Lá vou eu de novo falar do DCC. Mas merece, merece, merece.
Ontem, apesar da chuva torrencial, rolou, e foi muito, muito bacana. Pra gente que escreve, poder ver o texto vivo, lido no susto, é bom demais: revela tudo, a força, os problemas. Tem que ter desapego, é um jogo. Mas sempre muito divertido, com cara de papo de bar, daqueles bons sem vontade de parar. Aliás, tem bar também.
Ontem fui sorteada – agraciada pela sorte mesmo: ter o texto lido por Ana Roxo e Tica Lemos, e debatido por Silvana Garcia. Obrigada, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, por esse espaço dedicado aos autores. Obrigada, Dani e Luaa, por me ajudar a cuidar dos meninos enquanto eu ouvia as leituras (sim, ainda se pode levar as crianças, coisa rara por aí). Muito obrigada mesmo.
Depois da discussão de ontem, vou mexer no texto. Mas vai aí como foi lido, pra quem quiser. Pode baixar aqui também, se preferir.
ENSAIO PARA QUARTA DE CINZAS
Uma moça está empunhando uma bandeira. Ela canta, e gira a bandeira, como uma porta-estandarte, enquanto a platéia entra
GLORIA
…Será
Que eu serei o dono dessa festa?
Um rei
No meio de uma gente tão modesta
Eu vim descendo a serra
Cheio de euforia para desfilar
O mundo inteiro espera
Hoje é dia do riso chorar
Levei o meu samba pra mãe-de-santo rezar
Contra o mau-olhado eu carrego o meu patuá, eu levei
Levei o meu samba pra mãe-de-santo rezar
Contra o mau-olhado eu carrego o meu patuá
Acredito…
Ouve-se um apito.
Homem entra na cena, olhando por todos os cantos, enquanto fala
HOMEM
É isso que dá colocar nome de gente! Fica tudo abusado, desobediente!
(ele começa a girar em círculos. De repente, se dá conta do que está fazendo e pára)
Apolo! Vem já aqui!
(tempo)
Aqui Apolo! Junto!
(olha constrangido para a platéia)
Na minha casa, cachorro sempre teve nome de galinha, e galinha não tinha nome pra gente não ter apego.
(pega o apito e toca. Desanima)
Gloria, ao ver o homem, arruma-se.
Ela revela ser uma dessas moças que ficam nas esquinas segurando bandeiras de lançamento de prédios.
Observa ao redor. Ao perceber-se sem vigília, arrisca cantar novamente, agora a plenos pulmões, como uma diva dos palcos.
GLÓRIA
…Acredito ser o mais valente
Nessa luta do rochedo com o mar
E com o mar…
É hoje o dia
Da alegria
E a tristeza
Nem pode pensar em chegar
Diga espelho meu
Se há na avenida alguém mais feliz que eu
Diga espelho meu
Se há na avenida alguém mais feliz que eu…
Aos poucos, ouve-se um som de construção de prédios. Britadeiras, marretadas. Às vezes, esses sons se parecem a um rugido de bicho. Também ouvimos motos e carros.
Entra Maristella, também com uma bandeira. Coloca-se em outra posição
Ao vê-la chegando, Gloria interrompe a cantoria
GLÓRIA
Tá fazendo o que aqui? Não era hoje?
MARISTELLA
Pensei que era amanhã!
GLÓRIA
Mas é hoje!
MARISTELLA
Você disse que ia marcar na sexta-feira 13.
GLÓRIA
Sexta já é carnaval, ficou pra quinta, não lembra?
MARISTELLA
Ai meu Deus! Que horas são?
GLÓRIA
Tá no tempo. Se eu fosse você, eu já ia. Ela não gosta de atrasos.
MARISTELLA
Mas e aqui?
GLÓRIA
Se o fiscal passar, eu invento desculpa
MARISTELLA
Não sei se eu quero ir…
GLÓRIA
Você me diz isso agora? Marquei faz um mês, e nem tinha vaga!
MARISTELLA
Ai, Glória, eu morro de medo. E se ela disser só desgraça?
GLÓRIA
É um risco que a gente corre…
MARISTELLA
O que ela te falou?
GLÓRIA
Não posso dizer. É segredo.
MARISTELLA
Então foi coisa ruim
GLÓRIA
Não foi não. Foi ótimo!
MARISTELLA
Coisa boa a gente conta sem medo
GLÓRIA
Quem disse que é medo? Se a gente fica falando a coisa não acontece.
MARISTELLA
Fala só um pedacinho, assim, genérico.
Maristella consente. Faz um suspense, até que fala, esperançosa.
GLÓRIA
Eu vou subir!
Maristella fica esperando o resto da história, o que não acontece.
MARISTELLA
Só isso? 50 paus só pra saber isso?
GLÓRIA
Não foi só isso que ela disse. É só isso que eu quero contar.
MARISTELLA
Subir aonde?
GLÓRIA
Na vida, oras! No palco! Vou conseguir ser cantora, ela disse! Onde mais se sobre?
MARISTELLA
No telhado. Seu gato subiu no telhado, seu gato caiu do telhado, seu gato morreu!
GLÓRIA
Não devia ter contado…
MARISTELLA
Você cantora, e eu o que será? O que será que a vida me guarda? (divaga) Ô Glória! Tô pensando em mudar meu nome. Stella Maris, que tal?
GLÓRIA
Tá parecendo nome de prédio.
MARISTELLA
Você não sacou não? É uma inversão…Maristella, Stella Maris…Será que ela vai achar que dá sorte? Ela faz numerologia?
GLÓRIA
Só tem um jeito de saber, né?!
MARISTELLA
Então eu vou, pronto.
GLÓRIA
Se for, vai já. Já tá na hora e você com você andando o tempo dobra!
MARISTELLA
Seu tempo não é o meu.
Maristella vai saindo. Ao caminhar, percebemos que ela é manca. O cabo da bandeira torna-se uma bengala. Dá alguns passos e vira-se novamente para Glória
MARISTELLA
Fica esperta mesmo pra ver se ele vem. Esse cão tem um olho em cada esquina…
Maristella …Stella Maris…
Maristella sai
O homem volta
HOMEM
Apolo! Apolo!
(tempo)
Aqui Apolo! Junto!
(pega o apito e toca. Desanima)
HOMEM
Nem que eu viva por novecentos anos, nunca vou entender a razão idiota que leva um cachorro perseguir um carro que anda em uma velocidade visivelmente superior à dele.
Passa o tempo
Volta Maristella. Toma seu lugar, sem nada dizer. Gloria espera um tempo, ansiosa, e nada. Até que ela não agüenta.
GLÓRIA
E aí, o que ela te disse?
MARISTELLA
É segredo.
GLÓRIA
Mas eu te contei o meu!
MARISTELLA
Porque quis.
GLÓRIA
Ingrata! Deve ser coisa ruim!
MARISTELLA
Praga de peste não pega.
As duas ficam um tempo agitando as bandeiras
MARISTELLA
Eu não vou agüentar não falar!
GLÓRIA
Eu sabia…
MARISTELLA
Mas você não disse que ela disse que se falar não acontece?
GLÓRIA
Você quer que o que ela falou aconteça?
MARISTELLA
Depende. Não sei
GLÓRIA
Então conta só um pedaço
Maristella hesita, mas acaba falando
MARISTELLA
Estava lá, claro como cristal…(imita a cartomante) No domingo de carnaval, no auge do desfile, você vai conhecer o grande amor da sua vida…Você saberá quem, porque a partir desse momento, sua vida será transformada.
Faz uma pausa dramática, depois segue o relato
MARISTELLA
Serão dias tão intensos que você perderá a noção do tempo e espaço. Você será aquela que sempre sonhou ser, cada segundo será de pleno êxtase, e nada parecerá estranho ou proibido para vocês. Nesse momento, você entrará em contato com uma força divina que mudará toda a sua vida…
GLÓRIA
Nossa…
MARISTELLA
Até que…
GLÓRIA
Até que…
MARISTELLA
Na quarta-feira de cinzas…
tempo
GLÓRIA
Fala, o que tem a quarta-feira de cinzas?
MARISTELLA
Nós vamos morreeeeeeeeeeerrrrrr!!!!!!!!!!!!
GLÓRIA
Morrer de que?
MARISTELLA
Ela não conseguiu ver. Mas disse que era com ele. E ainda disse que seria uma morte linda!
tempo
GLÓRIA
Como ela sabe que vai ser linda se não sabe como você vai morrer?
MARISTELLA
Ela viu nós dois abraçados, sorrindo. E a cara do cão da morte baforando nas nossas costas!
GLÓRIA
Será que ela não quis dizer morte no sentido figurado?
MARISTELLA
Eu tô com medo!
GLÓRIA
Medo de que? Nem é tão ruim assim!
MARISTELLA
Credo, não fala isso não, bate na boca!
GLÓRIA
Viver muito pra que? Pra passar mais tempo balançando essa tralha?
MARISTELLA
Minha filha, e eu vou lá passar a vida nisso? É só até o carnaval.
GLÓRIA
Vai pedir demissão?
MARISTELLA
Fico até conseguir trabalho.
GLÓRIA
Eu tô falando isso há três anos.
MARISTELLA
Você é que é preguiçosa e não corre atrás.
GLÓRIA
Nem você, que é manca.
Ficam um tempo quietas.
GLÓRIA
Você consegue sambar mancando?
MARISTELLA
Sambando ninguém nota a perna.
GLÓRIA
Faz tempo que você é assim?
MARISTELLA
Desde que caiu uma lasca de ferro lá de cima…
As duas olham para cima, para o prédio em construção
GLÓRIA
Lá do alto?
MARISTELLA
É. Bem na coxa.
Silêncio
GLÓRIA
Faz tempo então, né? Esse trabalho… Pensei que isso aqui era um bico antes do carnaval.
MARISTELLA
Todo ano tem carnaval!
GLÓRIA
Então daqui a um ano eu te encontro numa esquina dessas. Isso se você ainda estiver viva, claro!
MARISTELLA
Sai pra lá! Porque não se mata você, ô mau agouro?
GLÓRIA
Eu já tentei. Não deu certo.
MARISTELLA
Como?
GLÓRIA
Pular da cobertura. Uma coisa me segurou
As duas olham para cima, para o prédio em construção
MARISTELLA
E que coisa foi essa?
GLÓRIA
A raiva. Eu tava com uma raiva tão grande que parecia estar parafusada no chão. Uma âncora. Acho que a minha vontade de matar era maior do que a minha vontade de morrer.
MARISTELLA
Você precisa de mais amor no coração, Glória…(percebe que Gloria se ofendeu) Raiva do que, hein?
GLÓRIA
Raiva de ter que morrer levando junto uma vidinha de merda. Não achei justo sair daqui sem levar nada que preste de lembrança.
MARISTELLA
De onde você quase pulou era alto assim, é?
GLÓRIA
Era mais alto ainda
MARISTELLA
Chique assim? Diz aqui que é um duplex, vai ter até cinema!
GLÓRIA
Não. Era um prédio público.
MARISTELLA
Ainda bem, é menos perigoso…
Glória olha para ela, sem entender
MARISTELLA
Se é público, não é de ninguém… Pelo menos você não ia presa.
GLÓRIA
Mortos não vão presos!
MARISTELLA
E se você sobrevivesse?
Silêncio
GLÓRIA
Escuta…Você perguntou em que ano isso ia acontecer?
MARISTELLA
Ué…a previsão não deveria ser pra esse?
GLÓRIA
Não sei, né? Todo ano tem quarta-feira de cinzas. Você poderia morrer em qualquer uma delas.
MARISTELLA
Nesse caso ela não foi específica
GLÓRIA
E se não for agora? E se for daqui a 60 anos?
MARISTELLA
Eu não quero levar 60 anos para achar o amor da minha vida!
GLÓRIA
Pelo menos ela vai ser longa, já que você prefere assim…
Silêncio
MARISTELLA
Ô Glória…
GLÓRIA
Que?
MARISTELLA
Será que eu fui enganada?
GLÓRIA
Se foi, melhor pra você…
MARISTELLA
Eu não sei o que fazer.
GLÓRIA
Então pronto. Não vai no desfile, assiste de casa.
MARISTELLA
Tá louca? Prefiro morrer!
GLÓRIA
Aí é com você.
MARISTELLA
Eu não quero morrer!
GLÓRIA
Quer ser imortal?
MARISTELLA
Eu não quero morrer!
GLÓRIA
Até as estrelas morrem, tudo morre um dia.
MARISTELLA
Eu não quero morrer! Não quero! Eu não quero ser assim, igual a todas as coisas, igual a todas as pessoas, igual a todos os dias, igual a todas as horas! Eu não quero morrer porque eu ainda não sou quem eu nasci pra ser, porque eu quero ver o final da novela, porque eu ainda não fui a rainha da bateria, porque eu ainda não dei um beijo que me fizesse perder o rumo de casa, porque…
Buzina. Som de freada de carro
Homem surge, desesperado
HOMEM
Apolo! Apolo!
Apolo, seu estúpido! Eu disse pra ficar junto, não disse? Idiota, cretino! Idiota! (para o motorista) Seu imbecil, não viu o cachorro? Comprou a carteira? (tempo) É mais fácil matar que pisar no freio, sua besta? (para o cachorro morto) Apolo! O que eu vou fazer sem você? Apolo!
Mais buzinas. Apito de policia
HOMEM
Passa por cima! Passa por cima! Seus canalhas!
Os sons de construção e trânsito misturam-se com sons de bateria de carnaval.
O homem fica no chão, chorando a morte do cachorro.
passagem de tempo.
Maristella cruza o palco girando com a bandeira nas mãos.
MARISTELLA
Glória, cadê você, Glória? Preciso te contar, Glória! Eu não resisti, me joguei na festa! Ela estava errada, Glória! Ela errou! Eu não descobri meu amor! Eu não mudei! Eu estou aqui, Stella Maris, em carne e osso! Minha vida não mudou, Glória! Hoje é quarta-feira…quarta-feira… quarta-feira de rosas!
Ela volta à posição inicial, na sua esquina. O som volta a ser o da construção, porém muito mais frenético, como se fosse sufocar sua voz.
MARISTELLA
Eu estou viva! Eu ainda estou viva! Eu estou viva!
O som vai aumentando até ao conseguirmos mais ouvir Maristella, como se ela fosse tragada pela construção.
FIM