hoje, num raro momento em que não precisava ser prática, navegando pelo blog do meu companheiro Djair, dei com esse post. uma carta que ele escreveu aos nossos filhos. fiquei emocionada. claro, é um retrato de um momento, provavelmente escrito num desses dias em que ele fica cuidando dos meninos (porque a gente reveza).
hoje sou eu que estou com eles. e enquanto tento escrever esse texto, Gabriel me chama 1000 vezes para fazer um desenho. situação típica e simbólica.
por que é mais importante escrever que atender a uma criança – sendo essa uma fase que durará tão pouco? não sei. é uma intensidade tão grande que talvez a gente peça um escape, imagino. nada é afirmativo quando se trata de filhos.
fiquei então pensando o que escreveria a eles, Pedro e Gabriel, hoje com cinco e dois anos (e meio). é provável que essa carta seja interrompida muitas vezes, para fazer um desenho ou cortar tomates, mas tentarei chegar ao fim.
(pausa para apontar lápis amarelo)
queridos,
(pausa para ensinar apontar lápis. pingar soro no nariz. parar choro por causa do remédio do nariz)
Nem sei como começar isso aqui. Talvez dizendo como me sinto aos trinta e sete anos, sendo mãe de vocês, além de tantas outras coisas… tentando entender (ainda) meu lugar no mundo. Vivendo nessa cidade louca e pensando se é o melhor pra gente, com tanto mato e cachoeira por aí.
Eu, que tinha tanta certeza… elas todas caem de vez em quando, sabe?
Como o papai falou: estamos tentando reinventar o que é ser adulto, o que é ser gente, sem adulterar tudo. Na verdade, estamos tendo é que desaprender um montão de coisas.
Eu, por exemplo, estou tendo que desaprender que a vida de gente grande é chata. Porque sempre pensei que fosse. Porque sentia essa dor de ter que abandonar os sonhos, ou chamar os sonhos de imaginação, ou faz-de-conta, como se fazer de conta fosse fazer de mentira, ou seja, não fazer. Lembro do meu pai nessa mesma correria que a mamãe tem hoje: saindo de um lugar pra outro. Ia para casa almoçar em cinco minutos, e ainda me contava histórias para comer. (Acho que isso não era nesses cinco minutos, talvez fosse no final de semana, mas as histórias e a nutrição sempre me acompanharam. Crescemos juntas.)
Nas histórias eu via meu pai de verdade, assim como adorava ver minha mãe fazendo coisas cotidianas. Não gostava de ir ao supermercado com ela (não sei como vocês gostam de ir comigo), mas gostava dos lanches que ela preparava. E das espadinhas feitas de jornal, e dos arcos e flechas, e pensando bem minha mãe nunca brincou de bonecas com a gente. Ela era bem moleca, pra falar a verdade.
Então eu vejo vocês mergulhados nessa fantasia linda de ser, e fico aqui fazendo força para reaprender o caminho para esse lugar. Vejo você, Pedro, que agora está com mania de cavernas, cercado de bichos de pelúcia e livros. Isso é só o que eu vejo, mas sei que você vê bem mais. Assim como você, Gabriel, no seu cantinho do desmonte, reduzindo cada brinquedo ao seu mínimo. Nesse olhar de curiosidade sem fim, nesse afã de aproveitar tudo o que a vida te oferece, ainda sem medida, mas sei que ela chegará. Porque você tem olhos felizes.
Estamos, papai e eu, tentando viver uma vida coerente, num mundo em constante transição, e com extremos de bondade e falta de noção. Estamos tentando atrelar nosso sustento (ou dinheiro, ou energia que entra) a trabalhos que colaboram para a vida. Todo o resto, queridos, por mais que se diga o contrário, é coisa inútil a se fazer. Eu acredito que a gente esteja caminhando para uma mudança radical, um salto de consciência mundial, em que todos os padrões de hoje não servirão mais. Hierarquias, por exemplo. Por isso pedimos para que vocês resolvam os conflitos entre vocês: para aprender a trabalhar com a horizontalidade, para deixar de acreditar em ídolos, para aprender a acreditar nessa música linda que toca no peito de cada um. Nosso manual de instruções tem ritmo, e ritmo de tambor.
A mamãe está fazendo uma força enorme para decifrar essas notas agora. Passou muito tempo procurando as partituras aí fora, e agora tá numa confusão impressionante. Só vocês, meus queridos, para me ancorar à terra. Ninguém consegue derreter e trocar fraldas ao mesmo tempo, ou desembestar e dar risada de uma nova palavra que surge.
Então, filhos amados, vocês são a nossa força diária pra conseguir fazer esse ajuste, desaprender o que não serve, destampar novamente os ouvidos às dimensões invisíveis. Ouvir o próprio sonho, entender o plano, entender o que é nascer, o que é viver, o para que disso tudo, e isso lidando com contas vermelhas, lidando com a tendência diária à descrença e ao desespero. Lutando contra aquela voz velha e decrépita: vocês estão loucos, tem filhos pra criar e ficam aí, viajando…
Graças a vocês, meninos, nossa viagem agora tem mapa, tem bússola. Mas as intempéries ainda existem, porque são parte da coisa. Tentamos acertar sempre, mas tem hora que não é fácil, e é importante não esconder isso.
(pausa. Gabriel me interrompe para desenhar a mamãe chorando lá em cima)
Porque a mamãe chora, às vezes, lá em cima, crente que tá escondida.
Mas o que a mamãe chora, meus queridos, é o luto das partes que estão indo embora para que ela seja livre. Às vezes a mamãe também chora para entender. Porque ela tem um cabeção que não ajuda muito, e a água ajuda a dissolver as ferrugens.
Às vezes ela chora porque está triste.
Mas muitas vezes, chora porque está aprendendo.
E então volta desse choro olhando para vocês com a mente limpa. Aí conseguimos pular de verdade na cama, brincar de verdade, sem faz-de-conta, ou melhor, sem faz-de-mentira.
Porque a mamãe ainda está aprendendo que fazer de conta não é mentir, mas fazer acontecer em outras realidades, até que se materialize nessa. A visível.
Clau, chorei. Chorei de verdade.
Obrigada por compartilhar esse processo com a gente.
Você e o Dija.[ também li o dele e adorei, mas talvez pela força feminina, as lágrimas ficaram mais no seu texto.]
um beijo e amor infinito de quem acompanha e admira essa família linda, que aceita sua humana imperfeição.
Luz luz luz!
Beijos nos corações, dos grandes e dos pequenos!
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ô querida! obrigada.
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Cunha, de novo vc me faz chorar. E vejo que esse conflito também é meu daqui pra frente. Amo vc. Amo seu jeito de ser mãe, Amo sua família linda que também é minha. E amo ainda mais sua coragem de sempre expor sua humanidade. Bjs
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amo ser sua irmã!
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Cumadi-poetisa Clau, você sempre emociona… Feliz por ter sua companhia nessa caminhada… Obrigada por essa sensibilidade sempre tão presente, que, muitas vezes, tira a gente da dureza do dia a dia… Beijos
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e tamu junto, né comadi?
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