meu avô era um peixe

Tô meio sumida aqui, porque ando escrevendo uma peça. Mas como tenho boca grande difícil de ficar fechada, vou deixar escapulir um pedaço.

É história inventada, mas doeu pra sair. Rasgou um pedaço junto, mas essa parte rasgada era só apego. Ou era a placenta, que nem nutria mais essa memória.

Mas se doeu, o que nasceu foi verdade.

E assim percebi que a dor do parto é aceitação.

Quando eu tinha mais ou menos uns sete anos, aprendi a nadar. E o que eu mais gostava era de afundar lá no fundo da piscina, ficar lá parado. Gostava de ficar sem peso e sem som no ouvido. O corpo ficava leve. Eu me sentia parecido com um peixe num aquário, mas era bom. Eu me sentia parecido com meu avô, também, porque quando a gente era menor ficava brincando que meu avô era um peixe. Porque ele dormia no sofá com a boca aberta, minha vó mandava ele ir pra cama, mas ele gostava era de ficar no sofá, com a cabeça pendurada. Eu ficava do lado imitando, mas longe da minha mãe, senão ela ficava brava. Depois ele acordava, olhava pra mim em silêncio, fazia um cafuné na minha cabeça e ia cambaleando buscar uma cerveja. Eu imitava ele nisso também, e ele ria. Meu avô falava pouco, porque quando começava a contar alguma coisa, logo esquecia. Aí ele ficava chateado. Um dia eu perguntei pro meu pai porque ele era assim tão quieto e meu pai falou que ele tinha trabalhado muito, e agora tava descansando tudo o que não descansou na vida toda. Parecia que ele vivia num barco à parte do mundo, no meio do rio. Mas eu entendia o meu avô, gostava dele pra caramba. Ele me entendia também. Num dia, a gente tava num barco pescando mesmo num rio, lá em Oriente, eu e meus primos, todo mundo pegava peixe, menos eu. Eu não falei nada porque estava com vergonha, mas meu avô percebeu. Ele sentou do meu lado, e me passou a vara de pescar dele. Falou que aquela vara era encantada, e com ela eu ia pescar. Depois de um minuto, eu pesquei um peixe enorme. Meu avô fez a maior festa, mostrou pra todo mundo. Hoje eu sei que aquele peixe já tava no anzol do meu avô, mas no dia achei mesmo que a vara era mágica. Mágico mesmo foi aquele dia, que eu vi meu avô sorrindo, e percebi, mesmo sem entender, que lá naquele mundo dele a gente estava junto. Ele levava a gente com ele, e de repente por ficar tão quieto, ouvia de lá nossos sonhos. Naquele dia, meu sonho era pegar um peixe. E só meu avô percebeu.

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