crônicas da bússola azul: primeira viagem ao sul

… e da mata ela nada mais sabia. mas não era esquecimento, porque de algum lugar ainda lembrava. sentia o cheiro de mato e fogo, sentia o relinchar do bicho amigo. procurava, procurava, sentia a menina. seria a filha que ainda não teve? ouvia seu sorriso.

sentia o cheiro de cor de floresta, ouvia indícios nada ver com seu mundo. ouvia? mas havia o véu separando universos, iludindo com horas, dias e anos o tempo também presente em dimensões secretas.

mas ela precisava dessa memória antiga. e por mais difícil que fosse o acesso, daqui, a mulher crescida pediu. de sua dimensão adulterada pelos anos, fez-se um salto inesperado e cruzou a neblina dos sonhos, e de repente, lá estava: num imenso campo descoberto sob uma noite estrelada e fria, ao lado de uma pequena fogueira, ela se aquecia. era pequena, talvez quatro ou cinco anos. vestia uma capa avermelhada, tinha sapatos gastos e um pingente brilhante. tinha, ao lado, um cavalo. tinha, à frente, sua busca. tinha, ainda, a fé que move o mundo, ainda não corrompida pela crença do “impossível”. tinha medo, mas tinha certeza.

então a mulher viu que a menina seguira seu destino. suas mãos se aquecendo ao fogo tinham marcas, e seu rosto cicatrizes de alguns percalços. seu coração, contudo, era brilhante. era de fogo.

a mulher não ousou se aproximar, só sentiu uma compaixão imensa, um agradecimento profundo. a menina seguira o seu caminho há muito tempo abandonado, tal como guardiã de uma grande terra onde muito mais era possível. ela alimentou, com sua pequena fogueira, os sonhos daquela realidade.

então ela viu o momento: aquele dia na ilusão de tempo passado, em que a mentira entrou, em que a menina se dividiu, em que parte ficou ainda acreditando, e que a parte que agora é ela, ainda criança, cruzou o véu para essa dimensão, e aqui cresceu. e enquanto tentava seguir o roteiro da vida dos homens, ouvia, bem longe, o galopar do cavalo. sentia o fogo. ouvia o sussurar das estrelas. sentia o rosto úmido pelas lágrimas da menina, que apesar de ser sua parte, permaneceu inteira.

então ela viu que não eram lágrimas de desalento. lá estava a pequena, aquecendo-se ao fogo, e o líquido que saía de seus olhos era o embalar de um acalanto. era a própria terra cuidando de seu espírito, de sua música. era todo o sentimento do mundo escorrendo por seus olhos, tal como mantra, garantindo o fluxo:

estamos aqui, estamos aqui, estamos aqui. está tudo bem, está tudo bem, está tudo bem…

 

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