a sombra de todos os medos

– Mãe, tô com medo.

– Do que, Chico?

– Da folha!

 

Foram dias assim.

Não adiantava perguntar que folha era aquela. Muito menos dizer que folha não mete medo, não se faz isso com o imaginário de uma criança. Eu, que tinha medo até do triângulo das bermudas, medo de que meu pai fosse sequestrado por extraterrestres, medo de areia movediça, medo de trocar de dentes, medo de Gremlin, medo do Nada (da História sem Fim), de cão raivoso no mês de agosto, de todas as doenças que o Fantástico anunciava, medo de tanta coisa absurda que não caberia aqui dizer, era a última pessoa com direitos a pedir por um mínino de explicação do por que o Francisco tinha medo de algo tão insignificante como uma folha.

Mas e aí, o que fazer?

Comecei a perceber que isso acontecia mais no crepúsculo. Achei que seria sono. Ele sempre chorava na hora mágica, ficava querendo colo quando estava prestes a dormir, não sei se lida muito bem com esses umbrais. Será que a folha é esse quase-escuro?

Aos poucos, foi virando uma folha em branco, tela onde eu projetei primeiro os medos dele, depois os meus. Porque é tanta coisa absurda que ainda segue me aterrorizando, tanto medo infundado, medo de conta bancária, medo de polícia, medo de político, medo de ficar sem água, e fora o medo de areia movediça e rio que vira lama, que ainda tenho. E mesmo que uma voz cálida e cheia de abraço me acolhesse, seria essa a solução para um futuro aterrorizante? Dizer que aquilo não existe?

Não, isso não funciona.
 
O jeito era enfrentar aquela coisa indefinida. Mas como, se eu nem sabia onde encontrar a diaba?
 
Até que um dia, sentado no vaso sanitário, o Chico me apontou pra janela e disse: Olha lá, mãe, a folha! Tô com medo.
 
Sim, lá estavam elas. As folhas das árvores da rua, através do vitrô do banheiro. Formas escuras e malemolentes, mutantes, movendo-se ao ruído sibilante do vento, através de uma luz amarelada e quase morta. Assustador. Nada daquela beleza da árvore à luz do sol. Pura fantasmagoria.
Era o momento de agir. Aquilo não tinha mais direito de nos atormentar. Conspirando, decidimos enfrentar aquela coisa. Gritamos para a janela juntos: Eu não tenho medo de você, folha! Sai pra lá!
 
Depois a gente riu, porque não há fantasma que resista a isso.
 
Então a folha ficou lá,
 
sendo sombra, e só.

 

a-folha

 

gabrielices

(Gabri chorando)

– Que foi, filho?

– Eu só tenho duas mãos!

– E daí? Todo mundo tem duas mãos.

– Mas eu quero fazer cinco coisas! E eu não tenho cinco mãos!

(…)

 

– Mãe, pega um suco?
(pego)
– Não vai falar obrigado?
– Obrigado… (1 segundo depois) Não vai falar de nada?

dilemas libertos

– Pedro, você prefere o frio ou o calor?
– Quando tá frio, eu gosto de ficar num lugar quentinho, quando tá calor, num lugar fresquinho.
– Eu tô perguntando se você prefere o tempo frio ou o tempo quente.
– No frio gosto de lugar quentinho, no calor de lugar fresquinho, ué.
(Entendi. Demorou, mas entendi.)

<3

“Acho que o Pedro disse alguma coisa pra Júlia no intervalo que ela não gostou. Ela foi para a sala de aula chorando, disse que não queria fazer aula de educação física, que a cabeça doía muito. Eles não quiseram contar nada, mas é melhor perguntar”. (relato da professora).

O que poderia ter acontecido?

No carro, depuramos o fato, o Dja e eu. Ele chorou.

Que foi, Pedro? Você falou mesmo alguma coisa pra ela?

“A dor de cabeça entrou nela, mãe”.

E foi isso mesmo, depois eu soube. Ela teve uma dor súbita, e ele estava tentando ampará-la, abraçando-a.

Não foi nenhuma palavra doída.

Foi a cabeça.

Ufa.

E ele ainda complementou: “Eu não poderia nunca deixar a Júlia triste”.

Morri de ternura.

 

Carta aos meninos num quase-inverno de 2016

balanço meninos

Meus queridos,

O país ferve. O mundo ferve. As vitórias democráticas conquistadas quando sua mãe tinha a idade de vocês foram novamente ameaçadas. Os livros de História estão se revirando do avesso, com páginas sendo reescritas por múltiplos pontos de vista, com folhas futuras arranhando previsões apaixonadas. É um tempo bem estranho, bem louco, talvez até lúdico, e se comento essas coisas é para explicar a vocês porque às vezes eu, outras seu pai, anda pelos cantos coçando a cabeça.

Porque a gente é teimoso pra caramba.

A gente tem todos os aparatos possíveis para se enquadrar no “sistema”: inteligência, formação em instituição superior reconhecida, informação, ímpeto, talento. Mas a gente preferiu usar tudo isso pra fazer outras coisas, daquelas que colaboram para a vida. Resolvemos não usar um tapa-olho e comprar aquele pacote “vou me submeter ao mal necessário porque tenho filho pra criar”, porque nem vocês nem o planeta merecem essa conta para pagar no futuro. Então é no aqui e agora que nós dois estamos lidando com ela, às custas de muitas conversas buscando saídas e outras contas penduradas.

Muitas vezes, a vontade de gritar é muita. A gente até grita, e deve ser assustador. Tem dias que nem eu me aguento, tem dias que a fé fraqueja, vá pra sala brincar, que não tô podendo com tanta coisa! Nesses momentos me contento em pelo menos não me esquecer de dar o almoço, água, mas colo não dá, porque sou eu quem preciso. Ou seu pai. Vá conversar com seu pai, digo, nos tempos em que ele também se assusta e a bronca entra na frente por se estar vivendo em modo de briga. Porque é preciso reinventar, meninos, o que é ser adulto, o que é ser família, mãe, pai, gente.

Mas não pensem que a coisa é só dura: também tem momentos sublimes. Ouvir, diariamente, o doce canto da vida coerente. Libertar-se de tantas crenças… Retirar do DNA o “ter que ser”, a síndrome do sucesso a qualquer custo, a culpa, a tentação de retroceder… Porque os olhos só brilham se os pés caminharem na direção do espírito. Olhos brilhantes são faróis, iluminando essa trilha obscura e nova.

Isso, queridos, é ser gente grande: já ter cruzado limites. Todos sem volta.

Nessa travessia, é gostoso se deparar com fogueiras no caminho. Ali encontramos gente que também busca. Então cantamos, trocamos medicinas, trocamos marcas no mapa, porque vamos para uma direção parecida, mas o caminho percorrido é dança individual. Seu pai e eu vamos dançando juntos essa canção do espírito. Não há caminhos pavimentados, mas a delícia da aventura é garantida. Uma jornada que se vive na pele, que se arrepia na espinha, que se localiza no coração tantas vezes acelerado, um percurso de verdade, sentido na planta do pé, não projetado em telas planas. É essa a herança que queremos deixar a vocês: a coragem de seguir sua própria verdade, o desejo profundo do ser, sem se submeter às chantagens do que é desumano e decadente, ainda que disfarçado de luxo. Ou pior, de necessidade.

Se esse fosse um livro de histórias, estaríamos agora naquela parte perigosa. Naquele momento da noite em que a última vela se apaga, e só nos resta a confiança na ajuda vinda das estrelas. É uma pausa no movimento, pede calma, escuta, cautela. O desafio é resistir à tentação de sair correndo, atirando pra qualquer lado, atirando em faces inimigas, atirando a vida numa corrente de ressentimentos. Porque o tempo é de sombras, mas é também de mudanças. Irreverência ao bruto, ainda que solene. Subverter é se permitir sentir, profundamente, a alegria pulsando, insubmissível a qualquer lamento, a qualquer culpa marcada a ferro e brasas, confiando que essa estrada coletiva caminha para um ser verdadeiro.

Confiando que o rio da nossa História transbordará em uma cascata de luz divina, enchendo de frescor e arco-íris por onde passa.

Estamos juntos nessa aventura, queridos. E a cada noite, quando olho para vocês em suas camas depois de cantar nossas músicas, depois de acesa a vela pro anjo, depois de ouvir a singela reza que brota dos seus sorrisos… Depois de sentir reverberar em mim a alegria que sinto fluir dos seus corações…

Sei que estamos rumo a essa cachoeira alucinante, repleta de sons, cores, potência,

paz, consciência,

e fúria de amor.

(di)verso além das palavras

Papai, o Pedro tá estragado.

Eu só tomei conhecimento dessa fala algum tempo depois. Se tivesse ouvido na hora, não sei o que faria, acho que seria quebrada em mil pedaços. Ainda bem, ela foi endereçada ao pai, um consertador nato de coisas.

Você tinha quase cinco anos. Até aquela data, a gente esperou. Coincidíamos, seu pai e eu, sobre a mesma terra firme: não queríamos forçar sua natureza. Sempre soube que não havia algo a se corrigir, e sim a se ampliar. Nunca senti algo errado, era só diferente. Ele ainda não fala? – alguns deixavam escapar, como se fala fosse coisa uniforme. As respostas variavam de acordo com meu estado de espírito: sim, mas a primeira língua dele é a música – era a resposta que mais me ressoava a verdade.

Porém, depois desse pedido de socorro, a gente entendeu que era o momento de pedir ajuda também. Na delicadeza, sem interferências brutas, mas além do limite da nossa ignorância. E graças aos céus, passamos por muitas mãos abençoadas, cada uma contribuindo com seu melhor conhecimento para que entendêssemos o quebra-cabeças dessa mente de outra ordem. Porque, Pedro, você veio de um tempo além das amarras.

Talvez por isso, seu anjo nunca deixou que construíssemos sobre sua liberdade a prisão de um ser especial. Seu pai, logo cedo, ignorando o próprio medo ou terror, lançou-te no turbilhão da vida, percebendo, no espanto, que não só você sobreviveu, mas era feito dessa natureza. Jamais poderia ser protegido, apartado da intensidade que rege a existência, porque você, meu filho, veio em sintonia com o caos das tempestades. Por fora, delicadeza gentil, elegância ímpar. Mas também carrega consigo a fúria das grandes orquestras. Ninguém melhor que você surfa na lógica fragmentada, pesca por telepatia, fala por entrelinhas sutis. Só te custou compreender a redução imposta pela linguagem formatada, essa necessidade de prender conceitos em palavras. Você sempre preferiu deixá-las soltas ao vento, levadas de cá pra lá pela melodia das letras. Mas num dado momento, entendeu que precisaria decifrar essa estranha forma de comunicação: lógica, organizada, enfileirada em frases.

E como tudo a que você se dedica, essa foi uma linda conquista. Tornou-se não um domador da fala, mas um bailarino da linguagem: dança com ela, deixando silêncios, brechas, variações.

Só às vezes, por puro rapto do belo, me furto de reestruturar suas frases forjadas no caos. Deixo, em segredo, a correção para algum ponto futuro.

Não é por nada não, meu filho, mas não é da minha natureza espantar poesia.

prova de cavaleiro: o coração gentil

Saiu da escola com coração abalado. Forçando uma brincadeira, havia machucado uma das meninas da classe, pegando no seu braço com força além da conta. Ficou roxo, ela reclamou, mostrando que doía.

Ele, aprendendo a duras penas o limite do corpo alheio, na volta pra casa, ficou amuado.

– Tá tudo bem?

– Não.

– O que aconteceu?

– Tô com vergonha.

– Conta que passa.

(Tentou falar, mas a fala não saía)

– Tô com vergonha.

– Conta se quiser, então.

(Silêncio no carro. Agonia era tanta que dava até pra apalpar no ar. Passaram-se duas músicas e uma eternidade)

– Agora eu quero falar.

(A história saiu doída)

E eu, orgulhosa da vergonha dele. Da culpa não, culpa não presta pra nada. Mas vergonha na cara sim. Sentir o sentir do outro, especialmente quando a gente machuca esse outro, precisa de muita coragem.

Eu disse isso a ele.

Mas ele não se perdoava.

Precisava de mais tempo além da dureza das penas.

Precisava do belo que cura a dor das pontas.

Já em casa, silenciou,

serenou.

Então a fada, nele, falou: resolveu dar desenhos de presente. Pediu aquarela, colocou-se diante das páginas em branco com a franca disposição de fazer algo bonito, não apenas para a amiga, mas para todas as meninas da sala. E fez quatro desenhos lindos e coloridos, amarrou com fita rosa, colheu quatro pedras no jardim e colocou tudo na mochila, ansioso pelo dia seguinte.

Então ele curou seu coração,

e a mãe feminista derreteu.

na gira dos cavalinhos

Para cada filho, um coração. Mas cada peito que o contém pede um corpo, então sou pelo menos três com cara de mãe. Também sou grata por ter esse privilégio, o de poder ser presente nessa primeira infância (uma opção consciente), mas louca por conseguir coordenar os tantos outros eus que pedem passagem.
 
A casa, exigente, me grita pelo menos mais nove personas exclusivas, o que desobedeço com prazer. Mas com gosto eu cedo ao posto de jardineira, porque amo cultivar fadas, e elas me pedem locais mágicos e floridos. Nas artes culinárias faço o que tem pra hoje (apesar da herança genética favorável, esqueci de passar nessa fila de talentos) e a alegria de encher a casa de pisca-piscas depende de uma arrumação prévia, coisa que nem sempre tô a fim (e quando faço, recebo do Djair a gentil alcunha de Arnolda Schwarzenêga, tamanho o ímpeto dedicado à tarefa). O resto delego sem culpa.
 
A filha (que ainda e também sou) guardo para momentos de mimo.
 
A amiga transita a toda hora, facinha de lidar essaí.
 
A enamorada tem seu espaço guardado a dentadas. Seus domínios são protegidos por espinhos, e por eles garanto o aroma de rosas embebidas em orvalho, doce alimento dos dias. Sou tão feita de sua matéria que (ainda bem) seria quase impossível que ela se transfigurasse numa lista de supermercado. Mas é preciso estar à espreita: esse é um risco constante.
 
Há várias outras transitórias, eventuais, efêmeras.
 
Da classe daquelas secretas, há uma em especial: a que anda me cavando espaço a unhadas, arrancando a pele da sola e dos calcanhares até que eu lhê dê ouvidos e pernas. Ela não segue padrões, a santa louca desvairada. É aquela desacostumada ao giro da rotina. Aquela que quer sair a galope em linha reta.
 
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Como lidar?
 
Como lidar?
 
Como lidar?
 
 
Um dia, por pura graça, me veio resposta divina: Cavalgue pra cima – escutei – direto pro céu sem limites!
 
E lá foi ela, artista-amazona, sem olhar pra trás, nas asas do vento, montada na necessidade.
 
Pra Lá foi ela, feliz, sem saber que é seu giro espiralado ao redor do grande mastro o que faz mover o carrossel dos dias terrenos.

 

 

carrossel

 

 

pequeno sacerdote das notas

Você ensaiou essa música durante um tempão. A flauta, quase uma extensão dos seus braços, do seu fôlego, trazia diariamente à vida o Natal Nordestino, canção escolhida para a apresentação de final da ano.

No dia, todas as crianças a postos. Uma mão de coruja segurava uma câmera trêmula, buscando sua imagem no meio do coral. Logo vi: você estava posicionado atrás de uma criança mais alta – não por querer se esconder, mas por não se importar em ser visto. O espaço era apertado, o calor era muito a os professores davam seu máximo.

No meio da apresentação, no momento em que as flautas fariam sua parte, alguém te colocou à frente. Para minha surpresa, você ficou completamente de costas.

Logo, o mistério se revelou: de costas para a exibição, mas de frente para a necessidade.

Seus amigos, acostumados a seguir a professora, agora seguiam seus dedos. E sem desafinar, o conjunto seguiu lindamente até o fim da apresentação.

Hoje, Pedro, você serviu à música.

Hoje, nasceu em você um maestro.