Três Vezes Vênus é a história de três mulheres que buscam seu sustento apresentando um show mambembe de variedades ao longo de pequenas cidades. A peça narra o momento em que as tensões já iminentes dessa jornada vêm à tona, revelando não apenas os conflitos que as fizeram sair pelo mundo, mas aspectos femininos soterrados numa cultura embrutecida.
JOANA
Foi assim que tudo começou…
Assim que fizeram os perfumes
E as bombas
A razão do homo sapiens
Homem sapiens, mulher sapiens
H-o-m-o s-a-p-i-e-n-s
E agora é assim, portátil
A gente carrega no bolso
Fogo pro rabo, pro cigarro, pra cabeça
A gente risca e psssssssssssssssssss
Faz a mágica
Logo apaga
E joga fora.
MILENA
Chegamos?
Cecília, passando mal, procura algum remédio no meio de suas coisas para se curar. Milena ajuda como pode, mas está impaciente
CECÍLIA
Como é que eu posso saber?
MILENA
Parece que então chegamos.
CECÍLIA
Como que você sabe?
MILENA
O homem lá atrás disse que era do lado da cerca que é perto do rio. Ali tem a cerca, ali tem o rio, então deve estar certo.
CECÍLIA
Não. O homem não disse cerca, disse que era acerca, perto do rio.
MILENA
Então! A cerca perto do rio!
CECÍLIA
Tá, e mesmo que seja, por quantas dessas a gente já não passou? É cabana com cerca, terra com cerca, lago com cerca, até montanha mil vezes maior que a cerca tem cerca! Como você sabe que a cerca que o homem falou é essa e não aquela que ficou lá atrás, ou outra que a gente ainda vai encontrar lá na frente?
MILENA
Porque eu estou sentindo que dessa vez é essa
CECÍLIA
Você tá sentindo é preguiça e quer achar que é essa pra não andar mais.
MILENA
De qualquer jeito, daqui a pouco escurece. Melhor já ficar por aqui.
CECÍLIA
Vê se parece que tem uma cidade…Se pelo menos desse pra ver alguma luz…
Cecília sai da carroça. Aproxima-se de Milena, tenta ver algo ao longe. Logo descobre algumas ervas que podem lhe servir de remédio. Começa a colher algumas.
CECÍLIA
Tempo não é coisa que se perde, a vida passa depressa…Nasce, chora, brinca, depois vem pêlo, quadril, peito, tudo ao mesmo tempo.
MILENA
Tirou isso de onde? Pegando erva no chão?
Cecília espeta o dedo em algo. Faz uma cara de dor e lambe um dos dedos
CECÍLIA
Lembrei da minha mãe, nem sei por que… Ela me falava que não é à toa que pra virar moça a gente sangra…A gente é uma coisa assim, meio aberta, né? Cheia de fendas…ferida, sei lá.
Milena olha em direção a Joana e a vê divagando
MILENA
Ó as idéia…
Cecília percebe Joana
CECÍLIA
O que que ela tá fazendo?
MILENA
A adivinha aqui não sou eu, bem. Pra mim ela tá é matando o tempo (para Joana) Ou! Será que dá pra dar uma forcinha?
Joana sai do seu “transe meditativo”, mas não se move. Milena, ainda irritada, dá pequenos chutes para provocá-la
JOANA
Pra que tanta pressa?
MILENA
Daqui a pouco escurece
JOANA
E não tem lampião não?
CECILIA
Você sabe que eu enxergo mal no escuro
JOANA
A gente já faz isso até de olho fechado!
Milena dá um outro chutinho em Joana. Ela aponta uma faca em direção à Milena
JOANA
Eu tô cansada de correr pra chegar em lugar nenhum.
Cecília aproxima-se correndo, apreensiva, tentando parar a briga
CECÍLIA
Mas dessa vez tá pertinho…
JOANA
Quem disse?
MILENA
(irônica)
Passarinho contou pra ela.
Cecília puxa Milena pelo braço
CECÍLIA
É. Comigo ele ainda fala
JOANA
Bom dia, noite…
MILENA
(novamente para Joana)
Quer que a gente vá mais devagar, pra dar tempo de você ajudar?
Joana não responde. Olham-se por um tempo. Finalmente, Joana fecha a faca
JOANA
Vou procurar comida.
CECÍLIA
Vê se não vai se perder…
JOANA
Fica tranqüila que eu ainda tenho bússola.
Joana joga a caixa de fósforos em Milena
JOANA
Vai acendendo o fogo aí!
Joana sai. Milena vai em sua direção com um pedaço de pau, mas é segurada por Cecília
MILENA
Uma bússola lunar é o que ela tem…
(a continuação dessa peça encontra-se no livro Dramaturgia: Campo de Transe. Editora Presságio)