Miguel

Daqui a alguns dias,

vão se somar dois anos.

Dois anos desde sua partida para as estrelas.

 

Fiz desse dia um marco. Desde que você se foi, levou com você uma trava, um espinho. Abriu um caminho vermelho entre minhas pernas.

 

Doeu.

 

Tentei fingir que era comum, tentei me agarrar às estatísticas, tentei voltar à rotina.

Tentei me fazer de forte, mas do nada, de uma hora pra outra, desfalecia.

derretia.

Fiquei com vergonha do fracasso. Fiquei com medo de ser punida por algo que nem sabia. Segurei sozinha sua mão, porque não deixei ninguém mais segurar, mesmo sabendo que não poderia nunca te segurar aqui. Porque a escolha foi sua.

Você chegou no tempo das folhas amarelas, e partiu como partem logo as suaves flores de inverno.

 

Mas ao romper o cordão, você rompeu muito mais.

 

Desligou, em mim, uma corda que me prendia. Desenrolou um outro cordão do meu pescoço. Desencadeou um longo processo de liberdade, de reconexão, de reencontro com o próprio amor.

 

Você, alma imortal, me reaproximou do Caminho

me trouxe de volta as estrelas

a ponte.

 

Você, filho querido

me trouxe de frente a humildade

me mostrou o tamanho da minha arrogância

me mostrou reverência e fé

mostrou que as marés que trazem a vida e a morte são idênticas,

que nascer e morrer é uma coisa só,

e coisa que não se controla: só se navega.

 

Seu luto foi minha liberdade

não pela sua partida

mas porque a partir dela

fui ao meu encontro

ao meu próprio parir

 

E nesses dias tão intensos

há quase dois anos de sua viagem,

e a poucos dias da chegada de seu irmão caçula,

você nos trouxe a família.

 

Percebi, entre dores no corpo e nervos pinçados,

entre dentes cerrados,

que eu ainda carregava nas ancas o seu pequeno peso

que nunca pude embalar.

 

E carregava sozinha.

 

Percebi que apartava você do restante de nossa família

percebi que ainda confundia sua trajetória de luz com meu próprio fracasso

e percebi o quanto temia

 

enquanto meu corpo tremia.

 

Então, querida alma,

soltei de vez o cordão

libertei sua memória da torre

e deixei que todos celebrassem sua existência

entre dores e alegrias, a própria essência da vida.

 

Aí, e só aí

no meu último suspiro,

respirei

você foi, eu fiquei,

e só então nos unimos.

 

E juntos,

seu pai, sua mãe

seus pequenos irmãos já em terra

e seu pequeno caçula entre mundos

contamos sua história

para que nunca ninguém te esqueça.

 

Seu pai, por te sentir menino,

te batizou Miguel

e eu, por ainda te sentir flor

te chamo também Sakura

 

Aqui, você é anjo de quartzo rosa,

no centro da nossa unidade

nas estrelas,

alma imortal

e parte (nunca apartada) de nossa vida.

 

2 respostas para “Miguel”

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