Semana passada fiquei CHOCADA com uma notícia: a ameaça de se acabar com o curso de Obstetrícia na EACH (pra quem não sabe, a unidade USP na Zona Leste). Não posso dizer que fiquei surpreendida, porque achava quase inacreditável que um curso tão revolucionário pudesse estar abrigado nos moldes quadrados da USP, mas não imaginei que chegassem a tamanha barbaridade e desrespeito. Como tive minha vida transformada pelo encontro com uma obstetriz, Vilma Nishi, seria quase uma heresia ficar quieta frente a esse fato.
Adianto que não vou partir para a briga, pelo menos aqui nesse texto. Sei que há um movimento iniciado, e mulheres e homens trabalhando para defender o tangível e o intangível do curso – porque apesar de todas as questões concretas, como número de vagas públicas, currículo e etc, há algo além para se levar em conta: a importância de se criar uma CULTURA DO CUIDAR NA ÁREA DA SAÚDE, já tão contaminada pelas doenças sociais do preconceito e do descaso. Defender esse efêmero é quase como tentar explicar a importância do canto dos pássaros no meio de uma guerra civil, parece tão vaporoso aos ouvidos surdos de quem detém o poder que sua potência pode ser facilmente desprezada. Mas é profundamente transformadora, e urgentemente necessária.
Assim como a grande maioria dos brasileiros, nasci de cesariana. Assim como a grande maioria das mulheres, minha mãe me conta que gostaria de ter vivido um parto normal. É claro que não é uma regra, mas uma estatística: o ato de nascer, que deveria ser algo absolutamente natural, virou fato clínico. É quase como se necessitássemos de um médico para colocar comida em nossas bocas.
Já aviso: não tenho nada contra médicos, cresci com um deles: meu pai. Um grande exemplo íntimo de ética e amor à profissão. Também não tenho nada contra o avanço da ciência. Só acho que um parto só está próximo disso se aparecem verdadeiras complicações, mas não deveria, nunca, ser a regra, ou a primeira opção.
E quem sou eu pra achar tanto? Nem médica, nem enfermeira, nem profissional de saúde. Se isso serve pra algo, tenho uma experiência real, talvez a mais concreta da minha vida, pra contar.
Tive dois filhos de parto normal, natural e domiciliar. E tive a coragem de viver essa experiência assim, dessa forma, pela graça do encontro com Vilma – parteira e amiga. Já durante as consultas de pré-natal (que na médica duravam 10 minutos, e com a Vilma 2 horas), conversávamos muito sobre todos os medos das complicações na hora do parto, sobre o que seria virar uma família e, principalmente, sobre o poder que a mulher conquista em viver realmente a experiência daquela forma. Quando finalmente chegou a grande hora, estava segura quanto à minha opção, e o começo foi bem tranquilo – se é que se pode usar essa palavra pra descrever um trabalho de parto. Cheguei a falar: “pensava que ia ser pior”, o que deve ter desencadeado uma piadinha dos deuses – logo depois “travei” por 7 horas, e na pior parte. Sabia, com a cabeça, o que tinha que fazer, mas o corpo não me “obedecia”. E percebi que o que me amarrava não era apenas o medo típico que todas as mulheres sentem desde sempre, mas toda a corrente de preconceitos modernos que eu também carregava que nem uma couraça, ou pior, como um carrasco colado às minhas costas, berrando: “Você não vai conseguir! É perigoso! Sua louca, vai fazer mal pra criança! O bebê pode morrer!”
Soa familiar? Contemporâneo? Não, a ditadura ainda não acabou.
Naquele momento, parecia um campo de batalha: éramos eu e meus inimigos: Medo de fracassar, medo de virar mãe, medo de ser mulher, medo da força absurda, ancestral, que pulsava dentro de mim, que carinhosamente conduzia meu corpo, que me levava a uma dimensão fora do tempo, naquele lugar onde todas as mulheres de todas as épocas se encontram e se reconhecem. Era uma grande floresta a atravessar, e só eu poderia fazer aquilo. Somente eu, só. Quer dizer, é claro que, se eu estivesse num hospital, com tudo ali, facinho, poderiam tirar a criança. Nesse caso, haveria o nascimento, bendito seja sempre, mas eu não teria cruzado o limiar.
Então num daqueles ápices, em que eu estava quase desmaiada no meio daquela guerra, contei com dois apoios: o de meu companheiro, Djair, e o da Vilma, obstetriz, parteira, que até então esperava sem a menor pressa, fazendo massagens, medindo periodicamente os batimentos cardíacos do bebê, me transmitindo calma para o meu parto. Sim, meu. Porque como ela mesma me disse, o nascimento é do filho, mas o parto é da mãe. E no momento mais crítico, naquele em que o carrasco quase ganhava a batalha, ela me disse forte e carinhosamente: Claudia, ou você dorme ou faz esse menino nascer. Naquele momento, ela quis dizer literalmente isso, mas o múltiplo sentido da frase me tocou mais fundo que o meu medo. Alguma coisa mudou. Tomei contato com toda a forca da Terra, toda a ancestralidade, entreguei meu corpo a algo maior, como uma sacerdotisa a algo sagrado. Dei passagem ao que tinha que nascer, até que morri e renasci junto com Pedro, às seis e pouco da manhã. Atravessei o portal das impossibilidades. Senti o corpo tremendo em choque e revivendo mãe. Em estado de graça, vi o Dija cortar o cordão, vi o pequeno ser que recebia em minha casa, no meu corpo, no meu seio, na minha nova vida, que nunca mais foi a mesma, porque eu não era mais igual.
Além de todos os procedimentos técnicos, o que me ajudou a fazer essa passagem foi o INTANGÍVEL do ofício de obstetriz: o amor, o cuidado e a sensibilidade durante todas aquelas horas. A fé na possibilidade de que cada mulher pode viver seu feminino, viver por direito esse momento tão importante. O apoio, a paciência, a falta de pressa. A vida sem hora marcada.
Como disse, não tenho nada a ver com a área de saúde, dedico minha vida a contar histórias em palcos, telas e blogs. Mas espero ter ajudado com essa, e que uma experiência tão pessoal possa servir como prova da importância de uma profissional que sabe conduzir um parto dessa forma, sem distorções. Um nascimento vivido assim é o começo de uma grande relação, é totalmente transformador para toda a família, fortalece laços, e traz uma base sólida para os novos seres que estão chegando, futuros adultos, futura sociedade. Tenho confiança de que esse curso vai ganhar mais força, porque a vida é maior que todas as mesquinharias, e sempre vence. Mas é essencial, em épocas de tanta brutalidade, defender as ilhas de sensibilidade já conquistadas.
IMPORTANTE: Pra quem puder ajudar, o abaixo-assinado contra o fechamento do curso está logo aqui:
Ah, cunha… Coisa linda de se ler e lembrar. Compartilhar.
Espero viver, algum dia, essa experiência.
E, principalmente, desejo que mais mulheres possam escolher a forma como desejam fazer essa passagem.
Beijos
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vai viver sim!
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Privar seres humanos de experiências honrosas como essa é o que me preocupa.
A mãe não é uma simples fábrica de reproduzir, nascimento não é um mercado que está cada vez mais em baixa.
Cada nascimento é único, para mãe, para a obstetriz. Não podemos, já que temos consciência da existência dessa profissão, deixá-la se esvair. Tenhamos fé nessa luta!!!
Parabéns pelo texto!
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Olá Claudia, eu sou estudante de obstetrícia na EACH-USP, parabéns pelo belíssimo texto, me emocionei lendo e encontrei nele ainda mais força para lutar a favor do curso, e das mulheres!!! muito obrigada pelo apoio. Um grande abraço!
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obrigada, Francine. vocês são importantíssimas, de verdade!
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