(trecho de peça nova ainda no forno…)
E ela carregava na frente uma terrível imagem poderosa. E ela carregava à sua frente a imagem dela mesma carregando o filho morto, partido, partido por raios, partido pelas espadas, partindo para fora de sua vista, de sua vida, de suas asas. E era esse o destino futuro do qual ela fugia. Era esse o fantasma dos tempos vindouros, era essa a marca passada projetada pra frente feito filme em tela, feito coisa que se lança sem se pertencer. Como poderia um fantasma do passado assombrar daquela forma algo que ainda não veio? Como poderia algo sem existência existir, ainda que em mente, tingindo de escuro todo o caminho adiante?
Mas ela não se lembrava, não sabia em que momento a culpa tomou lugar da fé em seu coração. Teria sido no primeiro momento de aflição não acudida? Um primeiro abandono na primeira infância, um mero instante eterno perdido em tantos cotidianos? Que teria gerado tamanha mácula que contaminou, nesse momento, toda a vida nascente?
Ela também não sabia.
Mas nesse momento, ela via claramente a luz do seu maior pesadelo. Mirava a cena uma e muitas vezes, com o desespero de experimentar a realidade terrível por uma e muitas vezes, como se assim a imagem pudesse derreter, desaparecer, desmaterializar, de tanto ser vista. Mas não era assim que funcionava. Então ela passou sete noites olhando o quadro, olhando em silêncio. Um silêncio aterrador, um silêncio sem movimentos. Nesse tempo, sua boca secara sem água, seus olhos quedaram estatelados de tanto buscar o invisível, o indizível e o encoberto.
Então percebeu, de tanto ver sem ver, percebeu que na imagem algo além da Pietá, algo além do luto. Percebeu a rigidez de alguém que tenta deter o espírito, deter a própria morte, numa devoção infinita ao corpo débil. Percebeu um espírito em luta, raivoso, em silenciosa batalha contra o destino, contra os deuses, contra morte, contra a própria vida. E o que mais lhe espantou, então, não foi o olhar doloroso da perda, mas o olhar petrificado, eternizado, da culpa.
Onde foi que tudo começou? No momento em que descobriu que a vida era perecível, teria ela desistido de viver? Teria se sentido traída por ter recebido uma dádiva finita, como uma piada dos deuses? Aferra-te à vida, e quando estiveres apaixonado, ela escorrerá pelos seus dedos. Inútil será sua tentativa de reter o espírito, feito de matéria impalpável. Teus dedos não bastam, nem teu amor.
(…)
Era só dor o que sentia, mas sabia que havia algo mais fundo. Então sentou-se ao sol como quem pede socorro, deu as costas ao sol como quem se dá a um abraço. E sentiu as costas curvadas pelo peso da vergonha de ainda não ser. Entre os ombros, o centro côncavo, cova que ocultava um segredo – o que seria? Não lhe foi dado o direito de entender, pensava. Pois se seus ombros fizeram do peito uma gruta, algo frio e úmido, também não sabia o que ocultava, o que protegia com tanto afinco, mas nesse movimento fez-se pedra, e suas asas atrofiaram pelo desuso.
Mas sentou-se ao sol, e sem saber do que necessitava, pedia. Pedia pelo invisível, pelo indecifrável, pois não encontrava o que era, só sabia que algo faltava. Pedia a absolvição de uma pena que ela mesma se impusera, pensando que merecia. Que havia feito de tão terrível? O que ocultava? Um segredo antigo, que nem ela ainda lembrava. Então ficara ali, na cela vazia, já nem mais trancada, sem nada nem carcereiro, numa obediência invisível a um deus ignoto.
Então sentou-se ao sol como quem pede socorro. Então deu-se o direito à luz como quem, mesmo em dúvida, se permite a dúvida do que ainda dorme. Então subverteu a condenação às sombras e sentou-se ali, humilhada, doída, ferida, estilhaçada, sentindo o sol às suas costas, um breve afago de bondade sem nome. A mente fervilhando de perguntas não respondidas, a alma reivindicando o prêmio pelo bom comportamento de séculos. Mas não era nada além da luz e do calor em silêncio. Não havia respostas. Mas àquela altura, depois de tanta batalha, bastava o calor. O silencioso calor. Apesar dos seus bramidos, da sua cega obediência sem palavras. Sem caminhos, mas também não havia sentença. Não havia nada, apenas o calor.
Talvez um riso, distante. Como algo ou alguém que, do pedestal da eternidade, achasse graça de sua pequena noz de orgulho onde se aprisionara. Achasse graça de como alguém poderia curvar-se com tanta reverência a um castigo auto-imposto. Assim como nos parece patético um pássaro que bate contra o vidro em pleno vôo, e cai.
E ela olhou para o pássaro caído com a certeza de sua morte, ainda que estivesse ainda vivo. De que importava adiar o momento? Não era dor ou sadismo o que experimentava, era apenas um leve torpor em observar a vida lutando para ainda ser vida. Inútil tentativa da matéria em seguir coagulada no tempo; nem mesmo o sol, estrela máxima, mas também mortal, lograria o feito.
E ficou um tempo mais, com o sol finito pelas costas, e o pássaro ferido se debatendo, e ela imóvel, inerte, buscando um por que em tudo aquilo, pensando que talvez fosse tudo miragem em pleno deserto sem água. Então sentiu sede. Então percebeu há quanto tempo havia estado ali, passado sem água, sentindo só dor e nada mais. E uma necessidade de água tomou conta dela, escorreu pela curva convexa de seu passado ao sol, uma necessidade sem dúvidas, sem perguntas, era apenas necessidade.
E cavou o chão com as unhas, e buscou onde havia vida, e naquele momento nada mais importava, somente a fonte.
E sentiu uma última vez o sol pelas costas, ele que já partia. E ela, ao deixar de ser o reflexo de seu calor, percebeu que estava vestida de lua. Vestida de mistérios e terreno árido, como um grande refletor de luz noturna atingindo sua carne, o solo da Terra. Ergueu as costas, ergueu os braços, não sabia se era sede, desespero ou reverência, mas no torpor da boca seca, transbordou reverência e rezou.
Senhora,
Ensina-me, no amor,
A não temer mais a noite.
Ensina-me a ver, nos seus contornos de prata,
Luz sutil.
Ensina-me a fé
Luz generosa que guia a noite
Luz que suporta a quietude
Da beira do abismo
Senhora, que empresta seu corpo para que algo do sol nos chegue na noite escura,
me ensina
A humildade de ouvir
A coragem de ver e saber.
Não sabia há quanto tempo havia ficado ali, de braços erguidos, mas percebeu que chorava um choro doce, sem sal, como lágrimas da própria lua devolvendo a ela algo perdido.
E embriagou dela, do líquido, e levou da fonte ao pássaro, na delicadeza urgente de quem redescobre o por que, de quem redescobre a importância de se manter vivo o que parecia ter fim.
Voa, voa para trás da primeira mágoa, da primeira ferida. Voa além da cicatriz do tempo, praquele lugar de sonhos intactos, lugar onde se cura e reintegra a confiança. Voa, livre, e espera o novo sonho sem máculas, espera a nave que te levará a seu destino. O novo nome que te levará. Voa além das ilusões do próprio sofrimento, além da ilusão das feridas, voa até a margem do abismo e salta. O lugar da não-separação, onde o corpo recobre as asas. Voa, voa, voa, praquele lugar onde a vida é vida e os sonhos são apenas a vida ainda não realizada.
E uma dor antiga tomou posse de suas entranhas, tomou cada espaço vazio entre elétrons de cada célula e fez-se urgente que algo saísse. Além de suas dúvidas, de sua culpa, de seu ilusório controle, além de qualquer impedimento, tal qual represa estourada, ali ela estava, e algo inominável tomou conta dela e lançou-a num tempo sem tempo. E ela se encostou em algo desconhecido, suas costas em carne viva, ela se encostou numa presença divina até então irreconhecível, e deixou-se partir. Deixou-se parir. E sentiu a pele na pele, preenchendo o que antes era o côncavo do segredo, pulsando a surpresa da chegada, o peso do milagre recém-nascido.