Nessa semana, conseguimos um dia comum para Romeu e Julieta. Resolvemos ensaiar no estúdio de video da ESPM, onde leciono, espaço amplo e quieto, que era exatamente o que precisávamos. Agradeço ao meu amigo Luiz Fernando da Silva Jr, coordenador do Núcleo de Imagem e Som, por essa chance de um mergulho no fundo infinito.
A cidade já pulsava o outono, mas ontem choveu bastante, ou o suficiente para deixar o paulistano ainda mais agitado, além do já normal de uma sexta-feira. Antes de começar o ensaio, almoçamos juntos, compartilhando as percepções sobre a densidade do mundo nesse momento. Realmente, ninguém escapou de uma semaninha enfrentando leões, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Pessoalmente, eu mesma me engalfinhei com o Banco Santander, e me perguntei com sinceridade quem precisa de famílias inimigas tendo conta em banco e devendo pra ele. Uma prova de amor incrível não deixar que esse veneno penetre no sentimento, alterando ânimos, motivando cobranças, ativando desesperos. Manipulando o outro, para que me dê o que eu quero.
Há algum tempo tento me livrar da manipulação: a dos outros dirigida a mim, a de mim para os outros. Mesmo que a intenção seja das melhores, mesmo que a causa seja nobre e o resultado valha a pena. Mesmo que.
Tentando não manipular, estou evitando, também, ter muitas concepções prévias da cena. O que tenho feito é me colocar a serviço do ofício: gerar o encontro nas melhores condições possíveis, e ver o que dali brota, nesse momento, com essas pessoas. O que vem a partir do texto. Então se é que posso falar alguma coisa sobre esse processo, é que ele tem o texto como ponto de partida, e quando digo texto não são apenas as palavras escritas. É o espírito da peça. Em suma, estou tentando ouvir bastante antes de concluir alguma coisa. Em algum momento me perguntei se isso era mais insegurança que proposta, mas depois dos últimos ensaios tenho percebido que vale a pena. Apesar da ansiedade, apesar do desamparo que isso dá, apesar do salto no escuro, apesar da pressão do tempo, apesar da pressão do sucesso, apesar de.
Começamos o ensaio com um aquecimento bem rock, pra aterrar mesmo. Pra evocar a intensidade além do poema, pra descer pra carne, pro fogo, pro desejo. Pra esse instante adolescente e intenso, do qual já nos distanciamos um pouquinho. Depois de um tempo, começamos a cena do baile, que hoje ganhou contornos mais nítidos. Cris entrará tocando o acordeon enquanto Dani faz uma dança em espiral, que desde o primeiro dia surgiu e eu sempre achei ótima. Eles se olham por um tempo, até que ela o nota, e Romeu divide esse momento de descoberta triangulando com a platéia.
Romeu – que moça é aquela ali, adiante, que enfeita as mãos daquele cavalheiro?
Ela ensina as tochas a brilhar
e, pendurada na noite sem luar,
é jóia rara em rosto de carvão
é riqueza demais pra um mundo vão
como um lindo cisne entre aves agoureiras
assim paira entre suas companheiras
terminada essa dança, quero ver o seu lugar
e pela pele da sua mão, meu rude toque abençoar.
meu coração já amou? Olhos, desmintam essa certeza!
porque, até essa noite, eu não conhecia a beleza.
Esse texto tendia a ficar bastante declamado, mas aos poucos fomos entendendo juntos que nada dito aqui é pensado previamente, é sempre uma tentativa de definir o indefinível, e nem todas as maravilhas da terra e do céu juntas dariam conta desse absoluto. Pedi para que Cris intercalasse o texto com a música, e isso deu um efeito interessante, porque causava algumas quebras que impedia cair na “musiquinha do poema”, a armadilha sempre à espreita. Também houve uma mudança no tom: Pedi para que ele evocasse a inocência, o sentimento de descoberta de uma criança frente aos seus primeiros espantos. É esse o olhar dele em direção à Julieta, e quando o direciona a nós, espectadores, podemos compartilhar desse desnudamento. Não que Romeu fosse infantil, ou inocente, mas nesse instante é como se nascesse de novo. A instabilidade causada pela visão o leva a um desnudamento e, ao perceber-se correspondido, a alegria do encontro é impossível de conter. E recordamos aquela imagem já trazida pelo Cris, a de um Romeu molhado – e, segundo ele, como se fosse recém-saído do barro. E comecei a imaginar um pássaro, ou partes dele, pelo menos em asas, numa roupa branca manchada de terra. E Julieta em vestido à la Pina Bausch (e olha que nem vi o filme de Win Wenders ainda), branco e com bordas vermelhas, colado em cima e rodado em baixo. E vi também os dois com máscaras, como o yin/yang (como se cada um vestisse uma metade)
Devaneios, devaneios, devaneios vindos daquela dança cantada musicada interpretada intercalada meio alada meio terra meio carne meio espírito
Dessa forma, seja pelo seu texto seja pela música escolhida – um tipo de tango – a cena se inicia, carregando a atmosfera de uma doce sensualidade misturada ao frisson da descoberta. Dani lembrou-se do vocalize do ensaio anterior, e novamente o evocamos, e ele virou a ponte entre a música tocada e o texto. Assim, intercalando os três – música, canto e texto – podemos instaurar rapidamente a atmosfera pedida pela peça, ainda que, no nosso caso, trabalhemos apenas um fragmento. Esse começo ajuda a suprir a lacuna do recorte e dá o pedal para que, ao chegar no primeiro diálogo entre eles, alguma coisa de fato já tenha acontecido.
E se temos na música e no canto o vigor de um Romeu atordoado, inebriado pelo encanto, temos também a dança de Julieta, com os movimentos trazidos pela escuta de Daniela, trazendo o vigor potencial da personagem, como uma força da natureza em espiral. É claro que não seria essa a dança a se ver em um baile, mas essa camada já temos pelo saber da história, pela narração de Romeu. A coreografia não se preocupa, então, com o realismo, mas também com o desvelar-se. A música de Romeu toca o corpo de Julieta, que, a partir daí, dança os sentidos descobertos, dança a carne exposta do sentimento aflorado.
Ficamos um tempo nesse preâmbulo, até ir para o diálogo entre eles. Numa primeira passagem, foi tudo muito lento, e eu já havia sentido isso no ensaio anterior. De fato, eu havia pedido para que eles dilatassem o tempo, caso quisessem, mas vendo de fora era como se a cena estivesse, literalmente, em câmera lenta. Pedi para que repetissem, dessa vez embalados por um jogo de pega-pega, e a qualidade se transformou completamente. Ainda fizemos alguns ajustes de compreensão em cada verso, e várias opções interessantes surgiram nas diversas vezes que repetimos. É incrível como são infinitas as possibilidades e, a cada escolha, o texto muda completamente. Ao final, acho que conseguimos chegar ao objetivo de trazer o texto aos corpos, e o beijo já estava mais pra dois apaixonados em delírio do que para dois seres alados. O jogo conseguiu se estabelecer, e as palavras se tornaram motores para que esse momento acontecesse. Ufa.
Mas então foi o tempo do ensaio que voou, e só nos restava mais meia hora, e toda a cena do balcão ainda por ensaiar. Senti uma pontada de desespero, pensando no tempo que ficamos numa cena bem menor, e cheguei a pensar em cortar essa cena da nossa apresentação. Depois lembrei que o objetivo era a pesquisa, e não fazia o menor sentido não se dar ao deleite de um outro mergulho em mais e mais palavras. E como o texto ainda não estava decorado, nós apenas o lemos juntos, buscando novas compreensões de cada momento. Para finalizar, assistimos aos trechos correspondentes do filme Romeu e Julieta (versão Baz Luhrmann, nas interpretações de Leonardo di Caprio e Claire Danes). Sempre gostei das escolhas do diretor, de como eles falam de forma terrena, fazendo com que a poesia encarne. É claro que por se tratar de um filme há algumas diferenças conceituais de linguagem, mas justamente por isso percebemos a beleza da simplicidade, do que pode ser dito entre sussurros, entre suspiros, entre sorrisos, na água e nos corpos. Eu tinha um certo receio de apresentar a eles um resultado pronto, mas acho que foi bom para vermos juntos lugares que podemos explorar. Resisti à tentação de cortar trechos difíceis do texto – como fizeram no filme – reafirmando minha fidelidade ao autor e à proposta de entender o sentido de cada um daqueles versos. E como já havíamos passado uma hora do tempo máximo possível, terminamos ali.
E assim os leões da semana converteram-se em tigres e dragões…