Ensaios R&J – Quinto encontro

O nosso quinto encontro divide-se em duas partes: o ensaio propriamente dito e a apresentação da cena a Tatiana Motta Lima, minha orientadora.

Marcamos no Célia Helena às 13:30 (Garbel+eu), às 14:00 (Cris e Dani) e Tatiana chegaria às 15:30. Retomamos o ensaio do Mercuccio, começando por um aquecimento. Ele estava preocupado com o texto, que ainda não estava totalmente memorizado – realmente, isso é uma questão que drena bastante energia do ator, e ele em especial, PHD na arte da auto-cobrança. Já no aquecimento, percebi o peso desnecessário que Garbel carregava consigo, o que dificultaria chegar na energia de Mercuccio, e percebi que eu também carregava esse peso. Não é todo dia que a gente está pleno, afinal. Recém-chegada de alguns probleminhas cotidianos, percebi a muralha me separando do ensaio, e que seria injusto cobrar do ator um salto que eu mesma não estava fazendo. Num impulso, me joguei na cena, levando essa matéria ao fogo da transmutação. Na falta de um interlocutor (que estava mesmo fazendo falta), arrisquei ser Romeu, e isso foi bom pra todo mundo. Fizemos um aquecimento na base do kung fu, pedi para que Mercuccio provocasse Romeu, e aquela brincadeira foi tingindo a cena da energia adequada. Como eu já pratico há um ano, e Garbel praticou por dois, algo mais ou menos (bem mais ou menos) parecido com uma luta apareceu, e a falta de jeito que estava mais para Trapalhões que pra Bruce Lee nos levou ao terreno maravilhoso do ridículo. Assim, entre risadas, o personagem chegou. E assim passamos a cena, ainda limpando excessos. Mas sinto que ainda me faltam palavras precisas para alguns diagnósticos, ou para sugerir ações claras. Fica clara a inexperiência nessas horas, em que me sinto como espectadora, percebo os pontos altos e baixos, mas ainda me falta clareza para saber exatamente o que falar em alguns momentos.

Terminado o ensaio, esperamos um pouco para ver se Cris e Dani chegariam. Eles passaram a noite em um trabalho espiritual, e imaginei que isso seria motivo de algumas surpresas. Às 15:30 em ponto, Tatiana chegou (começo a duvidar que ela seja carioca), e começamos a conversar sobre os encaminhamentos – teríamos apenas 2 horas para tudo. Bem, bem pouco tempo, como sempre, nos empurrando ao essencial.

Comecei mostrando algumas opções nas traduções. Logo em seguida, chegou o casal. Fomos para a sala de ensaio, e resolvemos ir direto para a cena, já que esse era o principal motivo da presença de Tatiana. Começaram a se aquecer, e pedi para que quando estivessem prontos, Cris iniciasse a cena do baile tocando o acordeon.

Quando o improviso começou, a qualidade foi muito interessante. Os dois estavam ainda bastante sensíveis pelo trabalho na madrugada, e não precisou de muito para que uma atmosfera mágica se instaurasse. Digo mágica mesmo, não é um adjetivo que pudesse ser substituído por “linda”, ou algo assim, eles chegaram rapidamente no estado que abre brecha a múltiplas possibilidades do ser. Cris, em um dado momento, somou à melodia do acordeon um canto, uma espécie de vocalize bastante interessante, como um chamado. Dani às vezes o acompanhava, fazendo desse encontro vocal um prenúncio do que viria depois. tE alguns momentos, ela parecia ter sido tocada fisicamente pela música, quase como se os corpos já estivessem ali, juntos.

O improviso foi chegando a um lugar bastante estático. Apesar de ter força, foi se tornando muito etéreo, e eu precisava de um pouco mais de chão na cena. Pedi para que fizessem um novo jogo, uma brincadeira de criança em que, colados costas a costas, Romeu deveria tentar ver o rosto de Julieta, que não poderia deixar. Assim o movimento voltou à cena, e pedi para que eles seguissem até que Romeu tocasse sua mão, código para que o texto tivesse início. Como eles ainda não o tinham decorado, deixei o impresso próximo a eles, para que não descolassem do clima tentando lembrar do diálogo.

A seguir dessa cena, Garbel entrou com Mercuccio. Era a primeira vez que ele fazia a cena assim, intercalada, mas ela saiu com a qualidade que conseguimos chegar nos dois ensaios. Logo depois, pedi para que Romeu e Julieta voltassem, e os atores seguiram no improviso sem texto da cena do balcão. Um pouco depois percebi que a cena tornaria a ficar etérea, então preferi que seguissem a partir dali com o texto em mãos, para que ele se ancorasse nas palavras. E, com um em cada ponta da sala, a cena foi se desenvolvendo, enquanto eles se aproximavam aos poucos. Foi a primeira vez que ouvi o resultado da tradução resultante de tantos cruzamentos, e fiquei feliz com o que vi. Nada me pareceu estranho, ou empoeirado, mas ainda era poético.

Terminado a cena, sentamos para conversar. Não me lembro que horas eram, mas lembro que não tínhamos muito tempo. Tatiana tinha algumas páginas de anotações e parecia satisfeita com o que viu. Aliás, estávamos todos muito felizes. Não conseguíamos parar de falar, tentando dar conta da experiência – assim como Romeu, que busca tantas e tantas palavras para definir Julieta – e do encantamento que o texto dispara, todas as suas múltiplas dimensões e contornos. A dramaturgia-feitiço do Bardo. Burilar Shakespeare é acionar engrenagens antigas, disparar uma máquina que anda por si só. Ensaiar a peça é entender a rotação exata desses giros todos, e se deixar levar.

E assim como no tempo da história, o nosso também era muito curto e urgente. Na síntese do que conversamos, passeamos pelas diferentes possibilidades de interlocutor para o texto – Tatiana sugeriu desde o princípio que incluíssemos a platéia, fosse triangulando mesmo, fosse se “deixando ver”, como um compartilhar público de sentimentos que, de tão intensos, não conseguem se restringir ao âmbito privado. Ela se lembrou, então, de beijos adolescentes em pontos de ônibus, contaminando quem passa daquela libido incontrolável, cujo espetáculo não é feito para o transeunte, mas também não consegue se esconder, por não se conter em pouco. Falou também de um trio que certa vez vira numa pista de dança, três moços em êxtase de amor compartilhado, e como achavam lindo não apenas o que acontecia entre eles, mas todo o mundo ao redor. E entre essas evocações, uma atmosfera de entusiasmo foi se construindo entre nós. Tatiana sentiu falta de uma pulsão também sexual na cena (talvez o que eu estivesse chamando de “chão” fosse “corpo”), o que concordei prontamente. E citou, como não poderia faltar, Grotowsky, falando de sua prece carnal, da indivisibilidade entre o erótico, o amoroso e o sagrado. E falamos do alimento que é beber nessa fonte, e do que gostaríamos que acontecesse na cena, do amor como grande pó alquímico que tinge de ouro e beleza tudo o que toca. É incrível como a cada novo passo em direção a essa obra, fica mais evidente o seu fluxo transmutador, espelho da própria alquimia propiciada pelo amor. Um amor além do romântico, do “amor” banalizado, do amor de Romeu por Rosalina. A palavra é a mesma, mas descreve estados bastante diferenciados, e é esse outro estado que Romeu e Julieta atingem, esse êxtase físico e espiritual, capaz de dar asas e saltar sobre o impossível, e impossível de se conter apenas em dois, e ao qual também chamamos amor. É pleno, é gigante, é arquetípico, mas também é pessoal, encarnado em duas almas que se buscam e se atraem e se querem e se necessitam, e quando juntas, se magnetizam e transbordam sobre que testemunha um pouco de sua plenitude um pouco dessa libido direcionada aos céus, um pouco dessa inspiração de dessa graça por estar vivo.

Aqui, uma pequena digressão. Sempre desconfiei que a cena do balcão era a vivência desse êxtase não apenas pelos personagens, mas através deles, pela platéia. É por essa capacidade de ressonância que vivemos essa parcela um pouco maior do infinito. E é o desejo que isso não acabe que nos leva a torcer para que o quase impossível aconteça, para que a mensagem chegue, para que o plano vingue, para que eles despertem juntos, para que o amor continue. Finda a possibilidade, fica o gosto da querência, e daí segue, o insatisfeito espectador, com sua missão de plasmar ele mesmo esse amor no mundo. Porque uma vez experimentado, prova ser possível, e é justo nessa cena que ele, o Amor, desce dos planos superiores e mostra sua face encarnada na nossa existência.

Julieta – Só teu nome, em ti, é meu inimigo.

Não és um Montecchio, mas tu mesmo

Afinal, o que é um Montecchio? Nem um pé,

nem a mão, nem o braço, nem um rosto,

nada do que forma um corpo humano. Toma outro nome!

Um nome, mas o que é um nome?

Se o que chamamos rosa não fosse rosa

não perderia ela seu perfume. Então, Romeu,

se também não se chamasse Romeu,

seria ainda a face do meu encanto.

Romeu! Renuncia o teu nome, que não é parte de ti,

Em troca dele, toma-me a mim, que já sou inteira tua!

Romeu – Aceito! Eu farei o teu desejo

Por ti serei, então, rebatizado.

Não mais serei Romeu, mas sim Amor.

A cena do balcão é, portanto, muito mais que uma declamação entre dois amantes. É um ritual de morte, em que ambos perdem seus nomes, seus contornos, abandonam antigos servos e passam a servir apenas a essa divindade. Nessa cena, instaura-se o templo do deus-Amor, que nada mais é que a face iluminada do próprio Absoluto. Um deus que pode não apenas ser reverenciado, mas também vivenciado – é contemplação pela fusão, pela perda dos contornos.

Julieta – (…) Minha bondade é como o mar: profunda e ilimitada.

Quanto mais eu te der, mais tenho, pois ambos são infinitos.

Através do balcão, abre-se a janela à sublime capacidade humana se escalar o divino. E as palavras feitas poesia não são declamações, mas tentativas de dar palavras ao belo, tentativas de colher em vocabulário restrito toda a abrangência da experiência mística, mas também carnal, daquele momento. É maior que o mar, maior que qualquer astro celeste pode descrever, mas também é o prosaico, o simples, uma troca de palavras entre dois adolescentes que, em contato com tal força, sentem-se acima de qualquer coisa. Também é a imprudência, também é o falso recato, também possui o reino das pequenezas humanas. Não é o amor entre os deuses, mas entre encarnados, com toda sua sombra e confusão, deslumbramento e luz.

Não exatamente com essas palavras, fiquei com a sensação de que todos sentíamos isso da cena. E também concordamos que faltava a ela justamente esse dado mais cotidiano, essa quebra trazida pelas pequenas coisas concretas. Saber, claramente, a ação que cada palavra comunica – ou, como diz Tatiana: “cada palavra está ancorada em o que eu quero do outro, ou uma pergunta, mas sempre uma ação. Vocês tem que pensar que estão sempre fazendo alguma coisa, e não dizendo”. A palavra é meio para se chegar a algo, não tem o fim em si mesma, na pronúncia declamativa. E assim volto ao sentido da pesquisa, buscar as ações em cada verso. O afeto – potencial para afetar – de cada palavra.

Conversamos também sobre um movimento que Shakespeare faz no texto, alternando planos mais elaborados (por exemplo, com versos rimados) com mais prosaicos, em que a fala é mais direta. Tatiana percebeu que esse movimento também já está na cena, e achou interessante essa alternância. Isso me fez pensar em realidades sobrepostas: eles são simultaneamente sacerdote e sacerdotisa do amor, e também Capuletto e Montecchio, e também dois adolescentes que querem se pegar e se beijar até o infinito, e também os desejos concretos da platéia que se projetam nessa vontade. Camadas, camadas, camadas, elaboradamente construídas, e que tentamos decifrar e reproduzir. É essa a partitura escrita pelo bardo, pelo menos na nossa compreensão.

E tudo isso passa pelos aspectos técnicos. “a quem eu me dirijo agora? qual o tom de cada palavra?” O cuidado para que o estado declamativo não se instaure, o cuidado para que o doce clima da poesia não torne o texto uma melodia sem contornos, e já citada ação contida nessas palavras. O colchão de intenções construído atrás do texto. Ficou clara a necessidade de experimentar mais e mais, alternando estados e possibilidades, para que essas camadas se sobreponham também na memória do corpo dos atores. Porque o corpo, e só ele, é a âncora de tudo o que já foi dito até então.

Nesse momento, já havíamos passado mais de meia hora do ensaio, e o grupo seguinte já nos esperava há bastante tempo. E assim como Romeu e Julieta, não conseguíamos nos despedir. Para finalizar, Tatiana comentou rapidamente a cena de Mercuccio, de como sentia que em alguns momentos perdia-se o foco da intenção, e a cena virava “cena”. Entendemos o que ela queria dizer. Em alguns momentos havia muita elaboração de elementos, a fala acabava sendo muito direcionada ao público, e perdíamos o essencial: Mercuccio queria que Romeu voltasse, e toda sua evocação dirige-se essencialmente a ele, ainda que triangule em alguns momentos. Se o foco vai muito para o espectador, o objetivo do personagem se perde.

Só então entendi o que já sentia na cena durante o ensaio, mas não conseguia diagnosticar com precisão. Depois, conversando com Garbel, delimitamos a essência do que deveremos fazer.

Saímos felizes, depois para um café, e depois cada um para os seus mil outros compromissos, ainda que fosse sábado, ainda que fosse noite. E eu fiquei torcendo para conseguir um dia comum de ensaio, para podermos voltar a esse lugar-montanha-russa, locomotiva do êxtase.

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