Antes de falar da apresentação, preciso compartilhar algumas percepções sobre a arte da direção teatral. Minha postura de vida, é claro, reverberou diretamente nesse ofício que acabo de experimentar. Não estou falando do óbvio, das minhas escolhas estéticas, mas daquilo que, por ser involuntário, sai de mim sem que eu perceba e interfere no que todos percebem: a própria cena.
Meu olhar é enviesado, através. Meio de canto, meio de esgueio, meio emoldurado por bordas de óculos. Pelo enquadramento do cinema. Pela distância das palavras. O contato direto com a experiência me assusta, mas em dimensão maior, me encanta: daí o conflito. O conflito de amar o conflito e temê-lo, ao mesmo tempo. Como a menina que via filmes de terror entre dedos.
Sempre me pergunto o por que de ser dramaturga, já que minha dificuldade em relação ao trabalho é justamente escrever de forma mais literária que teatral. Por que não me lançar diretamente aos livros, por que insistir no teatro? Antes, só conseguia responder assim: Porque é um íma. Porque não se compara. Mas só agora entendo: porque tem o risco da presença, o risco de alguém te falar aquilo face a face, o risco da emoção aflorando com testemunhas, o risco do contato. Porque é mentira que seja tudo mentira – talvez, a história, mas não a experiência. Teatro, quando é teatro, faz mentira virar verdade.
E se é você a pessoa a despertar tais verdades? Despertar os conflitos?
No cinema é mais fácil, porque a gente sente tudo às prestações, plano a plano, e só depois manipula. Não digo que é impossível – quando o susto também tem espaço na tela, entre um “ação”e um “corta” aquilo se imortaliza e dá origem ao inesquecível. Mas essa não é uma condição sine qua non para que o cinema aconteça, porque a hipnose das imagens, das câmeras e da edição conseguem jogar uma poeira, a emoção pode ser construída artificialmente, na sala de montagem, longe do risco da experiência. E ainda há a equipe, a repetição em diversos takes, os monitores de video, há portos seguros te lembrando que aquilo é só um filme, é só um sonho, não tenha medo, já passou. No cinema, aprendi a construir imagens, decifrei a poesia dos enquadramentos, da luz, das composições. E nesse olhar contemplativo, através de janelas, estava segura para observar a emoção de longe. Mesmo que fosse verdade, mesmo em documentário. A íris da lente não chora.
Depois me lancei às palavras. Não digo que sem risco – não é fácil explorar os abismos. Mas é uma aventura sem testemunhas. O outro só entra depois, compartilhando a aventura já vivida, mas a viagem é de um só: experiência que posso interromper quando quiser. Sim, há perda de controle, há desvario, mas não há risco de ser banido da vida do outro por desagrado. Como poderia me excluir de mim? Posso calcular as palavras, voltar, reescrever. Não há o que temer, nem do que se arrepender, apenas a coragem pra ver. Descer com a lanterna e decifrar mundos, mas mundos de uma só. Mil personagens dentro, apenas uma voz. Então me faltava diálogo, faltava gente. Intercâmbio.
Minha transição para o teatro foi como dramaturga. Adoro acompanhar processos, não tenho problema com o colaborativo – desde que seja, de fato, uma co-criação – e meu lugar na sala de ensaio era o “cantinho da dramaturga”. Enquanto observava os atores trabalhando, anotava minhas percepções para depois compartilhá-las com o diretor ou diretora com quem trabalhava. Não falava diretamente com os atores sobre a cena, e meu olhar estava no texto: a estrutura, as palavras, o que faltava ou sobrava, a construção das personagens, o diálogo. Como dizer as palavras, como colocar o corpo, como atingir o estado necessário, tudo isso eram questões alheias a mim – estavam a cargo de quem dirigia. Meu papel era estar ao mesmo tempo presente e distante, avaliando o todo, de longe, no canto. Através.
Eis que, um dia, resolvo me lançar à direção. O palco, os atores, a vida ao vivo. A experiência concreta, com todos os seus atritos, com todos os problemas de tempo, locais de ensaio, falta de dinheiro, excesso de coisas, dificuldades dos atores, intersecção de cronogramas, expectativas. Lidar com emoções alheias, com a imprevisibilidade, com o desejo de controlar a experiência sabendo-se impotente para isso. Não havia câmera para intermediar, nem cortes para separar a emoção em pedaços mais respiráveis. Não era suficiente ficar no canto observando e só trazer observações. Era necessário provocar, estar presente, estar na pele, estar no corpo. Ao contrário do que pensava, dirigir é perder o controle. Lançar-se, junto, à experiência, ser transpassada por ela. Provocar a fricção, para que o conflito do texto possa realmente se corporificar, descer abaixo da linha do pescoço. Dirigir é um ato de amor, porque implica em deixar seus limites, incomodar, se necessário, colocar a atenção no que é importante para que a cena chegue onde tem que chegar. Dirigir é romper as bordas. É estar em evidência, no centro do palco, com luzes em cima, exposição absoluta. Sem intermediários.
Talvez por isso, nessa última semana, meus óculos quebraram justamente na armação. Talvez por isso eu tenha também ficado sem as bordas, frágil, permeável – e sem poder remediar com um pouco de superbonder. Percebi, durante os ensaios, minha dificuldade de estar presente, totalmente presente: era como se, rompidas as barreiras, por não ter mais janelas, eu tivesse criado uma película invisível que se manifestava numa espécie de torpor. Isso me atrapalhou muito, impedia que eu registrasse a cena como um todo, que visse onde deveria interferir, que soubesse a palavra precisa a se dizer para o ator. Em alguns momentos conseguia furar essa névoa, e ao invés de primeiro pensar, calcular, para depois fazer, fazia sem pensar e sentia as reverberações do ato. Perdia o controle e me deixava conduzir pela própria força do processo: e nesse momento não era eu em controle, e sim eu não era meu nome, era só fluxo, fazendo o que tinha que fazer para que a cena cobrasse força. Logo depois descobri que entre dirigir e atuar não há diferença, porque essa mesma questão também pertencia ao ator.
Depois dessa experiência, vendo o resultado, pude ler todo esse percurso interno. O que funcionou e o que não funcionou, no momento, foi a medida do quanto consegui furar essas barreiras, o quanto consegui resistir ao impulso de me fazer invisível e, ao contrário, estar exposta no tempo presente, nua em pêlo, e à serviço. Dirigir é ser conduzida e, só por isso, conseguir conduzir.
Concluí, então: “que lindo” não basta. Nem para palavras, nem para imagens. Talvez sirva às outras artes, mas não ao teatro. Claro, o belo tem seu valor – lindas imagens e palavras podem gerar as condições adequadas para que uma atmosfera favorável se instaure no público, para que o estado de poesia se estabeleça, amaciando a dureza cotidiana para um estado de maior permeabilidade. Mas isso é só a ante-sala do que deve vir em seguida, para o grande susto, que só é possível através do ator. Se não temos essa segunda parte, ainda que bela, a peça é só promessa. E para que a platéia chegue nesse lugar, deve ser conduzida. E para que isso ocorra, a gente tem que estar lá. Lá. Lugar onde só se chega na instabilidade, no risco, na perda das bordas, dos nomes. Local de coragem. Lugar exato de Romeu e Julieta.
123Duca isso, Clau.
Duca mesmo!1wadfghjkjhgfxaasdfvbbn1223
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