Era uma tarde como outra qualquer, em que eu me movia entre consultorias literárias e refletia sobre o roubo das narrativas. Esperava o ônibus para ir ao próximo encontro literário, enquanto pastoreava pensamentos. O foco da minha revolta era o final da série Game of Thrones, um sequestro da história original – que também seguia rumos originais – que fora completamente distorcida pela indústria. Especialmente as personagens femininas.
Era essa minha briga da semana. Eu, escritora, revoltada com a manipulação da saga, das personagens, de toda a audiência. Eu bem sei o quanto custa escutar e pescar uma história verdadeira de dentro de si, daquelas que te obrigam a romper os próprios preconceitos. Ver todo um trabalho sério ser conduzido a um filme Disney da pior qualidade foi sofrido.
Com esse discurso debaixo do braço, aguardava o ônibus. Estava cansada, o dia havia começado cedo e já estava há doze horas na ativa. Por isso, quando o vulto aproximou-se de mim com clara intenção de contato, nem olhei. Só disse, cortante, para que me deixasse em paz:
– Não tenho dinheiro.
Mentira.
Qualquer outro dia seria verdade. Não carrego mais notas. Mas nesse dia eu tinha, e bastante, tudo com endereço certo, boleto específico, mas o fato é que eu tinha. E não estava disposta a dar.
Já estava esperando a réplica óbvia, mas não foi o que eu recebi.
– Você não está me escutando, moça. Eu não estou te pedindo nada. Por favor, não coloque palavras na minha boca.
Se é uma coisa que me deixa feliz é uma linha de diálogo que foge do óbvio. Seja quem fosse aquela pessoa, me conquistou pela dramaturgia. Pelo menos a cena seria outra.
Olhei, finalmente, para o vulto.
Era um homem velho. Velho e musculoso, portando uma bengala em uma das mãos e uma caixa de balas na outra. Falava meio enrolado, com dificuldades motoras (teria sofrido um derrame?), o que tornava tudo mais lento. Pedi desculpas pela grosseria, ainda disposta a acabar logo com aquilo e pegar meu ônibus. Mas algo me deteu.
Não sei ainda o que foi. Talvez o fato dele ter me olhado nos olhos, e ter qualquer coisa de vivo ali. Mais vivo do que qualquer outra pessoa navegando em black mirror. Ao cruzar meu olhar semi vivo e cansado, ele se encorajou a contar sua história. Lentamente. Com um ônibus atrás do outro passando, com meu horário encurtando, e com algo me fazendo ficar ali, com os pés no chão, ouvindo.
Mostrou suas marcas, de quando era morador de rua. Mostrou os músculos que ganhou quando superou a rua. Falou da filha, de onze anos e onze meses, que era o motivo pelo qual ele estava ali. Trabalhando. Nessa hora, voltou a me repreender:
– Você colocou palavras na minha boca. Você me diminuiu. Me desculpe, mas eu não podia deixar você fazer isso.
É claro que não. O quanto lhe custou construir essa dignidade do nada absoluto?
“Não coloque palavras na minha boca”.
Como fiz isso? Através do diálogo. Minha linha dedicada a ele foi a história óbvia: você é um impertinente que quer algo de mim, e eu não tenho nada para te dar. Caso ele entrasse nesse drama pobre e requentado que eu estava lhe propondo, a ele só caberia duas falas: Se desculpar ou insistir. Ao se recusar a viver essa história, ele me liberou desse martírio social.
“Não coloque palavras na minha boca. Não me diminua”.
(Não faça comigo o que você odiou que os roteiristas de GOT fizeram com sua seriezinha de estimação, moça.)
O mais louco é que ele falava tudo isso sem violência. Sem ressentimento. Era quase paternal. Inclusive me disse:
– Você foi malcriada comigo, mas depois me escutou e eu vi que você é uma pessoa boa.
E pediu desculpas.
Pelo que ele se desculpava? – me perguntei. Por ter me atravessado a ponto de ver minha maior fraqueza e me jogar na cara – me respondi.
Eu, roteirista, dramaturga, escritora. Sempre colocando palavras na boca dos outros. Sempre no controle da narrativa. E agora, o que faço com essa sombra? Meu ofício é também meu tormento. É possível abrir mão de estar todo o tempo escrevendo, com a pretensão de saber o que irá acontecer, linha por linha? Com a pressão de escrever todos os diálogos, moldar todas as personagens, dar nomes, falas, ações???
Na vida?
Nem no papel.
Caí no chão. Fui pega na minha maior mentira. E com uma frase:
“Não me diminua”
Mas havia a conexão. Havia uma estranha gratidão no ar. Ele me deu um drops. Eu quase recusei, esse é seu trabalho, tem certeza?, mas ele quis me dar mesmo assim. Isso me fez pensar que também devo ter dado algo a ele. Talvez minha vulnerabilidade. Porque, ao contar sua própria história, ainda que fosse tão mentirosa quanto minha falta de dinheiro, ele chorou. E eu também. Não por pena. Mas por compartilhar com ele esse cansaço de uma vida fadada a viver papéis tão pequenos. Nós, expressões da divindade, que podemos ser o que quisermos ser, condicionados à mediocridade. Essa conversa nos libertava disso. Ali, naquela pequena zona autônoma temporária, instauramos o tempo da poesia. Ainda que fingida, forjada. É necessário esforço para sucumbir à grande narrativa imposta.
Ali, cocriamos algo novo. Quase perguntei a ele o nome da sua filha, só para ver se era invenção. Mas algo em mim que não se importava com nada daquilo tomou a frente da minha fala. O nome que perguntei foi o dele.
– Miguel – ele disse.
– O meu é Claudia.
Finalizamos aquela cena com um abraço. Como uma celebração daquelas verdades encobertas por mentiras. A verdade que compartilhamos: estamos fartos das mesmas histórias. Só queremos contato, ouvir, sermos ouvidos. E que ninguém nos roube nosso nome, nossas falas, nossa dignidade, impondo sobre o grandioso que somos uma história pobre e fadada ao sofrimento.
Depois me despedi, carregando em meu corpo seu perfume barato. Seu nome reverberando, logo esse, no ano de São Miguel. E seu andar claudicante, como meu próprio nome.
Adorei essa crônica
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