Sem voz há dois dias, com choro enrustido parecendo pecado se saísse em tempos de tanta demanda na fortaleza. No carro, na via travada de sempre, com tanta coisa à frente impedindo a passagem, com tanto excesso, ruído. Secretamente, eu adicionava mais uma memória à minha coleção de fracassos, cansada demais pra ter raiva, ou com raiva demais pra entender alguma coisa. Um mar ao fundo. Água salgada à espreita, muita água. Quem disse que é tempo de seca? Um anúncio hipócrita da Sabesp no rádio, que desliguei num ímpeto de quem dá em alguém um tapa na cara. Se eu me desaguasse inteira ia dar inundação.
Um par de olhos me enxerga. Um par de olhinhos puxados de quase dois anos me observa no banco de trás. Puxa meu foco. Ti foi, mamãe? Como ele sabe? Como pode saber? Me estende a mão, dando conforto, aquele tiquinho que não entende tanta coisa e sabe tanto. Sorriu, lembrando a mim mesma numa foto de infância: quem me sorriu afinal? O sal chega à boca. Não chola mamãe. Uma presença tão evidente que quase se materializa, ainda que invisível. Alguém a mais dentro do carro-presença. A mão gordinha ainda estendida, devolvendo tanto colo já recebido. A certeza de que tudo vale a pena. As águas não mais controladas, certificadas, poluídas pela poeira da aridez. O mesmo sorriso da minha lembrança continuado no seu rostinho, a inocência, a entrega, uma ternura indescritível, a urgência de reencontrar esse espaço em mim para que eu te libere, meu filho, para que eu te libere para crescer.
Esse lugar é seu agora. Você, como eu, atravessará muitos abismos.
Que coisa linda foi ver, uma vez mais, o milagre dos primeiros tempos, lugar onde tudo é possível de tanto que se sente, de tanto que não se pensa, de tanto que se confia.