Quando coloquei meu dedo naquele botão, não deixei de sentir um certo orgulho. Talvez seja uma ilusão de poder, talvez eu tenha sentido, naquele toque, a luta de tantas pessoas que batalharam para que esse momento fosse possível. Mas nunca, para mim, foi tão difícil decidir. Nunca ficou tão evidente a contradição desse gesto.
Sempre pensei que a realidade era complexa. Qualquer tentativa de definir, explicar, reduzir, acaba nos colocando em um fragmento, facção, partido. Um ponto de vista único. Mas bem, também temos que decidir, não ficar em cima do muro. Mas decidir de verdade é diferente de decidir entre o que já foi decidido.
Então percebi que não é que vivemos numa realidade complexa, mas num sistema complexo de polirealidades. Ah, é a mesma coisa, pode-se dizer. Mas não. Porque experimento, em mim, cada uma dessas realidades, como vertentes, vetores, direções que podem se configurar como verdade, dependendo de para onde eu ajuste o passo.
Cada uma dessas realidades tem um sistema próprio, uma lógica própria. Uma frequência específica.
Agora, aplicado ao meu dedo no botão: numa delas, o voto tem validade. Penso que estou escolhendo alguém que melhor representa meus interesses – porque por mais que sejam interesses também coletivos, ainda são meus. Então me lanço a uma busca: quem consegue pular nesse mar de lama e estar limpo? Sim, ainda deve existir heróis de rabo solto e fígado de aço, no meio daquele monte.
Então voto. E acho que minha parte está feita. Porque escolhi um representante para fazer o que é tão difícil: tomar decisões em uma coletividade. O representante teoricamente me representa. Eu aceito essa meia-verdade porque não quero lidar com a educação, o saneamento básico, o trânsito, a saúde, a ecologia, a economia, a cultura. Talvez nessa última posso opinar um pouco. Só um pouco. Porque não me sobra tempo nem pra lembrar do que fiz no final de semana.
Então escolho um representante profissional que vai receber um salário profissional para pensar por mim nessas coisas. E posso seguir a vida sem pensar em decisões coletivas, porque o coletivo cansa, e muito. Já experimentou tomar uma decisão em dois? Em três? Em um grupo maior? Já experimentou tentar o consenso – note bem, não disse NEGOCIAÇÃO, mas CONSENSO. Já experimentou o longo, longo processo horizontal de mediação de conflitos?
Eu já, e te falo: em muitas e muitas vezes, depois de horas – ou dias – tentando conciliar algum assunto, em momentos de descrença e fadiga, pensei nas vantagens do verticalismo. Se tivesse um diretor, um chefe, um representante, essa discussão já estaria encerrada e eu poderia voltar pras minhas coisas. Então é na realidade desse pensamento que a realidade do voto cria seus alicerces. Porque tem gente que nasceu pra coisa, ouve, pondera, analisa, tira o denominador comum, tem liderança, dizem, poderia ser candidato. Eu votaria em você.
Numa outra realidade, que obviamente exige um estado de consciência raro, isso se torna um completo absurdo. Como se eu fosse escolher alguém que fosse decidir com quem eu ia trepar, por exemplo. Porque no fim é tudo a mesma coisa: alguém que escolhe onde minha energia está sendo direcionada. E por que? Porque eu elegi. E por que? Por preguiça, ou impotência, ou intolerância, ou total incapacidade de trabalhar em grupo. Em TOLERAR O CONFLITO DAS DIFERENÇAS.
Aí vem a questão fundamental: como eu conseguiria me colocar de acordo com uma pessoa que, por exemplo, elegeu tipos como Russomano, Serra, Coronel Telhada, Andrea Matarazzo, e tantos outros, e tantos de seus seguidores? Como fazer com que meus argumentos cruzem sua reta em algum ponto que seja, em uma trajetória tão divergente? E se estivéssemos em um círculo tentando decidir alguma coisa: Haveria consenso? Chegaria algum momento em que teríamos que dizer: bom, nada feito, então vamos votar?
Não, não tenho resposta. Só perguntas.
Sim, elas me inquietam. Bastante.
Porque já experimentei o consenso, e sei que ele pode existir. E já sei de muitos grupos, comunidades, agrupamentos – todos horizontais – que tem plasmado no mundo essa nova realidade. Não sou nenhuma niilista incrédula, militante da ditadura de realidade única. Participo há anos do Movimento Humanista (onde vivi grandes experiências), vi nascer movimentos como os recentes coletivos de ocupação, incontáveis manifestações artísticas, muitas e muitas iniciativas. Mas como seria isso em grande escala? Estamos prontos para a horizontalidade? Para o círculo? E os tantos outros que pensam tão diferente? – teimo em pensar.
Então num gesto meio impensado, tentando entender quem eu pensei que nunca entenderia, correndo um risco ilusório, num terreno seguro que só a web e suas múltiplas caixas e janelas permitem, ousei entrar no facebook do tal herói da ROTA, o Telhada. Um pouco para entender o que li recentemente no artigo de Eliane Brum, e num outro no jornal Brasil de Fato (sobre o jornalista André Caramanti que estava sendo ameaçado de morte por denunciar abusos da polícia); e um pouco num espírito de aventura de entrar em território minado e buscar o incompreensível.
Ali achei várias postagens do próprio agradecendo sua cascata de votos para vereador.
Mas no meio de tantos posts e comentários óbvios, não entendi: com finalidades de agradecimento, pousava ali um poema de Mário Quitana, com uma foto angelical do mesmo, apoiado em sua bengala:
“A amizade é uma espécie de amor que nunca morre”.
Claro, foi uma apropriação. Talvez hipócrita, talvez até sincera (não conheço o sujeito pra saber). Mas ver a poesia do Mário Quitana misturada àquele liquidificador da ROTA me deu um curto-circuito tão grande que por um momento todas essas realidades se embaralharam.
Levei um choque alquímico.
Não consigo pensar em mais nada.