Depois de passar uma semana bem cabeção, lendo teorias e buscando livros esgotados, tentando manter a linha de raciocínio entrecortada pela volta ao trabalho e a rotina deliciosa e caótica dos filhos pequenos, enfim chegou sexta-feira, uma semana após o nosso jantar. Fazia um calor dos infernos, e assim foi durante toda a semana. Ela passou e eu nem vi. Perdida que eu fiquei entre devaneios, fui pro ensaio sem saber o que fazer. Ainda não tinha a versão do texto definida (ainda esperava chegar pelo correio a versão do Onestaldo de Pennafort que queria ler antes de decidir), e então não tinha ainda idéia de como conduzir nada. Fui para o conhecido: falar, falar, falar. Olhar pro texto.
E ouvir.
Não me interessa (ainda) uma ambientação. Claro, não estamos na Inglaterra do século XVI, assim como Shakespeare não estava em Verona. Os atores não tem a idade dos personagens, e esse realismo de nada me interessa. Falamos das chaves para os lugares de cada um. Onde vive Romeu, Julieta e Mercuccio dentro de nós? Que lugar é esse? Que força cada personagem representa e, ao ser representada, acessa em cada um?
Garbel começou falando do seu Mercuccio, desse estado alterado que ele impulsiona. A leitura cinematográfica do diretor australiano Bas Luhrmann, que trouxe um lado andrógeno ao personagem, reverberou bastante em sua visão, da qual eu compartilho. Para mim, a energia que pulsa em Mercuccio é Freddy Mercury, é Dzi Croquettes, é Ney Matogrosso. É pura pulsão e movimento. O texto da Rainha Mab (que iremos trabalhar) é praticamente um feitiço, como um redemoinho de palavras que evocam imagens que evocam sensações que geram estados que preparam Romeu (e nós, espectadores) para o êxtase do primeiro encontro. Mercuccio traz a Romeu o carnal que lhe falta no seu amor platônico por Rosalina. Nessa cena, ele puxa Romeu à terra, ao fogo da vida que lhe é característico. Mercuccio, nesse momento anterior ao baile, exala com suas palavras um perfume afrodisíaco, perturba a atmosfera, gera inquietação, promove instabilidade. E só por isso a cena seguinte consegue “pegar fogo” tão rápido.
Assim como, por ação de Mercuccio, acontece o encontro que leva ao amor supremo, também pela sua ação a tragédia se desencadeia. É ele o condutor dos movimentos essenciais do texto. Ele, Mercuccio, mercúrio, mensageiro, assim como a Rainha Mab que ele dá voz e com quem sonha, por onde passa gera movimento. É ele o pulso da vida, da carne, do humano, e é puro fluxo, sem medo das consequências. Puro fogo. Acelerador de processos, catalisador do amor e da tragédia. Arauto da vida, que ao se ver privado dela, revolta-se em plena maldição. É o pulso que se recusa a partir de algo que lhe é tão doce: o deleite do corpo, da existência. O sabor de estar vivo.
E Cristiano falou de Romeu: é uma ave em estado de quase vôo. Ele, músico, ator e dançarino, sentiu no corpo o movimento do personagem. A inquietude, a impermanência, o desequilíbrio. Romeu começa apaixonado, aluado, avoado. Seu encontro com Julieta encarna essa amor em Terra firme, mas torna ainda mais forte seu galope. Romeu é ave que sobe e desce, que alça vôo mas não se mantém ainda estável. Vive em estado alterado, e desde esse lugar, pode ir a qualquer outro. Romeu é instabilidade. É estado de possibilidades. Romeu é nosso salto lúcido em direção ao abismo, sem a certeza de que as asas funcionarão. É cordial, regido pelo fogo cardíaco, seu pensamento é mero narrador da ação já executada, para seu prazer ou terror. Romeu é a entrega apaixonada e devota ao sentimento, sacerdote do amor, e sua falha não é a dúvida, mas ter encontrado outra energia de igual intensidade, mas com direção oposta: a fúria. Romeu é um avatar das paixões, médium dos sentimentos intensos, campo de batalha dos opostos. Em seu corpo tremem o amor e a violência, em seu corpo vibram as duas forças antagônicas. Ele simplesmente dá passagem. Romeu é coração, e também coragem, não hesita em largar a pele do nome e se jogar no desconhecido. Não é o louco inconsciente, ele sabe do perigo. Tem a força de um valente, mas é ainda aprendiz. Ainda não tem a arte de manejar as forças, apenas as reconhece. Ainda depende da regência do Frei Lourenço, alquimista em hábito de frade.
Sua falha foi não ter conseguido escolher. Em pleno campo de batalha, o ego vence. O orgulho já ferido por ter sido banido, sua primeira morte. Romeu, filho de casa nobre e (por que não) um bom vivant, gozando sem restrições a vida na polis. Gozando da liberdade de poder se ocupar dos assuntos filosóficos e amorosos. Gozando de diversões entre amigos. Mântua é a solidão, o abandono de todos os privilégios agregados ao seu sobrenome. Se de bom grado ele abre mão de seu nome em prol do amor, no êxtase com Julieta, no momento em que isso acontece, de fato, ele diz preferir a morte. Assim, dividido, Romeu é humano. Assim, dividido, ele nos leva a uma escolha. Não figura o lugar do príncipe galante, cujas adversidades estão fora, nos outros. Ele carrega em si essa batalha, e por não ter vencido essa luta dentro de si, não tem força para realizá-la fora. Se estivesse inteiramente decidido ao abandono do seu passado, do seu nome, não deixaria brecha. Mas essa fraqueza, que o faz de carne, é o lugar por onde a tragédia floresce, por onde a fúria ganha força e movendo a espada, faz dele “um joguete do destino”.
Por fim, Julieta. Dani descreve seu estado como um rapto. Ela se mostra efêmera, fugidia. De fato, ao ser tocada pelo amor, sua natureza muda subitamente – ela passa de uma adolescente comum da corte a uma jovem guerreira. Apesar do costume a manter no comum arquétipo da “princesa na torre” – ela sai bem pouco de casa – sua atitude não é a da espera. Julieta não é resgatada por Romeu, ambos são levados ao lugar do rapto. (Barthes). Ambos vivem a subida aos céus e a descida aos infernos, contudo o percurso de Romeu é externo, se passa no espaço da Polis, enquanto o de Julieta é interno. Sua ação, portanto, não está em função de Romeu, é uma jornada dentro de si e com ele. Sua fala muda, sua atitude perante a família, ao pequeno cosmos que a circunda. Do “seja feita a sua vontade, pai” à rebeldia arquitetada. A coragem para morrer, também no exílio. O abandono dos pais, a ausência de Romeu, a perda do apoio da Ama, a decisão por tomar a poção, apesar do terror. Ao saber da morte de Teobaldo, Julieta, assim, como Romeu, oscila. Vive em si também a batalha mas, diferente dele, ela a domina. No final, faz sua escolha, e opta pela morte consciente do nome, enquanto também escolhe a morte aparente do corpo. Nesse momento, passa pelo ácido e transmuta. Não é a heroína romântica. É também carne e tentação, é também violência, é também medo e terror. Julieta entrega seu corpo ao destino, apesar dos presságios. E com a mesma coragem que toma a poção, depois, através da adaga, sela sua escolha, dessa vez em definitivo.
Julieta escapa às mãos dos pais, da ama, e da própria atriz que a busca. É o hálito doce da rebeldia, que só aparentemente é frágil e acessível. Julieta é o anseio pela liberdade acima de qualquer consequência. Sendo ela esse espirito, também não se deixa encarcerar em conceito, em forma. E se Romeu é movimento pela instabilidade que vibra, Julieta também o é, mas tomada pelo vento que a torna impossível de segurar. Assim, ao se ver sozinha, incapaz de viver, então, a única história compatível a sua essência – seu amor com (mais do que por) Romeu – ela abandona a carne para libertar seu espírito de um destino que não elegeu. Prefere a dor ao sofrimento. Prefere novo salto ao desconhecido ao conhecido resignado, ainda que sua outra “opção” não fosse de se jogar fora, ou até melhor (no conceito da ama), que Romeu. Páris é gentil, bonito, amoroso. Não é um velho comerciante amigo de seu pai. Ele a corteja, a respeita, a espera. Não fosse seu rapto, talvez considerasse esse encontro uma sorte, “uma honra com a qual jamais sonhou”. A frase é ambígua. Um antagonista gentil, delicado, tira Julieta do lugar vitimado típico das princesas encarceradas. Páris se parece mais ao arquétipo do Príncipe Encantado que o alucinado Romeu. Páris é a civilização, o concenso, o acordo em que todos ganham. Páris é a Polis, é a lei bem aplicada, a ordem, seria, talvez, um amor apolíneo. Romeu é o incerto, inconstante, o rebelde, a vida sem roteiros, o destino ignorado. Romeu é dionisíaco, talvez tenha o mesmo pulso de Mercuccio, localizado em outro plexo – enquanto um é puramente sexual, o outro eleva essa força ao cardíaco. Ao escolher Romeu, ao escolher o caos, o divino, Julieta age, e também move a ação.
Romeu e Julieta encontram-se no delírio. Ambos começam deslocados, como se já fossem feitos de uma natureza diferente de suas famílias. Ao se encontrarem, se reconhecem. A intimidade se instaura já na primeira palavra, ou antes dela, no primeiro olhar. Um é o acesso do outro ao terreno além da realidade cotidiana, além dos opostos. Eles saltam juntos a outro espaço, onde as palavras são harmônicas, onde os nomes e convenções não fazem sentido. Experimentam o êxtase, o lugar da unidade. Uma vez aí, não querem mais a realidade ordinária, confusa, grosseira.
O lugar onde eles chegam montados no amor, essa experiência de unidade, só é possível nesse outro estado. Na realidade cotidiana, dividida, adormecida, cabe à lei esse papel de forjar o consenso. Então a lei humana entra onde o amor não consegue se firmar, quase como uma sombra, tentativa artificial e arbitrária de simular o que podemos experimentar naturalmente em outro nível de consciência. E a lei é importante na peça. A formação da Polis, a figura do Príncipe, a necessidade de se resolver os conflitos entre clãs para que o Estado ganhe força. A necessidade de reger as forças que dominam os ânimos humanos. Romeu e Julieta é repleta de espelhamentos e oposições, além da óbvia disputa entre Montecchios e Capuletos. Shakespeare nos mostra que o que tentamos às duras penas, por força do Estado, por força militar, por força da moral, conseguiríamos plenamente em estado de puro amor. Romeu e Julieta são os arautos da harmonia. São a materialização de uma nova possibilidade humana, que se mostra encarnada, sexualizada, viável, e não utópica. O amor vivido por eles é o lugar do acordo, e onde ele não tem espaço, aí entra a lei, como uma torpe interpretação de uma unidade possível ao homem. E é esse jogo de oposições que amplia o terreno onde a narrativa nos leva. Não se trata apenas de indivíduos, mas de toda uma coletividade. E se esse lugar é possível, o da harmonia, por que nos é tão distante? Talvez nos falte cuidar desse amor. Talvez nos custe perceber sua presença.
Não é à toa que as imagens que chegam aos atores sejam efêmeras. Asas, fugas. Fugacidade, instabilidade, velocidade, movimento. Fluxo. E uma outra imagem que Cristiano me trouxe de Romeu: meio molhado, recém-saído da placenta. É o cheiro que fica no ar após o nascimento: um perfume sutil, quase imperceptível, misturado ao ferro do sangue.
E todo o tempo os personagens transitam entre esses dois mundos. Por isso as falas mudam, e são elas as chaves para perceber em que plano o personagem se encontra. Esse livre trânsito que a obra de Shakespeare tem entre a realidade visível e a matéria dos sonhos, por ele considerada igual. E se em peças como “Sonho de uma noite de verão”essa realidade é manifesta em cena, em Romeu e Julieta ela é trazida pelo estado dos personagens. A fala revela o lugar. Por isso alternam-se prosa e verso, por isso falas nada óbvias aparecem. São as vozes do campo ordinário, convencional, seguidas de falas provenientes de outros lugares, como se alguns personagens fossem, por momentos maiores ou menores, porta-vozes de divindades. Ainda que essa divindade seja, talvez, apenas mais uma probabilidade humana em outro estágio de evolução. Pois se essas forças não tem nome, apenas voz, é aberta a possibilidade para que o divino venha do próprio espírito humano.
Em Romeu e Julieta, o divino vem da fricção. Do fogo transmutador. Tudo coexiste, em pura tempestade.
E voltando ao tempo do ensaio, isso foi o que ouvimos de nós, em conjunto. E no final, os atores deram voz ao texto. Garbel saboreou a crescente tensão do sonho alucinado que faz com que Mab fale através de Mercuccio. E de repente nos demos conta de que o tempo havia passado, e os compromissos externos foram evocados. Era Daniela quem tinha maior urgência. Tinha que sair, mas queria ficar, e queríamos ler, queríamos experimentar depois de tanto falar e ouvir. E o tempo era pouco, e eles se sentaram no chão, Cris com livro nas mãos, Dani o abraçando por trás, e assim leram o encontro. Assim, no chão, com pressa, abraçados, evocaram o texto. Assim, sem mais pensar, com pressa, sem tempo, com vontade, assim, tão simples, já foi tão lindo e deu vontade de mais.
Ouvir de si os ecos daquelas palavras. Ouvir onde ressoam Romeu, Julieta e Mercuccio. Ouvir as palavras como mantras, perceber o estado para onde elas levam. Ouvir, ouvir, ouvir. As palavras são os carrosséis condutores. Através delas, a história acontece. Pelo ouvido, em Shakespeare, entra tanto o veneno quanto o bálsamo, e nós, em estado de escuta, falamos. Ouvindo, tudo fez sentido, e já visualizei o recorte do texto que será nossa cena.
Combinamos o próximo encontro, e dessa vez será direto pra ação.
E mais uma vez, agradeci.