A Rainha das Pérolas

Tudo começou com apenas uma pérola que ela havia encontrado na beira do mar. Era de uma beleza rara, pura e muito brilhante. Naquela época, ela era apenas uma menina que brincava nos altos das montanhas, conversando com as estrelas. Então surpreendeu-se ao ver o presente que o mar lhe trouxera.

Brincou com a pérola, encantada com seu brilho. Guardou-a numa pequena caixinha que havia ganhado da avó, e sentia-se agraciada pelo lindo presente trazido pelas ondas. Tanto que, no ano seguinte, ficou feliz em saber que voltariam à mesma praia.

A época era a mesma. O sol brilhava muito parecido.

Mas o mar havia mudado.

As ondas traziam apenas conchas vazias. Lindas conchas, algumas pintadinhas de madrepérolas. Mas nada de grandes surpresas.

A menina esperou muitos dias. Durante toda a temporada na praia, esperava que as ondas lhe trouxessem, novamente, um tesouro. Mas nada lhe aparecia. Até que, no último dia de suas férias ali, ela fez um pedido ao mar: se ele lhe enviasse outra pérola, ela lhe devotaria sua vida.

Terminado o pedido, a menina chorou. E qual foi sua surpresa ao ver que, ao tocar aquela lágrima, sentiu que era uma pérola o que seus dedos acariciavam. Ela ficou radiante com aquele novo presente, e uma nova lágrima desceu, e era também uma pérola perfeita. Porém, ao tentar colher as esferas do seu rosto, a menina percebeu que elas estavam coladas à sua pele. Desesperada, entrou no mar, para ver se a água poderia soltá-las, e ao mergulhar o rosto nas ondas, ela foi atraída, como se uma grande força a puxasse, para as profundezas do oceano.

Lá chegando, a esperava um lindo palácio totalmente torneado em madrepérolas e corais. Seres encantados receberam-na com muita festa, e coroaram-na como uma grande rainha há muito tempo perdida e finalmente encontrada. Contaram-lhe histórias sobre como ela havia desaparecido de seu berço mágico, ainda bebê, e levada à superfície para ser criada com os seres humanos. Sereias entoavam as mais lindas canções em alegria pela sua volta, e toda uma corte foi gerada para acolher a rainha em seu castelo esplendoroso.

Seu reino era de uma riqueza infinita. Só havia abundância, cores desconhecidas aos olhos humanos e harmonia. A ela, foi reservado um aposento magnífico, com almofadas de uma maciez jamais vista, tramadas pelo fio mais fino das algas encantadas.

Todos riam e cantavam. No dia de sua chegada, banquetearam em sua homenagem. A então rainha observava tudo completamente em êxtase, até que lhe pediram que ela lhes concedessem algumas palavras.

Ao tentar falar, a rainha percebeu que não havia voz possível no fundo do oceano. Então ela se concentrou, e toda sua vontade foi derramada em uma nova pérola, uma terceira, que também tornou parte de seu rosto. Ao verem aquela mágica, os seres aplaudiram extasiados. A rainha ficou feliz, e novamente tentou falar. Mas nada ainda lhe saía da boca. Depois de um minuto de silêncio e expectativa, uma sereia iniciou timidamente um canto, e logo várias somaram-se ao coro, e o palácio foi inundado pela música mais pura que seus ouvidos já conheceram.

As músicas formavam histórias em seu coração…

Então a rainha suspirou, sentindo um leve torpor. Amparada pelo canto daquelas encantadoras criaturas, tocou as pequenas pérolas em seu rosto, sentindo-as tão belas, e olhou para seu reflexo nas paredes de madrepérolas, sentindo-se também muito bela. Aninhou-se nos mimos e concluiu que era feliz ali.

Então ela acostumou-se a falar no silêncio. Passava os dias a contemplar seu reino, comovida com tanta beleza. E uma vez a cada ano, subia até o alto do seu castelo, até o alto da torre, para contemplar seu mundo e todos os habitantes reunido em um só coro de infinitas vozes. Era o ritual mais importante, e acontecia na décima terceira vez que a lua tornava-se pérola radiante no céu acima do oceano. Nesse dia, e só nesse dia, lhe surgia um desejo irresistível de também cantar. E ao abrir a boca, o canto lhe saía pelos olhos na forma de uma nova pérola radiante.

Ano após ano, as pérolas formaram uma linda máscara, um tesouro vivo, composto por mil vezes mil circunferências perfeitas.

A rainha foi se tornando pesada, e cada vez mais imóvel. Não podendo mais sair, ela alimentava-se das histórias que ouvia pelos cantos das sereias ao lado do seu trono. E eram infinitas as lendas, e uma mais linda que a outra. A rainha perguntava-se como poderia ter vivido sem conhecer tantas histórias. Não entendia como não chegaram à superfície, pois uma vez cantadas, espalhavam-se pelo reino com uma velocidade de um raio. Até que ouviu a lenda do que aconteciam àquelas histórias ao cruzarem o fio prateado das águas: mudavam sua natureza, tornavam-se líquidas, móveis, e compunham parte da superfície espelhada da areia beijada pelas ondas. Depois retornavam ao profundo, novamente sugadas pelo mar.

Passaram-se muitos e muitos anos, tantos que não haveria grãos de areia ou estrelas suficientes para contar. A rainha já havia se tornado lendária, e seu rosto-máscara era tão radiante que nem as próprias criaturas encantadas o suportavam mais. Somente uma vez a cada tempo, no dia de maior escuridão, na noite sem lua e de estrelas apagadas, ela podia mostrar-se lá do alto, tal como um sol, e assim contemplar seu reino, e somar mais uma esfera radiante a sua máscara, cada vez mais pesada.

Até que chegou o dia em que nem a mais escura das noites comportava a intensidade de tantas pérolas radiantes. E ela não podia mais ouvir as histórias, nem contemplar o seu reino, muito menos ser vista.

Ela não dormia mais. Nem acordava. Seu pulso era mínimo, como um eterno transe.

Seu reino estava em perigo.

Sua única saída era descer. Descer ao mais profundo do oceano, o único lugar em que a escuridão era ainda maior que se brilho.

E a rainha desceu. Desceu, desceu, desceu numa escada de dez mil caracóis. Desceu, desceu, desceu.

Escuro
Só escuta.

Desceu, desceu, desceu
e no mais escuro, conseguiu silenciar os olhos,
dormiu.

Não se sabe quanto tempo ali ficou.

A única mudança que acontecia era quando a lua, lá em cima, tornava-se novamente pérola radiante no céu escuro. No ápice do brilho da lua, saía do meio de suas pernas um líquido avermelhado, que logo se misturava ao intenso azul das profundezas, envolvendo-a de uma suave névoa violeta.

um leve pulsar, respiração quase imperceptível.

sem quase respirar, seu reino murchou.

as criaturas desapareceram, e o castelo ficou abandonado.

a única coisa que se movia era a suave névoa violeta, que espalhava-se pelo mar de tempos em tempos, colorindo nas ondas um sinal de vida.

e o violeta vagou, vagou, até chegar em um ponto do mar onde se entoavam cantos de rosas e risos. Um canto do mar onde se ouvia alegria. Não se sabe se eram sereias, bruxas submersas ou princesas anfíbias, mas era fato que sua música pintava com cores douradas o frio das duras correntes.

E o canto daquelas que riam reverberou ao mais profundo do oceano, levando de volta a névoa violeta com um leve movimento de dança espiralada.

E a nuvem carregada de risos vagou, vagou, desceu, esquentando de dourado o azul escuro profundo…

Até que um dia, no céu, a lua novamente brilhava qual grande pérola prateada. Nesse mesmo dia, a névoa voltou à rainha e, ao tocar sua pele, essa onda provocou um suave deslocamento. E a primeira de suas pérolas alinhou-se perfeitamente com a lua.

A tensão da distância gerou um íma, uma atração irresistível, desejo de fusão jamais visto.

O feito gerou movimento no céu e no mar: ondas celestes de nuvens galopando ventos, ondas marítimas revirando areias.

E uma tempestade aconteceu na superfície, com uma força jamais vista. Tão forte que chegou ao mais profundo do oceano, onda nada parecia se mover.

e lá no fundo, uma onda se fez,

e lá do fundo, ela despertou,

não se sabe como, ouviu os risos da menina que brincava nas ondas.

e uma corrente de água quente passou pelas suas pernas, e ela sentiu alegria, um prazer desconhecido, e então sonhou que era mulher.

E sonhou que amava, mesmo sem conhecer o amor,

e teve uma sede infinita.

E um grande raio rasgou o céu até as profundezas, rompeu a máscara em mil vezes mil vezes mil pérolas, que se espalharam pelo oceano compondo traçados tal qual constelações

E livre, a mulher sonhou com um céu estrelado, com uma menina que brincava nas montanhas e conversava com as estrelas,

e a menina acendeu uma fogueira,

e aquele fogo lhe deu vontade de cantar. Mas com medo que lhe brotasse mais uma pérola, ela segurou o choro.

Então o impulso saíu-lhe pela boca. não conseguindo segurar, ela deixou sair não apenas pérolas, mas pedras preciosas de todas as cores. Poderia sufocar, mas seguiu cantando. até que perdeu os sentidos e mergulhou num azul intenso, infinito, límpido e puro. Deixou-se cair nesse silêncio,

e então abriu-se uma fenda no oceano, de onde ela emergiu.

Acordou na beira do mar. Tossiu muito, tirou água da boca, mas alguma coisa ainda lhe obstruía a garganta. então ela vomitou uma última pérola. Uma pérola perfeita, radiante. E ela, colocando-se de pé, surpreendeu-se ao ver que já era uma mulher.

E então ela olhou para a pérola em suas mãos, e surpreendeu-se ao ver que ela estava descascando. Soltou a brilhante camada de madrepérola, tornando-se uma semente.

Então a mulher voltou às montanhas. Era tanta a saudade daquela terra que a mulher deitou-se e agradeceu.

Sob a luz das estrelas, plantou a semente mutante. Então teve vontade de chorar, mas dessa vez foram águas que verteram de seus olhos. E ela ofereceu essa fonte pura à semente que havia plantado. E a semente tornou-se uma grande árvore.

E ela descobriu que tinha frio,

e acendeu uma fogueira.

E a mulher abriu a boca, temerosa. Não sabia porque, mas infinitas músicas dançavam no seu coração, e ela precisava cantar. Ensaiou um canto tímido, que logo cresceu. E tornou-se um canto tão forte que logo chegaram pessoas.

E ela ganhou amigos, e fez ali a sua casa, à sombra da árvore, ao pé da montanha.

E todas as noites, à luz da lua, deixa sair uma história. Daquelas tantas que lhe contaram as sereias.

E assim foi, até o último dia de sua vida, em que ela voltou às estrelas.

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