Parto

Mãe e filha estão lado a lado.

A filha está grávida. A mãe, inquieta.

MÃE

Mas você me chamou muito cedo! Podia ter esperado.

FILHA

Você é que não quis esperar! Eu não te chamei, você quis vir sem me perguntar nada!

MÃE

São dez horas de viagem, não ia dar pra vir de repente.

FILHA

Ainda falta.

MÃE

Agora eu sei que falta.

FILHA

Eu te falei pelo telefone!

MÃE

É, mas agora eu tô vendo.

Filha desiste de argumentar.

Tempo

MÃE

É que você sabe, nossa família tem um histórico de…

FILHA

Eu sei.

MÃE

Não tô dizendo que vai acontecer, só que pode acont…

FILHA

Eu não preciso ficar ouvindo isso.

MÃE

Tá, tá. Não tá mais aqui quem falou!

Silêncio.

FILHA

Também não precisa ficar sem falar nada!

Mãe aproxima-se da filha.

MÃE

Como é que ela tá?

FILHA

Tá linda! Mesmo no ultrassom.

MÃE

Você nasceu bem bonitinha.

FILHA

Já dá pra ver as bochechas, acredita? E já tá encaixada, na posição, a parteira falou que…

MÃE

Eu não disse? Vai que essa menina nasce assim, de repente, e você sem ninguém aqui.

FILHA

Eu não sou sozinha!

MÃE

Sem mãe. Sem mãe pra te ajudar.

Tempo.

MÃE

Ainda mais dessa forma que você escolheu de…

FILHA

Fica quieta!

MÃE

Ainda mais desse jeito.

Tempo.

A filha afasta-se da mãe.

MÃE

Eu só quero seu bem.

FILHA

Eu sei.

MÃE

Não sabe. Só vai saber depois.

FILHA

O que você quer que eu faça?

MÃE

Eu quero que você me escute.

FILHA

Não, você quer que eu faça o que você quer que eu faça.

MÃE

Tá vendo? Você não me ouve!

FILHA

Então fala.

MÃE

A nossa família tem um histórico…

FILHA

Não fala!

MÃE

De aborto.

FILHA

Eu disse pra não falar!

MÃE

Eu falo pro seu bem.

FILHA

Isso você já falou. Mil vezes.

MÃE

Por que é sempre tão difícil conversar com você?

Tempo.

Filha senta-se ao lado da mãe.

FILHA

Olha, eu fiz pré-natal direitinho, tá tudo certo, não tem risco, entendeu? E isso aí que você tem medo, quando acontece, é mais no começo da gestação.

MÃE

Sua prima perdeu com oito meses. Completos.

FILHA

Eu desisto.

MÃE

Devia desistir mesmo. Essa loucura de parir em casa… Custa ir pra um hospital?

FILHA

Custa respeitar minhas decisões?

MÃE

Você não sabe o que é isso, perder uma criança. Você não sabe o que é isso. Tô falando pra você se cuidar! Pensar, pensar, pensar! Deixar de ser louca! Irresponsável! Agora você não pode mais ser assim, vai ter uma vida pra cuidar…

FILHA

Eu já entendi. Você veio antes pra tentar me convencer a viver do seu jeito.

MÃE

Você está vendo tudo enviesado!

FILHA

Tá claríssimo agora!

MÃE

Você não pode ficar nervosa!

FILHA

Para de dizer o que eu tenho que fazer!

MÃE

Eu estou falando pro seu bem!

FILHA

Bem? O que é o bem? Se tá falando pro meu bem, me fala, então! O que é o bem pra você? Porque a gente não pode estar falando da mesma coisa!

MÃE

Por que você transforma tudo em uma guerra?

FILHA

Porque onde não tem respeito tem guerra, mãe!

MÃE

Você não pode ficar nervosa! Fica calma!

FILHA

Por quê? Por que eu preciso ficar calma?

MÃE

A nossa família tem um histórico…

A filha levanta-se, exaltada.

MÃE

Eu tenho medo que…

FILHA

Eu sei que tem. Eu cresci nesse mar fofo de medo, nesse conforto de medo, nessa massa disforme de medo misturada com carinho e cuidado. Antes de aprender quem eu era, eu passei a ter medo de coisa que nem sabia. E sabe do que eu tenho mais medo agora? Sabe? De quem tem medo. Porque são essas pessoas, essas, fedendo a paranoia, que são capazes de tudo. São escravas desse terror, e pior, se sentem senhores! Agem como superheróis lutando contra delírios. Delírios! São capazes de qualquer coisa, só pra se livrar desse desespero! Um desespero que não passa. Não veem mais nada, não escutam, não pensam! Só correm, correm, correm, atropelando tudo pela frente, desde que dê segurança.. Eu bebia seu medo junto com leite, mãe. E seu medo foi tanto que o leite secou em um mês! De tanto medo que você tinha que o seu leite faltasse. De que eu faltasse. De que a vida faltasse!

Silêncio.

A mãe levanta-se.

MÃE

Você nunca passou fome!

FILHA

Eu sei.

MÃE

Eu nunca… nunca quis te fazer mal.

FILHA

Desculpa.

Tempo

A mulher-mãe está abalada. A fala da mulher-filha ainda ressoa, trazendo à tona feridas.

MÃE

São… capazes de qualquer coisa… pela segurança.

FILHA

Eu não queria tocar nesse assunto.

MÃE

Ele é tão onipresente que volta. Sempre volta. Sempre, sempre volta.

FILHA

O meu pai…

MÃE

Não fala!

Tempo.

FILHA

Ainda não passou?

MÃE

Não sei.

FILHA

Você foi muito corajosa.

MÃE

Não sei.

FILHA

Mas eu sei.

MÃE

Como você consegue?

FILHA

O que?

MÃE

Não ter medo?

FILHA

Eu também tenho medo.

MÃE

Não parece.

FILHA

A vida protege a gente, mãe.

MÃE

Será?

FILHA

Você sempre me protegeu.

MÃE

Nem sempre.

FILHA

O suficiente. Até demais.

Tempo.

MÃE

Eu só queria… que a nossa família…sobrevivesse.

FILHA

Nossa família vai viver.

Ela já está viva!

Vem aqui, sente ela chutando!

Mulher-mãe aproxima-se da mulher-filha. Senta-se ao lado dela, e coloca a mão na sua barriga.

Ficam assim por um tempo, em silêncio.

Aos poucos, a filha encosta a cabeça no ombro da mãe.

MÃE

Acho que ela vai ser brava que nem você.

FILHA

Ela vai ser o que ela quiser ser.

MÃE

Já escolheu um nome?

FILHA

Ainda não.

MÃE

O nome da sua avó era tão bonito…

FILHA

Esperanza.

MÃE

(carrega no sotaque espanhol)

Esperanza!

FILHA

Fala de novo?

MÃE

Esperanza!

FILHA

Esperanza!

MÃE

Esperanza!

As duas riem.

No meio da risada, a filha emite um som mais agudo, como um grito.

MÃE

O que é que foi? Tá tudo bem?

FILHA

Tá!

Começou mãe! Começou!

FIM

Cena apresentada no Dramamix, Satyrianas, em 13/11/22

Elenco: Pri Maggrih e Michele Cardoso

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