o fim

Eram apenas dois olhos vertendo, vertendo, vertendo…

Sentiu seus braços se erguendo em prece,

e todos os seus espinhos saindo, lentamente,  do centro do peito em direção à superfície.

Sua pele, enfim, enrijeceu,

a antiga ardência nas plantas dos pés deu passagem a pequenas raízes,

e a água que era antes jorrava agora também provinha da terra.

 

Olhou adiante e não mais viu o deserto,

apenas uma enorme pradaria sedenta por novo saber.

 

Olhou além do horizonte e perdeu-se, enfim, de seu próprio mirar

 

Ergueu-se entre nuvens frescas

e viu, lá de cima, pela última vez,

um único cacto remanescente sombreando a aridez,

futuro remanso para outros errantes fatigados.

 

Despediu-se do antigo invólucro,

sorriu em gratidão,

engendrou novas promessas,

teceu uma outra trama.

 

Então partiu para um próximo sonho onde, enfim, tornaria-se rosa.

 

 

 

(obrigada, Lauren.

Enfim, livre.)

 

 

 

 

 

um fim

Num dia de mais caminhar errante

deixando, ao sul, um rastro de fio sangrado dos pés,

um vento bateu no já sempre ar cáustico.

 

Que era esse sopro? – sussurou-lhe à morada,

depois deslocou com leveza o eixo do mapa de suas miragens

livrou-lhe a areia dos olhos,

arranhou-lhe a fina casca das tantas feridas,

revelou a represa.

 

Então Lauren ficou ali, lavrando um vasto mundo de infinitas perdas.

Lavando a poeira de tantos desertos caminhados

banhando-se de água salgada,

ai, doce acalanto que brota dos cantos de si.

 

Passou ali algumas eras

era muitas, e tantas dela levavam às costas flores vincadas na carne.

Da miragem, nada restava.

Da promessa, apenas a seca visão de mais pesadelos de sangue e torpor.

 

Então decidiu: enterrou ali sua esperança.

Com ela, a coleira,

aquela que arrancou do pescoço, antes atada às mãos do diabo.

 

Enlutou, por três dias, o Cão e a Rosa.

Depois partiu sem partir.

 

Não buscou novos caminhos.  

Não aceitou seu destino inexorável.

Pairou em um não-lugar, paradoxo.

 

Mas esse não era o rascunho de nova miragem desenhada,

era um profundo desejo de alma gritada.

Ficou ali mergulhada nesse novo sentimento,

nessa nova fonte que jorrava do mais profundo desespero.

Nada mais importava: nem caminhar, nem morrer.

 

Plantou-se, imóvel, abaixo de sol e estrelas em incansável alternância.

Parou ali. 

vereda da promessa

A flor da pele

é feita por fios brotados de fendas

conta casos de dessassossego

desmedidas deseducadas

vermelhas pétalas desamparadas em terra seca e bruta 

surgidas em pés de quem caminha em desertos

(crendo, ainda, nos oásis gramados

mesmo que em outras eras)

Arremedo de flor cheirosa,

caminho traçado por espinhos arando aridez

Esperança de rosa

de terra fofa e cuidada,

única promessa de quem escala tantas pontas.

a grande batalha

A partir de hoje,

no parir de hoje,

limpo minha casa, meus pés, minhas mãos,

minha alma, meu espírito, minha história,

da sua presença.

da sua influência.

da sua EXISTÊNCIA.

 

Não mais te comporto em meu corpo,

não mais te suporto em minhas costas,

nas minhas raízes,

não mais te carrego em minhas dores,

coceiras, ardores.

 

Você, que assombrava minha história há tempos. que habitava em meus pesadelos. que aterrorizava meus caminhos.

 

Hoje te vi, e também te persegui.

te peguei.

te flagrei na sua fragilidade. vi seu verdadeiro tamanho. vi o peso da tua capa, o porquê da tua covardia. vi seu desespero para o qual a resposta é única: a violência.

vi, percebi, quase caí. Mas não me submeti.

dei voz à dignidade que me habita. dei voz à nova forma que em mim fala. dei voz, entre tosses e espasmos, entre um coração doendo, abri caminho entre os espinhos da tendência a ficar ali, sofrendo.

não.

a vida que em mim nasce e renasce teve mais valor. a primavera que perfuma o ar trouxe coragem.

sua covardia não chamou minha submissão, meu desespero;

ao contrário, acordou-me desse lugar. então percebi o poder de escolher outro caminho.

 

Empoderei-me dessa liberdade, indiferente e imune ao seu ódio.

E mudei meu curso.

 

Figura, não sei teu nome. só sei que vagas pela minha vida há tempos, tomando o corpo de seres amados. homens amados.

Conhece,  a partir de agora, teu lugar: nunca mais acima de mim. nunca mais no terror.

 

nunca mais.

 

Cura-te da raiva, do desespero, da covardia. cura-te da compulsão de ferir, como estou me curando do medo de ser transpassada.

Hoje minha voz se fez forte, escudo pra tua lança. não tenho mais ações para você, a não ser deixar esse palco, esvaziar-me desse papel, deixar-te sem réplica.

Mas não faço isso por você. faço pelo novo em mim que vem com os novos ares de final de inverno.

(final do inferno.)

Se quiser, aproveite o vazio de minha nova inexistência na sua vida, pra deixar de ser destruição.

 

Mas do seu caminho, só você sabe, e é problema seu.

assim como do meu, eu sei: eu optei pelo amor.

Lauren e o Diabo na Terra sem sol

Ela, a que vem sangrando

Encontra com ele,

marchando.

Lauren, que tem pés no mangue.

Mas sem raiz, e de caule fraco,

ancora tentáculos ao ar, tentando resgatar alimento.

Agarra, faminta, múltipla de braços, carente de todo o resto.

Ele, inflexível, casca dura, rosto impassível.

Ela pergunta-lhe o nome. Ele nada lhe dá.

Lauren suplica-lhe algo,

e ele percebe que ali há comando.

Então ele fica, liderando seu pequeno exército

de uma só,

e só o que dela resta.

Ela ancora-se ao léu, porque ele não se deixa agarrar.

Mas ele deixa um dedinho no céu,

como uma isca no ar,

 

como bússola macabra

condicionando o andar

 

Lauren joga no chão

migalhas

pra ela mesma catar.

Porque ele

nada lhe dá

e ela

tudo quer pegar.

 

Então…

 

Erram pelo deserto

inferno de ambos,

sem sol.

Arrastam-se pelas paisagens

sem horizonte,

sem mar.

Ela, que não tem futuro

só teme o passado,

é só.

Ele, que queima por dentro

destrói o presente

sem dó.

Eles se grudam, se arrastam,

tal sombras sem dono,

sem luz.

Fundem-se num corpo estranho,

um câncer medonho

de pus.

Pedem, mas de um jeito raro

que um raio os separe

ou parta.

Partem de si dia a dia

e juntos se afogam

na praia.

 

Cuspi Lauren do corpo

enquanto fervia

lamúrias.

Coçava feito uma praga

esfolou meu pé

na luta

Rasgou a minha garganta

queimou-me o rabo

em fúria.

Tentou agarrar-me aos prantos

contando histórias

de fuga

Arrasta consigo o capeta

que a segue mandando

pros quintos.

Erra, diaba de eras

até que consiga

seu ninho.

 

Adeus, Lauren

que um dia você troque o diabo por eros, osíris,

algum outro deus.

E até lá, adeus,

 que esse caminho é seu,

e essa não é minha história.

 

(depois percebi, Lauren

que não poderia te abandonar, tal como um pé que não se desfaz da sombra.

então, joguei sobre você meu sol

e pedi para que te iluminasse)

 

um pouco mais sobre Lauren

ela já falou por mim algumas vezes. agora, falo por ela.

o texto ainda será épico. daqui a pouco darei voz à moça, quando me cansar desse pequeno poder dramatúrgico.

tenho um pouco de medo dela, confesso. por isso, tô liberando aos poucos.

um pouco mais sobre Lauren:

– sabe “Atrás da Porta”, do Sr. Buarque? ela não escuta, ela vive.

– usa com propriedade as seguintes palavras: nunca mais. (em começo ou fim de frases)

– se fumasse, teria uma piteira.

– se fosse fatal, seria Lauren Bacall.

– ainda sem sobrenome. aliás, não tem nem nome. Lauren é pseudônimo de alguém que ela não sabe quem.

Eis que surge: Lauren (ainda sem sobrenome)

há tempos te espreito.

mas nunca te respeito.

ontem me perguntei se era possível te amar. amar alguém que não se sabe amor.

então Djavan e Bethania me cantaram o que te dizer.

e te dizendo, te tirei. Lauren, você nasceu de um suspiro mal respirado. agora crio.

 

É inútil chorar 
Noites enveredar 
Ruir por nada assim 
Minha vida é sua 
Como um marinheiro do mar 
Sofrer não há porque 

Desencana meu amor 
Tudo seu é muita dor 
Vive 
Deixa o tempo resolver 
O que tem que acontecer 
Livre 

Tanto que eu sonhei 
Nos amar a pleno vapor 
Tanto que eu quis 
Fazê-la estrela 
Da sagração de um ser feliz 

Desinflama meu amor 
Do seu jeito é muita dor 
Vive 
Deixa o tempo resolver 
Se tiver que acontecer 
Vive 

Desencana meu amor 
Tudo seu é muita dor 
Vive 
Deixa o tempo resolver 
O que tem que acontecer 
Livre.

Vive – Djavan