Ensaios R&J – Sétimo Encontro

Depois de bastante tempo sem que conseguíssemos nos encontrar, marcamos uma noite comum: a quinta-feira que antecedia o feriado da Páscoa. Nesse tempo entre um ensaio e outro, engendrei algumas idéias para cenografia e figurino.

Estava um pouco inquieta para conseguir passar um código sobre a violência que a peça contém, e não cair no erro de ficar somente no encontro amoroso.  A estrutura do texto tem essa atmosfera bélica do início ao fim, e o amor dos dois só chega àquela intensidade impressionante e encantadora porque é cercado pela densidade que gera a violência e, sobretudo, pela iminência da morte.

Além disso, havia a precipitação. A tragédia da precipitação, segundo o ator Eduardo Moreira, do grupo Galpão, quando explicava o uso das pernas de pau na montagem do grupo: o clima de instabilidade. Então fiquei imaginando como trazer isso à cena. Pensei em colocar um balanço no palco, depois me veio à mente uma rede de pesca com leds, conformando um céu estrelado, gerando um véu que protege Romeu e Julieta, onde eles poderiam também se pendurar, sugerindo a trama da outra realidade que eles plasmaram com seu amor. Cheguei a tentar descolar uma rede, quando a luz da consciência bateu sobre minha cabeça. Era óbvio que não teria tempo pra isso. Mesmo se conseguisse, ia passar mais tempo tentando pendurar a coisa do que ensaiando com ela.

Retornei do meu delírio ainda inquieta. Arame farpado? Poderia ser. Seria ótimo ter arame sobre o palco, mas voltei ao problema da falta de tempo. Talvez projetado. Descolei, certa vez, um retroprojetor que gostaria de experimentar em cena, ver que efeitos podemos gerar colocando objetos nele. Me pareceu mais adequado ao tempo que tenho, e ao tamanho da cena. Mas ainda assim queria algo concreto sobre o palco, além dos atores.

Depois percebi que tudo isso era uma grande ansiedade porque não conseguia ensaiar, e estava tentando me apoiar em recursos externos. O mar infinito das possibilidades de encenação, a parafernália para me tranquilizar porque não tinha o essencial: O humano. Eu tinha passado por uma semana absolutamente pragmática, burocrática, e com risco de transformar um processo até então bem prazeroso num tormento. Pela graça de algum passarinho que piou de madrugada, lembrei que a pesquisa era, simplesmente, a ação das palavras sobre o corpo, sobre os sentimentos. Está tudo no texto, e com um bom trabalho com os atores, imagino que essa atmosfera possa ser ressaltada sem necessidade de muitos elementos. Mas essa é sempre a opção radical, e também é a mais próxima da que escolhi como pesquisa. Então percebi como é fácil, nesse momento do processo de direção, que a mente divague pedindo socorro, que o espaço cênico seja preenchido por muitas coisas – mesmo que essa não seja sua opção, tudo por medo de não ter atingido o essencial, por medo de que o código não seja claro. Mas se Peter Brook faz com um tapete…

No meio disso tudo, acabei indo assistir ao filme sobre (e para) Pina Bausch, de Win Wenders. Fui sozinha, numa tarde de terça, pedindo por inspiração como quem pede por água quando se tem sede. Então recebi muita água, e em abundância. Então pude também derramar os meus rios sobre testemunhas silenciosas, o escuro e a amplitude da sala de cinema. Eu já havia sido vítima do rapto inevitável do trabalho do Tanztheater Wuppertal, mas aquilo é um sempre-susto. E o que já era uma das minhas referências há muito tempo tornou-se a definitiva pra esse trabalho. Nada me parece mais adequado: um palco aberto com poucos elementos, e seres deixando que seus corpos sirvam ao inexplicável. Lembrei da referência de Romeu molhado, e mais uma vez divaguei com terra e água sobre o palco, mas foi numa conversa com alguns amigos, Bruno Ribeiro e Renata Oliveira, que cheguei em algo possível: um palco forrado por algumas rosas e pequenas flores de papel crepon, um figurino claro e molhado que vai se sujando de tinta vermelha. Simples e realizável.

Além da plástica inspirada por Pina, colhi mais uma pérola de seu trabalho: o efeito cumulativo das ações repetidas. É um dos traços de identidade da sua poética, não era novidade para mim, mas revendo agora, à luz do efeito reator que observo em Romeu e Julieta, percebi que isso pode se dar também na camada das ações físicas, além do efeito gerado pela carpintaria do texto. Claro, isso pode ficar bastante estilizado como uma dança, mas também pode se sutilizar em alguns gestos. O corpo move a ação, a ação se acumula e revela, para alem dela, o nosso pathos. Ainda não sabia exatamente como usar isso em cena, mas guardei a possibilidade.

E quinta à noite, cidade fervendo de calor e vontade de festa, mais uma vez nos reunimos. Garbel estava viajando para visitar a família, então éramos Cris, Dani e eu, e também a Renata, que convidei para esse encontro. E do último ensaio para esse, a única coisa que tinha ficado no lugar era o fundo infinito do estúdio. Parecia que todos passavam por um tempo de provações, e não vou entrar em detalhes porque o assunto não diz respeito só a mim, mas posso dizer que, nesse dia, fazer um ensaio de Romeu e Julieta e falar de amor foi praticamente uma ironia dos deuses. E como a ironia está bastante presente no texto, imaginei que estava tudo certo.

Estamos realmente vivendo tempos estranhos. E estranho também foi ver que eles estranharam o fato de terem se atrasado mais de uma hora e não terem sido recebidos com impaciência, mesmo com todos os problemas que justificavam. Porque hoje é estranho ter problemas pessoais, porque também é estranho ter vida pessoal quando se trata de trabalho. E a essa estranheza chamam profissionalismo, e não ao constante esforço de fazer o melhor dentro do ofício que você escolheu realizar. E o fato de ter o amor como regente de nossos encontros, como a tônica de nosso trabalho, ser motivo de surpresas, deveria ser motivo de espanto. Porque não poderia ser de outra forma, ainda que fosse pela simples coerência com o conteúdo que estamos burilando.

Esses pequenos detalhes no campo das relações, mais que as guerras, ou a tensão evidente das ruas, ou qualquer outra coisa que vêm à mente ao pensarmos na palavra violência, é o que deixa para mim evidente a necessidade desse texto hoje, bem como falar do amor incondicional. Somos todos permeáveis. Romeu foi permeável, e daí o seu ponto de virada ao trágico. Aceitamos a violência como algo natural, inerente, e não como algo mecânico, mas passível de direcionamento. E o problema da violência é que ela parece terrível para quem a vê de fora, mas irresistível para quem sente o impulso. Ao entrar na rede de ilusão traçada por esse impulso, somos manipulados como “joguetes do destino”, e só retornamos desse transe momentâneo pelo esgotamento da energia vital, ou pela imagem da consequência. É, portanto, uma energia tão potente quanto o amor, e seu maior antagonista. E o importante, na análise da peça, é perceber que isso não acontece apenas fora, mas também dentro da egrégora formada pelo casal. Apesar de compartilharem momentos de pura perfeição, em que talvez estivessem acima desses sentimentos, são humanos como todos nós, seu lugar é na terra, reino de todos os sentimentos. E esse “subir e descer” é parte de seu movimento. O branco, em contato com a terra, não está impassível de se colorir.

E essa era a camada que faltava, ainda, à cena. Então, antes de começar o aquecimento, conversamos um pouco sobre as idéias de flores vermelhas, somada a algumas sugestões da Renata de uma poeira colorida. Depois me ocorreu também misturar tudo isso àqueles lança-confetes de festa,  uns canudos que estouram liberando papéis coloridos, que também podem sugerir um estouro de uma arma – e para a cena de Mercúcio pode funcionar bem.  Dani sugeriu que eles começassem a cena montando esse cenário, molhando o figurino, e achei bem interessante, porque logo de cara já se apresenta a linguagem ritualística que estamos priorizando, sem espaço e tempo cronologicamente definidos. Pensei em usar o pó para delimitar um círculo. Coisas que só poderemos experimentar numa próxima vez.

Dali, partimos para o ensaio da cena. Começamos com o baile, que já estava mais firme, apesar de ainda patinarem no texto. Gostei de perceber que o que trabalhamos no ensaio anterior, o jogo e a sensualidade da cena, ainda estavam ali. E algo ficou bem claro: quanto mais o texto era dito durante o jogo físico, melhor ele ficava. Sem a pressa para o próximo verso, podendo preencher os entreversos com ações, sem se prender a uma musicalidade obrigatória. Tivemos bons momentos. O jogo está bem claro. Não consegui fechar ainda uma partitura, porque isso implicaria em ficar parando, e não tínhamos muito tempo. Anotei momentos que gostei, e fomos adiante, para a cena do balcão.

Eu estava com receio dessa cena. Como disse, passei a semana pensando se não deveria colocar algum elemento no palco, qualquer coisa que desse a mínima idéia de um balcão, ou um jardim, ou qualquer coisa. Além do delírio da rede de pesca e do balanço, cheguei a cogitar uma escada -o já comentado pedido de socorro ao objeto concreto. Mas como eu não tinha nada disso naquele momento, pedi para que fizessem como na cena do Baile: que começassem em uma diagonal, cada um em uma ponta, e aos poucos fossem se aproximando, pensando no mesmo jogo da outra cena: um pega-pega sutil. E os dois foram desenhando os momentos com os corpos, e uma dança muito bonita apareceu. Então não eram apenas Romeu e Julieta na cena do balcão, mas dois adolescentes rolando pelo chão e curtindo o amor recém-descoberto. Muitos beijos. Cris preferiu fazer a cena sem camisa, e adorei o resultado. Então percebi que o baile e o balcão não eram duas cenas diferentes, mas a mesma cena em momentos diferentes. Ambas tratam da delícia do encontro – porém, na segunda, já existe a informação mais clara do perigo iminente. Então percebi uma aplicação possível à estrutura de acumulação da partitura física inspirada por Pina Bausch. A mesma pulsão, alguns mesmos movimentos, em crescente de intensidade. E o efeito-reator também se desenha sobre os corpos.

Além disso, mais uma descoberta: percebemos que nos momentos em que o texto era dito durante uma ação, inclusive sendo entrecortado por ela, seja por por um beijo, ou por uma respiração, um movimento, aí ele brilhava. Aí não era declamado, e sim vivenciado. Aí era o ponto em que a poesia se corporificava, porque também era sentida com os poros.

O mais engraçado é que isso aconteceu justamente num trecho que para mim era um problema pessoal. Nessa fala de Romeu:

Romeu – Ai! Mas nos teus olhos tem mais perigo

que em vinte espadas de inimigos.

basta um doce olhar do teu olhar

e ficarei imune a qualquer ódio.

Toda vez que eu lia isso, um espírito de porco se aproximava do meu ouvido e cantarolava Tiro ao Álvaro, do Adoniran.

(…) Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estriquinina
Que peixeira de baiano (…)

Confesso que tenho minhas cretinices, mas isso me atrapalhava muito. E justo nesse pedaço, Romeu resolveu falar enquanto beijava Julieta e caminhavam juntos, como um único corpo. Foi tão, tão lindo, que entendi, nesse ponto, o que deveriam fazer durante o texto inteiro. E isso tudo se deu com eles ainda lendo papel nas mãos, lendo o que ainda não estava decorado. Posso imaginar onde pode chegar, quando estiverem com olhos e mãos livres.

Passamos a cena duas vezes. Um esboço de partitura se desenhou. Mesmo com os problemas que temos, mesmo que ainda, em alguns momentos o texto soe declamado, na maior parte do tempo o jogo está presente, e a atmosfera é muito bem preenchida. Há muita potência nos corpos, e há um querer genuíno aproximando os dois. O afastamento só se dá pelo prazer do novo encontro, para manter o jogo aceso. Assim como diz o trecho:

Julieta – (…) Boa noite, boa noite!

Ah, que essa doce calma que me enche o coração

encha também a sua alma!

Romeu – Vais deixar-me assim, insatisfeito?

Julieta – Mas que satisfação esperas ainda, essa noite, de mim?

Romeu – Tuas sagradas juras de amor,

em troca das que te jurei.

Julieta – E as que antes de pedires eu dei?

Pois seria melhor que não as tivesse dado!

Romeu – Por que razão, amor, quer retirá-las?

Julieta – Assim, uma vez mais, poderia lhe dar.

Mas estou desejando o que já tenho.

Minha bondade é como o mar: profunda e ilimitada.

Quanto mais eu te der, mais tenho, pois ambos são infinitos.

E mais uma vez, sobre um fundo infinito branco, passamos por essas palavras. Cristiano manifestou a delícia que é dizer esse texto. Dani acrescentou que nunca teve dificuldades para decorar, mas que no caso dessa peça essa resistência se apresenta. Vendo o ensaio, acho que essas duas observações se complementam, porque fica óbvio que é um texto para ser vivido, e não apenas dito. É evidente a influência da ação de um sobre o texto do outro, e talvez seja a cena o lugar em que ele deve ser totalmente memorizado. Porque é pela ação que ele faz sentido.

Gostaria de ter experimentado a versão em inglês, para sentirmos juntos o movimento e a música no idioma em que o poema foi originalmente escrito. Mas assim como no ensaio de hoje compartilhamos do texto sua ironia, também sentimos a escassez do tempo. Talvez num próximo encontro, com o texto finalmente decorado, isso se dê. Mas em escala de prioridade, não está em primeiro plano.

Fiquei com a impressão de que ainda há muito a fazer, mas que algo importante já foi conquistado. O que me tranquilizou foi sentir a atmosfera deixada no estúdio depois do ensaio, prova de que o essencial se apresentou. Agora falta lapidar a pedra, que aparentemente já foi descoberta da terra. Não sei se terei tempo suficiente, até a apresentação da cena, para que isso aconteça, mas esse é o rumo que gostaria de tomar a partir de agora.

Combinamos os próximos encontros: como Dani e Cris estão reestreiando o Orfeu Mestiço (do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos), na semana seguinte não conseguiremos nos ver. Pedi para que passassem o texto juntos, em algum momento, para que finalmente possa ser decorado. Teremos agora apenas dois encontros antes da apresentação: o ensaio geral no próximo sábado e um ensaio no meio da semana que antecede o final de semana da apresentação.

Então, entre amor e chocolates, nos despedimos.

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