crônicas de kung fu I – passando pelo portal

O corpo é mais que um tripé de cabeça.

Não que eu já soubesse, mas já desconfiava. E como vivo nesse preconceito muderno que privilegia o “pensamento”(leia-se Cabeção) como um grande chefe, e o corpo como o peão que executa as ordens, estava assim, meio largada. Claro, porque chefe que é chefe só manda, e a massa executa. Mexer o corpo é coisa de que ainda não chegou lá, no topo.

Viagem minha ou faz algum sentido?

De qualquer forma, ficava a culpa pelo sedentarismo. Culpa mesmo, dessas cristãs, que adoram o flagelo. Fugi das academias e passava de tentativa em tentativa, a maioria solitária – andar, nadar, pular. Muito efêmero tudo. E meu lado rebelde clamando por tortura nunca mais.

O Cabeção ordenava: Você tem que fazer algum exercício! O que devo fazer, senhor? Sei lá, você não gosta de dançar? Então dança! Mas dava preguiça, porque dançar só tem graça se não tiver que. Aí enganava o chefe: Sabe, senhor, é que eu tenho tanto trabalho sério pra fazer… Sou criadora, professora, orientadora, mãe, também, não sobra tempo pra essas coisas vaporosas. O Cabeção concordava, afinal, ele mesmo nem se importava tanto. Mas eu ficava ali, oprimida, fraquita, doída. E anarquista demais pra encarar um “programa de condicionamento”que, ao meu ver, é coisa de gente velha e sedentária. O Cabeção ficava feliz com essa observação. Nada melhor que ter todo o tempo do mundo pra pensar, afinal.

Uma história paralela: nunca fui alucinada com artes marciais. Meus irmãos fizeram karatê por um tempo, mas eu preferia a dança. E tive, num passado remoto, um caso de amor com a ginástica olímpica: lá eu voava. Lá o amor ao corpo existia. Depois a adolescência chegou, a culpa pelo prazer do corpo chegou, e ele passou a ser inimigo, gerador de todos os conflitos do mundo. Mas algo desse amor ficou guardado que nem semente, e às vezes remexia nas terras de mim ao ver um corpo voando – na dança contemporânea, nas olimpíadas, em alguns filmes, por aí no mundo.

Kill Bill me deixou alucinada, ainda que o Cabeção fizesse que não. De repente quis ser, secretamente, Beatrix Kiddo. Em outra vida, talvez, Cabeção vociferava. Talvez. Não. Tinha medo de fazer kung fu. Coisa de homem, meio bruta, pensava. Eu sou mocinha. Ainda por cima pesquisando o feminino, esse efêmero desconhecido tão falado no momento. Cabeção escreve uma peça sobre o feminino, e eu vou querer logo fazer kung fu? Arquétipo do guerreiro?

Confesso: tenho um prazer secreto de contrariar Cabeção, ainda que pelas tangentes. Fui lá, disfarçada de Grouxo Marx, fazer uma aula-teste. Saí feliz. Corleone, enganado, ficou confuso, mas o que eu senti foi felicidade. Sem querer,  desmoralizei, destronei o chefe. Permiti ao corpo que ele exercesse livremente o movimento que bem entendesse. Ainda que nesse começo seja totalmente destrabelhado.

Voltei à época anterior à crise do corpo, onde só havia amor, e quando eu não era tão eu, era um ser em movimento e possibilidade futura.

Não sei onde isso vai chegar, mas estou adorando.

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