, ele se torna o que realmente é. Só então revela seu potencial.”

Peter Brook

 

fotos do querido Bruno Ribeiro. Aqui tem mais.

Algumas considerações antes do fim – Do cantinho da dramaturga ao proscênio: a arte concreta da direção.

Antes de falar da apresentação, preciso compartilhar algumas percepções sobre a arte da direção teatral. Minha postura de vida, é claro, reverberou diretamente nesse ofício que acabo de experimentar. Não estou falando do óbvio, das minhas escolhas estéticas, mas daquilo que, por ser involuntário, sai de mim sem que eu perceba e interfere no que todos percebem: a própria cena.

Meu olhar é enviesado, através. Meio de canto, meio de esgueio, meio emoldurado por bordas de óculos. Pelo enquadramento do cinema. Pela distância das palavras. O contato direto com a experiência me assusta, mas em dimensão maior, me encanta: daí o conflito. O conflito de amar o conflito e temê-lo, ao mesmo tempo. Como a menina que via filmes de terror entre dedos.

Sempre me pergunto o por que de ser dramaturga, já que minha dificuldade em relação ao trabalho é justamente escrever de forma mais literária que teatral. Por que não me lançar diretamente aos livros, por que insistir no teatro? Antes, só conseguia responder assim: Porque é um íma. Porque não se compara. Mas só agora entendo: porque tem o risco da presença, o risco de alguém te falar aquilo face a face, o risco da emoção aflorando com testemunhas, o risco do contato. Porque é mentira que seja tudo mentira – talvez, a história, mas não a experiência. Teatro, quando é teatro, faz mentira virar verdade.

E se é você a pessoa a despertar tais verdades? Despertar os conflitos?

No cinema é mais fácil, porque a gente sente tudo às prestações, plano a plano, e só depois manipula. Não digo que é impossível – quando o susto também tem espaço na tela, entre um “ação”e um “corta” aquilo se imortaliza e dá origem ao inesquecível. Mas essa não é uma condição sine qua non para que o cinema aconteça, porque a hipnose das imagens, das câmeras e da edição conseguem jogar uma poeira, a emoção pode ser construída artificialmente, na sala de montagem, longe do risco da experiência. E ainda há a equipe, a repetição em diversos takes, os monitores de video, há portos seguros te lembrando que aquilo é só um filme, é só um sonho, não tenha medo, já passou. No cinema, aprendi a construir imagens, decifrei a poesia dos enquadramentos, da luz, das composições. E nesse olhar contemplativo, através de janelas, estava segura para observar a emoção de longe. Mesmo que fosse verdade, mesmo em documentário. A íris da lente não chora.

Depois me lancei às palavras. Não digo que sem risco – não é fácil explorar os abismos. Mas é uma aventura sem testemunhas. O outro só entra depois, compartilhando a aventura já vivida, mas a viagem é de um só: experiência que posso interromper quando quiser. Sim, há perda de controle, há desvario, mas não há risco de ser banido da vida do outro por desagrado. Como poderia me excluir de mim? Posso calcular as palavras, voltar, reescrever. Não há o que temer, nem do que se arrepender, apenas a coragem pra ver. Descer com a lanterna e decifrar mundos, mas mundos de uma só. Mil personagens dentro, apenas uma voz. Então me faltava diálogo, faltava gente. Intercâmbio.

Minha transição para o teatro foi como dramaturga. Adoro acompanhar processos, não tenho problema com o colaborativo – desde que seja, de fato, uma co-criação – e meu lugar na sala de ensaio era o “cantinho da dramaturga”. Enquanto observava os atores trabalhando, anotava minhas percepções para depois compartilhá-las com o diretor ou diretora com quem trabalhava. Não falava diretamente com os atores sobre a cena, e meu olhar estava no texto: a estrutura, as palavras, o que faltava ou sobrava, a construção das personagens, o diálogo. Como dizer as palavras, como colocar o corpo, como atingir o estado necessário, tudo isso eram questões alheias a mim – estavam a cargo de quem dirigia. Meu papel era estar ao mesmo tempo presente e distante, avaliando o todo, de longe, no canto. Através.

Eis que, um dia, resolvo me lançar à direção. O palco, os atores, a vida ao vivo. A experiência concreta, com todos os seus atritos, com todos os problemas de tempo, locais de ensaio, falta de dinheiro, excesso de coisas, dificuldades dos atores, intersecção de cronogramas, expectativas. Lidar com emoções alheias, com a imprevisibilidade, com o desejo de controlar a experiência sabendo-se impotente para isso. Não havia câmera para intermediar, nem cortes para separar a emoção em pedaços mais respiráveis. Não era suficiente ficar no canto observando e só trazer observações. Era necessário provocar, estar presente, estar na pele, estar no corpo. Ao contrário do que pensava, dirigir é perder o controle. Lançar-se, junto, à experiência, ser transpassada por ela. Provocar a fricção, para que o conflito do texto possa realmente se corporificar, descer abaixo da linha do pescoço. Dirigir é um ato de amor, porque implica em deixar seus limites, incomodar, se necessário, colocar a atenção no que é importante para que a cena chegue onde tem que chegar. Dirigir é romper as bordas. É estar em evidência, no centro do palco, com luzes em cima, exposição absoluta. Sem intermediários.

Talvez por isso, nessa última semana, meus óculos quebraram justamente na armação. Talvez por isso eu tenha também ficado sem as bordas, frágil, permeável – e sem poder remediar com um pouco de superbonder. Percebi, durante os ensaios, minha dificuldade de estar presente, totalmente presente: era como se, rompidas as barreiras, por não ter mais janelas, eu tivesse criado uma película invisível que se manifestava numa espécie de torpor. Isso me atrapalhou muito, impedia que eu registrasse a cena como um todo, que visse onde deveria interferir, que soubesse a palavra precisa a se dizer para o ator. Em alguns momentos conseguia furar essa névoa, e ao invés de primeiro pensar, calcular, para depois fazer, fazia sem pensar e sentia as reverberações do ato. Perdia o controle e me deixava conduzir pela própria força do processo: e nesse momento não era eu em controle, e sim eu não era meu nome, era só fluxo, fazendo o que tinha que fazer para que a cena cobrasse força. Logo depois descobri que entre dirigir e atuar não há diferença, porque essa mesma questão também pertencia ao ator.

Depois dessa experiência, vendo o resultado, pude ler todo esse percurso interno. O que funcionou e o que não funcionou, no momento, foi a medida do quanto consegui furar essas barreiras, o quanto consegui resistir ao impulso de me fazer invisível e, ao contrário, estar exposta no tempo presente, nua em pêlo, e à serviço. Dirigir é ser conduzida e, só por isso, conseguir conduzir.

Concluí, então: “que lindo” não basta. Nem para palavras, nem para imagens. Talvez sirva às outras artes, mas não ao teatro. Claro, o belo tem seu valor – lindas imagens e palavras podem gerar as condições adequadas para que uma atmosfera favorável se instaure no público, para que o estado de poesia se estabeleça, amaciando a dureza cotidiana para um estado de maior permeabilidade. Mas isso é só a ante-sala do que deve vir em seguida, para o grande susto, que só é possível através do ator. Se não temos essa segunda parte, ainda que bela, a peça é só promessa. E para que a platéia chegue nesse lugar, deve ser conduzida. E para que isso ocorra, a gente tem que estar lá. Lá. Lugar onde só se chega na instabilidade, no risco, na perda das bordas, dos nomes. Local de coragem. Lugar exato de Romeu e Julieta.

Ensaios R&J – Nono Encontro

Era o último que nos restava. A única coisa que eu tinha certeza é que precisaria de foco.

Acaso fosse uma pesquisa nas condições ideais, arriscaria dizer que só agora começamos a entender algumas coisas, e seria o momento de brincar bastante com as possibilidades do texto, de sua música, da métrica, do efeito das palavras. É o que eu faria se tivéssemos um prazo maior. Talvez todo diretor sinta isso, independente do tempo que tenha para a montagem, e talvez esse sentimento seja parte de qualquer processo. Divagues à parte, querendo ou não, era hora de fechar a cena.

Durante a semana, fiz uma pequena descoberta cenográfica. Ainda buscando algo que pudesse dar o efeito de uma poeira colorida, resolvi testar o uso de polvilho doce – que já havia visto em cena com bons resultados, na peça Frio 36 e meio, dirigida por Arthur Belloni. Como queria gerar um tom avermelhado, resolvi misturar um pouco de corante para doces. O resultado foi decepcionante a princípio: a cor não se alterou, o que aconteceu foi “sujar” o branco puro do polvilho, que apesar de ter ganhado pontos escuros, continuava branco. Porém, ao lavar a mão, tive a surpresa: em contato com a água, aquela mistura esbranquiçada se dissolveu e tornou-se um vermelho forte, que parecia muito com sangue.

A partir daí, pensei em quinhentas formas de inserir essa descoberta na cena, até que concluí que talvez a melhor seja essa: polvilhar o chão com essa mistura para que, em contato com o figurino previamente molhado, esse efeito vá se desenhando lentamente – e, tomara, magicamente. Então, além de todas as observações, reflexões e marcações, além de todos ajustes de intenções, ainda queria testar o ilusionismo do sangue lentamente subindo pelos pés. Em três horas de ensaio.

Começamos ajustando a cena de Mercúcio. Como o texto já estava firme, ao mudarmos a intenção da fala o personagem ficou bem mais próximo ao que queríamos, com um certo ar de deboche. O cuidado com o jogo era não perder o objetivo da cena – Mercúcio está o tempo todo procurando Romeu, provocando-o para que ele apareça de volta – mas também trazer alguma triangulação com o espectador. Na cena original, Mercúcio contracena com Benvólio, mas o público pode perfeitamente fazer esse papel de interlocutor. Assim, alternando a direção da fala entre o espectador e um Romeu distante, o jogo se estabeleceu. A cena ganhou mais dinâmica e conseguiu, pela primeira vez, ter o efeito de contraste com Romeu e Julieta.

Depois passamos à cena do balcão, que precisava de maiores cuidados. Tentei integrar as sugestões de Tatiana no ensaio anterior – que Romeu desse suas falas parado, com os pés fincados no chão, para que o texto cobrasse força – mas também incluí a inquietação que eu imaginava para o personagem. O resultado foi: entre uma fala e outra, ele se movimentava, mas na hora de dar o texto, ficava parado. Ao princípio ficou um pouco marcado, mas depois ganhou organicidade e evitou tanto a movimentação excessiva (que fazia o texto perder as imagens evocadas) quanto a estaticidade.

Passamos uma primeira vez bem técnica, ajustando a marcação já incluindo os cortes da cena e as minhas reflexões posteriores ao último ensaio. Tentamos evitar qualquer movimento mais passivo da parte de Romeu, e buscar sempre o jogo trabalhado: o ímã entre os dois, a brincadeira de pega-pega disparada pelo vai-e-vem de Julieta (presente na intenção de suas falas, que a coloca sempre dividida entre a convenção e o seu desejo). Esse movimento interno do texto, ao ser corporificado, ajuda a abrir a cena, pois faz com que ela se afaste de Romeu e que ele, consequentemente, vá em direção a ela.

Depois de marcar, passamos o texto com as intenções, e muitos problemas me pareceram solucionados. Como já há uma forte conexão entre os atores, a precisão da marcação ajudou a conter a energia, evitando dispersões. Em seguida, resolvemos passar todo o recorte, com as três cenas. Ajustamos o início ritual, que ficou mais rápido e enxuto, e sua passagem para a cena da festa não tem mais a quebra de fora/dentro da cena. O baile já estava mais maduro, mas ainda fizemos ajustes, especialmente na transição para o corte de Mercúcio, e desse para o balcão. Terminada a cena, passamos tudo de novo, dessa vez sem interrupções, pois eu precisava ver o tempo total do recorte. Foi incrível. Com as marcações que fizemos, a cena ganhou muito mais ritmo e conseguimos que ela atingisse a duração necessária.

Como não podíamos sujar muito o espaço, não consegui testar o efeito do polvilho. Bruno sugeriu que o tingir do vestido não acontecesse logo no começo, mas só pelo contato entre os corpos, durante a cena do balcão. Então chegamos na seguinte marca: durante a cena de Mercúcio, Dani irá espalhar o polvilho no seu vestido, enquanto Cris, na coxia, irá se molhar. No primeiro contato físico entre os dois,  – espero – , conseguiremos o efeito desejado. De qualquer forma, um pouco do polvilho estará no chão, e durante a cena algum tingimento vai acontecer. A idéia é que seja um efeito discreto, e não algo que vá puxar o foco. Meu objetivo é que a atenção do espectador esteja no jogo entre os atores, e em algum momento se perceba que manchas vermelhas apareceram nos corpos, como o amor feito carne, como um prenúncio do que virá. Mas sem muito alarde, pelo menos nesse momento – o vermelho, aqui, ainda está em segundo plano. Só passaria a ter destaque no momento da morte de Mercúcio, onde a tragédia tem seu início.

Ao final de tudo, mesmo com todos os problemas que temos, fiquei realmente feliz. Hoje muita coisa se ajustou, e o material precioso trazido pelos atores pôde, pela precisão da forma, aflorar ainda mais sua potência. Não nos encontraremos mais até a apresentação, mas penso que o que criamos, apesar de ainda imaturo, já pode ser considerado representativo da pesquisa. É certo que, relembrando o objetivo inicial dessa investigação – testar os efeitos do texto sobre os atores e sobre a atmosfera da cena – eu poderia considerar que o ponto em que estamos agora é só o começo, e daqui poderíamos ir bem mais longe. Muito mais.

Talvez nunca tenha fim. Não acaba a vontade de continuar trabalhando nessa teia maravilhosa enredada pelas palavras do bardo. Agora entendo porque alguns diretores montam a mesma peça de Shakespeare pela segunda vez: é impossível abarcar totalmente todas suas possibilidades. É essa sua maior riqueza, e por isso sua obra é tão próxima da vida: quanto mais se apreende, mais se parece um mistério. E quer entendamos tudo ou não, o fluxo não pára: depois de nove encontros, a cena vai ter que nascer.