Ensaios R&J – Quarto encontro

Entre uma semana e outra muita coisa acontece, e entre essas coisas, a Dani conseguiu um trabalho. Sem Julieta, não faria sentido ter um Romeu, ainda mais um Romeu que sairia de um dia inteiro de compromissos, iria ao nosso encontro e sairia para uma nova reunião às 11 da noite. Se eu insisto nesses detalhes, não é por preciosismo de narração, mas porque é essa a nossa realidade, e é ela que levamos à cena. Para cada hora de arte representada temos, em igual proporção, a mesma energia colocada na arte de conseguir cruzar encontros. E conseguir é sempre uma comoção.

Como resolvemos intercalar a cena do baile e a do balcão com o texto de Mercuccio, mesmo sem Romeu e Julieta havia trabalho a ser feito, e já estava mesmo pensando em ter um dia separado com Garbel. E esse foi o momento.

Então eu saí de mais um dia dando aulas em direção à Rua Humaitá. Ao descer a Av Brigadeiro Luiz Antônio em direção ao ponto de ônibus, tentando desconectar de tudo e me sintonizar com a peça, sentia meu ritmo interno totalmente dissonante com o ritmo da cidade. Pessoas passando apressadas, trombando ombros por mais uma ínfima parcela de espaço ocupado no ar. Eu sentia a hostilidade trazida por um dia de trabalho sem sentido, rumo à jornada sem sentido da volta para o lar apertada no busão. Nada que um paulistano trabalhador não viva todos os dias, mas não é por ser banal que a coisa se torna amena. Então percebi que a cidade de Escalus, a Pólis que nasceria do fim da barbárie dos clãs, que daria fim à violência, logrou gerar infinitos clãs de um só, e cada um por si. A cidade não resolveu, com sua lei, a violência. Porque a lei é o amor artificial, e nada que é artifício muda rumo das paixões humanas. Só uma paixão ainda maior – e é dela que a peça tanto fala.

Ao chegar na escola, um pouco de conforto: Garbel me esperava com um copo de água com hortelã, uma proposta de figurino e algumas músicas. Conversamos um pouco sobre o texto, que nesse caso, foi um pouco mexido em relação à cena original. O trecho é quando, logo depois de sair do baile, Romeu resolve voltar à casa dos Capulettos, deixando para trás Mercuccio e Benvólio. É o momento anterior à cena do balcão. Como não temos Benvólio, cortei algumas partes que soariam estranhas sem a réplica.

A decisão de incluir essa cena, ao invés de justapor o baile e o balcão, é deixar (mesmo com cortes) que o movimento da peça ocorra. O momento do baile é o primeiro encontro, o rapto, o êxtase, em que eles, ainda sem nomes, são dois que se tornam um. Ainda no baile há o choque de realidade – quando descobrem, simetricamente, os nomes um do outro – e Romeu sai da casa, junto a seus companheiros, até que ele resolve retornar a Julieta. Esse breve intervalo entre o baile e o balcão dá um respiro à história dos dois, e traz de volta o mundo exterior. Justapor as duas seria eliminar a descoberta do risco, eliminar a evocação jocosa e rude de Mercuccio, que gera um lindo contraste com o texto do casal de amantes. Por esses motivos, Mercuccio ficou, mesmo com problemas no joelho.

Também, é claro, interessava a pesquisa da palavra dita em diferentes registros, em diferentes momentos. Porque, em Shakespeare, a palavra é sempre elaborada, recebendo os contornos da fala de cada personagem. Começamos, então, pelo entendimento do texto, pelo movimento proposto pelas palavras, pelas nuances. Logo depois, Garbel começou um improviso. Hoje a música funcionou, e pedi para que ele resgatasse a energia juvenil de Mercuccio, seu turbilhão, e assim ele começou. E ao som de David Bowie, relembrei quando estavámos Garbel e eu, há mais de dez anos, quando ficamos amigos, naquela mesma situação – mas na época, ele me apresentava poemas de Drummond num solo que fizera. Na época, eu era fotógrafa e amiga do seu amigo, e iria registrar sua cena para o folder da peça. Lembrei do susto que foi ver a poesia passando por sua voz, de tão crua que ficou, tão presente e aterrada. Lembro que tive uma epifania líquida, chorei sem parar por meia hora, e ao fim da sua apresentação, já éramos amigos. Uma década depois, lá estava ele evocando Mercuccio, e eu senti os anos que passaram escritos no seu corpo, que obviamente não era o mesmo. Essa visão sobreposta me trouxe certa comoção – aliás, tenho sentido muito isso nos ensaios.

Ao final do improviso, dos elementos trazidos ficou uma maçã que, para minha surpresa, foi pisoteada em cena. Ficamos um tempo depurando a proposta, entendendo o que era esse momento de evocação. A dificuldade do fragmento é torná-lo simples, porque como é a única cena de Mercuccio nesse recorte, a tendência é colocar elementos demais, complicar o que, na peça, é um momento rápido, contaminado pela urgência do texto. Qualquer detalhe a mais alonga a cena que deve ter esse ritmo. E meu desafio é trazer esse registro, porque o ator, pelo seu momento de vida, seu fluxo interno e sua pulsão, está mais para Hamlet que para Mercuccio. É sempre um esforço fazer com que a maçã não vire uma caveira. Então percebi que, apesar de ser um improviso, teria que ser dirigido, porque a energia que espontaneamente se apresentava, apesar de ser bastante potente, levava o ator para um lugar mais crítico, mental, reflexivo, tempo esse que não é do personagem.

Apesar disso, o vigor necessário à cena se apresentou, assim como o entendimento das intenções do texto. O próximo ensaio traria novas camadas.

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