marte, macacos e macarrões

era um lindo domingo. sol e céu azul, disfarçando de serenidade a turbulência absurda desse momento: lá em cima, Marte bem perto da Terra, eclipses iminentes, alinhamentos tensos e um monte de previsões de rompantes.

cá embaixo, na nossa vidinha, um cuidado pra não comprar briga. mas é outono, é quaresma, é isso tudo, é hora de largar o que não serve mais, e essa energia é boa pra desapegar sem mimimi, porque as coisas que precisam sair da cola dão no saco mesmo, e de um jeito insuportável.

mas ainda assim, era um lindo domingo. por que não aproveitar e passear em família?

escolhemos o templo Zu Lai, que é aqui perto de casa, mas que a gente nunca tinha ido. apesar da paulistanice da chegada – carros e mais carros buscando seu lugar à sombra – o lugar vibra equilíbrio, e nossa mente serenou. Havia uma celebração no templo que ficava na parte alta do terreno, e lá debaixo, onde chegamos, à beira de um lago, ouvíamos os cânticos. conhecemos todo o lugar e por último voltamos à beira do lago, circundado por uma matinha fresca com grandes pedras para sentar. lá fizemos um piquenique.

esse foi o ponto alto. levamos vários tipos de frutas e, para a nossa surpresa, apareceram macaquinhos por todo lado. ficamos um tempão compartilhando com eles bananas, goiaba e maçãs, rindo de suas macaquices, de suas pequenas mesquinharias (claro que quem pegava a fruta saía correndo pra não dividir). os meninos riam, riam, e nós também. não sei quanto tempo cronológico passamos ali, mas foi a eternidade de quando se equilibra o profundo e o irreverente, o meditativo e o mundano risível. simples. secreto. sagrado. riso compartilhado.

e tudo tinha sido tão bom que resolvemos esticar o passeio e almoçar lá perto.

saímos procurando um lugar sem conhecer muito os arredores. ao ver um restaurante que nos pareceu bacaninha, resolvemos parar. não vou falar o nome porque o fato objetivo pouco importa agora. meu relato é puramente subjetivo e pode não ter nada a ver com o restaurante em si.

porque sim, marte despencou na minha cabeça. aproveitou meu estado de abertura e falou: quer ver uma coisa que vc precisa cortar de vez da sua vida? vou te fazer um desenho, tá? (e assim me empurrou restaurante adentro).

era um lugar bonitinho, feito pra agradar. muitos, muitos garçons e garçonetes descoladamente uniformizados. já foram nos mimando. já foram nos acomodando. sorriam muito. nos ofereceram uma mesa maior do que éramos. já trouxeram comidinhas. literalmente, iscas. iscas de frango.

mordi a isca.

fiquei refém.

olhei o cardápio, já era tarde. rodízio de massas e risotos.

não gosto de rodízios, lugares onde se paga caro pra comer até morrer. atualmente o extremo contrário do que acredito.

os meninos não gostam de massas, nem de risotos.

a gente não tinha nada pra fazer ali, na verdade.

mas as pessoas alegres do lugar não paravam de falar comigo. crianças pequenas não pagam, grandes pagam meia. ofereceram até papinha para o bebê, mas não obrigada, eu tinha levado a que eu mesma fiz, não obrigada, sim, obrigada, eu fiquei ocupada em me defender de tantas solicitações e quando dei por mim, já estava sentada com pratos na frente, bebidas, entradinhas e o escambau.

agora já era, pensei. mas não consegui relaxar. fui ficando cada vez com mais raiva. e de três em três minutos – juro, deve ter sido isso mesmo – aparecia um garçom com um determinado prato oferecendo de uma forma muito, muito animada, overanimada, até competindo entre eles para dizer que “o meu é mais gostoso”, e eu me vi tendo que parar de falar, de comer e até de ser a cada três minutos para dizer um “não, obrigada” e me defender daquele assédio.

mas, minha querida, era um rodízio! não é assim que um rodízio funciona?

não, não é. eles estavam me empanturrando de comida pra conseguirem me expulsar dali o mais rápido possível pra liberar a mesa pros próximos “clientes” cheios de bananas e maçãs.

pelo menos os macacos eram sinceros.

os meninos, é claro, estavam com cara de bunda. eles sentem a falsidade como ninguém. não queriam comer nada, e isso virou quase uma ofensa pessoal pros garçons competidores, que não se conformavam em não terem seu espetáculo aplaudido. aí um deles teve uma idéia genial: perguntou se eles gostavam de batata frita, eles disseram que sim, e disse que iria trazer uma quase batata frita: inhoque.

claro, inhoque e batata frita são praticamente a mesma coisa.

não, não se pode enganar uma criança. isso é crime.

não, não posso mais enganar a minha criança. não dá pra comer uma coisa pela outra, e dizer que tudo bem, tudo é feito de batata.

minha criança não aguenta mais tanta mentira. não aguenta mais ter que fazer cara de paisagem e deixar pra depois o que gostaria de fazer, ou comer, ou viver, naquele instante. não aguenta mais se submeter à demanda alheia, que traz uma porcaria de bandeja de forma tão animada que você fica constrangido em dizer “não, não quero comer essa coisa. isso não me alimenta.”

e eu, sentindo aquela violência toda, doida praquela tortura acabar e poder ir embora, mas aguentando até o fim, e tudo por que?

porque, ao morder a isca, não consegui simplesmente ir embora.

fiquei me sentindo responsável. uma responsabilidade CDF cretina. um exemplo de bom comportamento de merda nenhuma.

e a porra do inhoque também não descia pela minha garganta.

não sei se por piedade divina ou se pelo horror da minha cara, uma garçonete “conseguiu” nos trazer, depois, uma batata frita de fato. um prêmio de consolação, liberdade condicional, medalhinha de honra ao mérito, bônus pra quem tirou nota 10 e estava suportando bravamente o sacrifício de apoiar a mentira coletiva.

e no fim, claro, pagamos o preço. um preço bem alto por não conseguir chutar o pau da barraca, por ceder aos mimos e às iscas e às demandas de outros, da sociedade de consumo, do espetáculo e bla bla bla. zzzzzzzzz.

almoço indigerível, graças aos céus. graças à ira de Marte, que coloca um basta no que tem que morrer. ou no que já está morto, e ainda carrego por apego, por culpa nem sei do que.

ainda bem que Marte chegou.

ainda bem que os macacos são sinceros

ainda bem que posso fazer macarrão em casa.

ainda bem que aprendi, finalmente, a lição: foda-se.

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