aaaaaaaaa
– Mãe, o que é “AAAAAA”?
(Como não fechar uma definição para uma criança de 4 anos?)
(Ahá! Usei a velha estratégia de devolver a pergunta)
– O que é “A” pra você, Chico?
– Uma estrada.
logo cedo
– Estou com saudades da minha infância. – disse o Pedro.
– Mas filho, você ainda está nela!
– Quando eu era pequenininho.
– Ah, sim, isso já mudou.
– É que quanto mais eu mudo, mais fico espantado.
(acorde com essa.)
para quem não esperava o impossível
Eis que em pleno outono
num fim de um dia,
o inesperado aconteceu:
O menino voou.
Furou a melancolia da tarde com seus dois pés apontados ao alto, com seu grito de êxtase, de quem consegue o impossível. Ria, ria muito, celebrando consigo aquele desatino, aquele vento contrário, o pendular em festa, animado pelo próprio impulso.
Furou minha tristeza dos tempos duros, das tantas injustiças, dos gestos áridos, da fala navalha, do luto carente de espaço, do tempo seco, da vã esperança, do peito vazio.
Atravessou esse vácuo preenchendo o oco,
o grito do menino.
Voou por meia hora, incansável.
Depois desceu, orgulhoso da conquista, e pediu abraço.
Então quem decolou fui eu,
plena de ar novo,
para a terra das infâncias destrancadas.
(para Chico)
hackeando a distopia
– Mãe, você já reparou que antes todo mundo andava com um spinner e agora ninguém mais brinca? – comecei a manhã com essa indagação.
– Pois é, né? E pra onde você acha que foram todos eles?
– Pro lixo? – o Gabri pergunta, já meio chateado, girando o seu entre os dedos.
– Ou pra um canto da casa, pra depois virar lixo – respondi, já me perguntando se estava ou não pegando pesado.
Gabriel ficou pensativo. Logo mandou essa:
– Isso é triste. Imagina, cada spinner desse, feito com tanto carinho e amor, e as crianças não querendo mais brincar…
Ele foi sincero. Para ele, fabricar brinquedos é coisa séria. É o que o ele vê o pai fazendo todos os dias: vai para sua oficina, fica lá, dedicado, quebrando a cabeça para pensar numa coisa legal, e sai com um brinquedo feito por ele, com carinho e amor.
Para o Gabri, os fabricantes de spinner também são homens como o pai, Djair-Nicolau, que dedicam suas vidas a fazer coisas bacanas – e duráveis – para as infâncias.
Preferi ficar quieta dessa vez. Realismo tem limite. Ele só tem 7 anos, ainda pode imaginar que os brinquedos do mundo sejam todos feitos assim. Não seria eu a pessoa, nesse momento, a desmontar essa linda imagem.
Até porque o futuro ainda não chegou, e nunca se sabe o que pode acontecer.
A Letra
sobremesa
mãe, será que as estrelas cadentes
são as crianças que estão nascendo?
Gabri, num almoço.
o menino, o poente e a crescente
epifanias
– A música Construção é sobre um pedreiro que subiu paredes flácidas, almoçou, bebeu e tropeçou depois caiu na contramão atrapalhando o tráfego, o trânsito e o sábado, né mãe?
– É isso mesmo, Pedro.
– É triste.
– (Gabri) Mas é bonita, né?
– Mãe, tem música que conta história?
– É, Pedro, tem músicas assim.
(epifania)
– UAU! Como nunca pensei nisso antes?
(suspense)
Vou fazer um livro de história-música!
(maio de 2016)
a mãe que consigo ser
Na velha Raposo (Tavares) de sempre. Gabriel, no carro, narrando um pesadelo.
– A gente estava na escola, brincando. Daí chegou um homem, roubou o brinquedo do Chico (o irmão caçula). Depois, mãe, você ofereceu carona pra ele. Aí quando entramos no carro, e ele jogou a gente pra fora. Roubou a gente.
– E você viu que ele tinha feito tudo isso? Por que não me avisou que o homem era assim?
– Porque eu fiquei sem voz.
E eu, abismada.
Foi um sonho muito forte.
Refleti sobre seu sentimento, essa sensação declarada de que o adulto responsável (no caso, eu), não conseguia identificar o perigo iminente.
“Será que é assim que ele me vê?”- pensei. “Tão distraída, no mundo da lua, a ponto de não conseguir protegê-lo?”
Culpa é um bicho alinhavado à revelia na barra da saia da mãe, né? Jurei em segredo que ia ficar mais atenta, presente, e bla bla bla.
Mas o pesadelo já tinha sido.
(Será que se muda passado?)
Como o conflito é minha matéria prima, propus a ele um jogo: Voltar lá e mudar essa narrativa. Fui fazendo perguntas, e ele foi recontando a história com um “novo final”.
Na primeira sua primeira versão, ele conseguia me avisar do perigo e eu dava uma bronca danada no homem, que saía assustado da escola.
Mas aquilo não me convenceu.
– Acho bom falarmos com esse homem. Você não acha?
– Tá.
– Pergunte por que ele roubou o brinquedo do Chico, pra começar.
(O Gabri ficou quieto, ouvindo de fato a resposta lá de longe, no seu interior.)
– Ele disse que roubou porque ele é ladrão.
– Bom, pergunte por que então. (pausa)
– Porque ele quer.
(Vixi. Como saio dessa?)
– Então pergunte por que ele quer esse brinquedo
(silêncio maior)
– Porque a mãe dele morreu. Ele quer roubar a minha mãe porque ele não tem.
(chegamos a um ponto importante)
– Agora pergunte o nome dele.
(silêncio)
– O que ele disse? – insisti.
– Ele disse que ele não se lembra. Faz tanto tempo que ninguém chama ele pelo nome…
(…)
– Peça para ele tentar se lembrar.
(pausa)
– Ele é xará de um de nós aqui. – respondeu, com suspense.
– Então diga, filho.
– Francisco.
– Ótimo. Agora pergunta pro Francisco se ele quer um abraço.
– Ele disse que quer muito.
– E você? Quer abraçar ele?
– Quero sim.
(pausa para o abraço)
– Tá tudo bem agora? – perguntei.
– Tá sim, mãe. Tá tudo bem.
A essas alturas, já estávamos perto da casa dos pais do Dja, para onde estávamos indo. Mas eu fiquei tão mexida com aquilo tudo que quando me dei conta, tinha entrado em uma rua X, virado numa y, e já não sabia onde estava. Pedi ajuda pro Waze, enquanto ouvia risadas dos meninos. Eles não se conformavam: Como alguém pode se perder num caminho tão cotidiano?
Sim, filhos, essa sou eu. Eu me distraio e me perco muitas vezes, porque vivo no mundo das histórias.
E elas vivem nos sonhos.