Vivo numa cidade que não é natal mas é a eleita para viver. Uma metrópole que decidi amar, porque achei uma cidade dentro dela.
Vivo as alegrias de tudo que Sampa tem, já tão cantada. Vivo a intensidade dos dias.
Também vivo revoltada com o que fazem dela. Uma câmara dos vereadores vendida a empreiteiras, CRIMINOSAMENTE, fazendo da cidade gato e sapato. Recentemente, o PARQUE DA ÁGUA BRANCA é a bola da vez. Olhos atentos, hoje e sempre.
Há três anos, escrevi uma peça para a Cia de Domínio Público que tinha como tema a transformação radical da cidade. Era uma história meio absurda, que para meu terror vai se tornando cada vez mais real. Lá, a prefeitura contratou uma grande empreiteira para “reformar” toda a cidade. Em pouco tempo, as pessoas já não achavam suas casas. As obras também abriam grandes crateras no chão e o problema é remanejado como solução: pouco a pouco a periferia ia sendo alojada nos buracos, tornando-se uma nova categoria de cidadão: Os buráquios. E por aí vai.
Quem se interessou pode ler na íntegra, é divertida e cômica, apesar de tudo. Coloco aqui um pedacinho…
CENA 10 – CIGANA E O ARQUITETO
Entra uma figura estranha, uma espécie de cigana. Ela fala uma linguagem cifrada
ARQUITETO
Boa tarde…boa noite…eu vim pra…
CIGANA
O senhor tem dúvidas?
CIGANA
Quer saber o que?
ARQUITETO
É… bem… estamos empreendendo um projeto bastante grandioso
CIGANA
Sei.
ARQUITETO
Um projeto que tem tudo para dar certo!
CIGANA
Sei.
ARQUITETO
Um projeto que vai mudar completamente a nossa concepção de uma organização social, política, econômica…
CIGANA
O senhor veio me consultar ou fazer propaganda?
ARQUITETO
Quem nunca sonhou com um lugar limpo, em paz, finalmente, onde nós poderíamos simplesmente viver?! Não foi para isso que nascemos, para viver bem? E por que, meu Deus, nunca tínhamos conseguido isso? Finalmente, eu entendi! Era falta de organização! Então idealizamos nosso sonho! E agora ele está aqui, acontecendo! Os planos estão corretos. O projeto anda bem… A população anda colaborando… O poder executivo está executando muito bem as etapas… Esse é um projeto perfeito, entende? Uma obra de arte! É a realização de tudo aquilo que sonhávamos quando ficávamos presos em um congestionamento… Quando, na rua, víamos a pobreza brotando das calçadas…
CIGANA
E qual é o problema, então? O senhor quer que eu preveja o que o senhor acha que esqueceu de prever?
ARQUITETO
Isso! A senhora adivinhou meus pensamentos!
CIGANA
Eu não adivinho, eu vejo.
Pausa.
Ela olha profundamente para ele, que fica incomodado.
Ela faz um gesto para que ele se sente na sua frente. Começa a ler a cabeça do arquiteto, como uma bola de cristal
CIGANA
Eu vejo…
Ela começa a fazer uns sons meio cantados, meio palavras balbuciadas, até que se entende alguma coisa
CIGANA
Gavião, gavião, gavião, gavião…
Abre-se a terra em terremoto provocado
É pior que tsunami
É buraco com cimento
Todo mundo foi jogado…
Submersa, submerso…
a vontade soterrada
fluxo retornado
socado pra dentro do ventre,
postura contrária ao que reza a vida,
a vida, ferida, no fototropismo,
que tenta saída por cima de novo,
o cima, concreto, não deixa saída,
a vida, ferida, irrompe o concreto…
A massa, tremenda, contida na terra
não pede, mas toma, o espaço perdido
tal qual como rio que fora aterrado
um dia irrompe a casca do ovo
e ri dos que tinham outrora vencido…
A cigana volta do transe, meio assustada com o que viu.
O homem espera uma resposta. Ela recobra a calma
CIGANA
São duzentos reais.
ARQUITETO
Como assim? Você não me disse nada! Só um monte de palavras sem sentido!
CIGANA
O seu entendimento do que eu vi não é parte do meu trabalho. É seu.
ARQUITETO
Então me fala claramente! Eu esqueci de alguma coisa?
CIGANA
O senhor está se esquecendo de escutar!
ARQUITETO
Pois eu não vou pagar por isso!
CIGANA
O senhor vai pagar sim! Pode ter certeza!