achei esse texto que escrevi em 2010, numa noite no DCC (Dramaturgia Concisa e Contemporânea), evento muuuuito bacana que o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos produz. não lembrava dele, acho que pela forma como foi escrito, no susto. (lá é assim: a organização dá um tema e escrevemos de improviso, em uma hora, durante o evento. depois ótimo elenco lê o texto para os participantes . sem frescura, na lata, uma delícia.)
já que achei, resolvi colocar aqui. é de uma sincronicidade estranha.
PARTO
Mãe e filha estão sentadas lado a lado. A filha está grávida.
MÃE – Mas você me chamou muito cedo!
FILHA – Eu não te chamei, você quis vir
MÃE – São dez horas de viagem, não ia dar pra vir de repente.
FILHA – Ainda falta.
MÃE – Agora eu to vendo que falta.
FILHA – Mas eu te falei que…
MÃE – Mas agora eu tô vendo.
Tempo
MÃE – É que você sabe, nossa família tem um histórico de…
FILHA – Eu sei.
MÃE – Não to dizendo que vai acontecer, só que pode acont…
FILHA – Eu não preciso ficar ouvindo isso
MÃE – Tá, tá. Desculpa.
FILHA – Também não precisa ficar sem falar nada!
MÃE – Como é que ela tá?
FILHA – Tá linda! Já dá pra ver as bochechas, acredita? E já tá virada, na posição, encaixadinha, precisava ver só que…
MÃE – Eu não disse? Vai que essa menina nasce assim, de repente, e você sem ninguém pra…
FILHA – Eu não sou sozinha!
MÃE – Sem mãe. Sem mãe pra te ajudar.
Tempo.
MÃE – Ainda mais dessa forma que você…
FILHA – Não fala!
MÃE – Ainda mais desse jeito.
FILHA – Não fala!
MÃE – Nossa família tem histórico de…
FILHA – Fica quieta!
Tempo
MÃE – Eu só quero seu bem.
FILHA – Eu sei.
MÃE – Não sabe. Só vai saber depois.
FILHA – O que você quer que eu faça?
MÃE – Me escuta.
FILHA – Então fala.
MÃE – A nossa família tem um histórico…
FILHA – Não fala!
MÃE – De aborto.
FILHA – Eu disse pra não falar!
MÃE – Eu falo pro seu bem.
FILHA – Isso você já falou.
MÃE – Você não sabe o que é isso. Você não sabe o que é isso. Tô falando pra você se cuidar! Pensar, pensar, pensar! Deixar de ser louca! Irresponsável! Agora você não pode mais ser assim, vai ter uma vida pra cuidar…
FILHA – Eu sei!
MÃE – Você sabe.
FILHA – Eu já sei. Você veio antes pra tentar me convencer a fazer do seu jeito.
MÃE – Você está vendo tudo enviesado!
FILHA – Tá claríssimo agora!
MÃE – Você não pode ficar nervosa!
FILHA – Pára de dizer o que eu tenho que fazer!
MÃE – Você não pode ficar nervosa! Fica calma!
FILHA – Por que?
MÃE – A nossa família tem um histórico…
A filha levanta-se, exaltada.
MÃE – Eu tenho medo que…
FILHA – Eu sei que tem. Eu cresci nesse mar fofo de medo, nesse conforto de medo, nessa massa disforme de medo misturada com carinho e cuidado. Antes de aprender quem eu era, eu passei a ter medo de coisa que nem sabia. E sabe do que eu tenho mais medo agora? Sabe? De quem tem medo. Porque são essas pessoas, contaminadas de pânico, cheirando a adrenalina, que são capazes de tudo. De qualquer coisa, só pra se livrar desse desespero! Eu bebia seu medo junto com leite, mãe. E seu medo foi tanto, que eu lembro, o leite secou rápido por medo da falta dele.
Silêncio. A mãe levanta-se e pega a bolsa
MÃE – Você não pode ficar nervosa.
Tempo
MÃE – A nossa família… Eu tenho medo que…
A mãe desiste de falar. Vai em direção à porta.
FILHA – Mãe!
As duas olham-se por um tempo. A mãe volta a se sentar na cadeira. A filha deita a cabeça no colo da mãe.
FILHA – Eu tô com medo.
MÃE – Eu sei. Eu também.
FIM