tempos de áries

constelação

 

muita mudança no céu: estrelas mutantes convocam ações.

sistemas solares despencam. sistemas de falsos sóis.

 

o tom da nota é: verdade.

outono pede só essência. fica só o que alimenta.

tirar cascas sérias,

sair das casas velhas,

voltar pro centro, morrer, e só depois florescer.

 

só peço a essas constelações verdadeiras que mandem de lá o sentido.

e a justa ajuda para o reajuste

na medida do meu merecimento

mas no tamanho da minha necessidade.

a grande batalha

A partir de hoje,

no parir de hoje,

limpo minha casa, meus pés, minhas mãos,

minha alma, meu espírito, minha história,

da sua presença.

da sua influência.

da sua EXISTÊNCIA.

 

Não mais te comporto em meu corpo,

não mais te suporto em minhas costas,

nas minhas raízes,

não mais te carrego em minhas dores,

coceiras, ardores.

 

Você, que assombrava minha história há tempos. que habitava em meus pesadelos. que aterrorizava meus caminhos.

 

Hoje te vi, e também te persegui.

te peguei.

te flagrei na sua fragilidade. vi seu verdadeiro tamanho. vi o peso da tua capa, o porquê da tua covardia. vi seu desespero para o qual a resposta é única: a violência.

vi, percebi, quase caí. Mas não me submeti.

dei voz à dignidade que me habita. dei voz à nova forma que em mim fala. dei voz, entre tosses e espasmos, entre um coração doendo, abri caminho entre os espinhos da tendência a ficar ali, sofrendo.

não.

a vida que em mim nasce e renasce teve mais valor. a primavera que perfuma o ar trouxe coragem.

sua covardia não chamou minha submissão, meu desespero;

ao contrário, acordou-me desse lugar. então percebi o poder de escolher outro caminho.

 

Empoderei-me dessa liberdade, indiferente e imune ao seu ódio.

E mudei meu curso.

 

Figura, não sei teu nome. só sei que vagas pela minha vida há tempos, tomando o corpo de seres amados. homens amados.

Conhece,  a partir de agora, teu lugar: nunca mais acima de mim. nunca mais no terror.

 

nunca mais.

 

Cura-te da raiva, do desespero, da covardia. cura-te da compulsão de ferir, como estou me curando do medo de ser transpassada.

Hoje minha voz se fez forte, escudo pra tua lança. não tenho mais ações para você, a não ser deixar esse palco, esvaziar-me desse papel, deixar-te sem réplica.

Mas não faço isso por você. faço pelo novo em mim que vem com os novos ares de final de inverno.

(final do inferno.)

Se quiser, aproveite o vazio de minha nova inexistência na sua vida, pra deixar de ser destruição.

 

Mas do seu caminho, só você sabe, e é problema seu.

assim como do meu, eu sei: eu optei pelo amor.

Lauren e o Diabo na Terra sem sol

Ela, a que vem sangrando

Encontra com ele,

marchando.

Lauren, que tem pés no mangue.

Mas sem raiz, e de caule fraco,

ancora tentáculos ao ar, tentando resgatar alimento.

Agarra, faminta, múltipla de braços, carente de todo o resto.

Ele, inflexível, casca dura, rosto impassível.

Ela pergunta-lhe o nome. Ele nada lhe dá.

Lauren suplica-lhe algo,

e ele percebe que ali há comando.

Então ele fica, liderando seu pequeno exército

de uma só,

e só o que dela resta.

Ela ancora-se ao léu, porque ele não se deixa agarrar.

Mas ele deixa um dedinho no céu,

como uma isca no ar,

 

como bússola macabra

condicionando o andar

 

Lauren joga no chão

migalhas

pra ela mesma catar.

Porque ele

nada lhe dá

e ela

tudo quer pegar.

 

Então…

 

Erram pelo deserto

inferno de ambos,

sem sol.

Arrastam-se pelas paisagens

sem horizonte,

sem mar.

Ela, que não tem futuro

só teme o passado,

é só.

Ele, que queima por dentro

destrói o presente

sem dó.

Eles se grudam, se arrastam,

tal sombras sem dono,

sem luz.

Fundem-se num corpo estranho,

um câncer medonho

de pus.

Pedem, mas de um jeito raro

que um raio os separe

ou parta.

Partem de si dia a dia

e juntos se afogam

na praia.

 

Cuspi Lauren do corpo

enquanto fervia

lamúrias.

Coçava feito uma praga

esfolou meu pé

na luta

Rasgou a minha garganta

queimou-me o rabo

em fúria.

Tentou agarrar-me aos prantos

contando histórias

de fuga

Arrasta consigo o capeta

que a segue mandando

pros quintos.

Erra, diaba de eras

até que consiga

seu ninho.

 

Adeus, Lauren

que um dia você troque o diabo por eros, osíris,

algum outro deus.

E até lá, adeus,

 que esse caminho é seu,

e essa não é minha história.

 

(depois percebi, Lauren

que não poderia te abandonar, tal como um pé que não se desfaz da sombra.

então, joguei sobre você meu sol

e pedi para que te iluminasse)

 

flagrante de Béatrice

Béatrice: olhaí você de novo se achando superior

 

Eu: eu nada!

 

Béatrice: nem vem. engana outro.

 

Eu:tá bom, mas só um pouco, vai…

 

Béatrice: se liga, mina. você tem um metro e meio!

 

Eu: mas tem gente menor.

 

Béatrice: querer ter a última palavra é típico desse estado.

 

Eu: Então quero ver se você é melhor.

 

(…)

 

meu avô era um peixe

Tô meio sumida aqui, porque ando escrevendo uma peça. Mas como tenho boca grande difícil de ficar fechada, vou deixar escapulir um pedaço.

É história inventada, mas doeu pra sair. Rasgou um pedaço junto, mas essa parte rasgada era só apego. Ou era a placenta, que nem nutria mais essa memória.

Mas se doeu, o que nasceu foi verdade.

E assim percebi que a dor do parto é aceitação.

Quando eu tinha mais ou menos uns sete anos, aprendi a nadar. E o que eu mais gostava era de afundar lá no fundo da piscina, ficar lá parado. Gostava de ficar sem peso e sem som no ouvido. O corpo ficava leve. Eu me sentia parecido com um peixe num aquário, mas era bom. Eu me sentia parecido com meu avô, também, porque quando a gente era menor ficava brincando que meu avô era um peixe. Porque ele dormia no sofá com a boca aberta, minha vó mandava ele ir pra cama, mas ele gostava era de ficar no sofá, com a cabeça pendurada. Eu ficava do lado imitando, mas longe da minha mãe, senão ela ficava brava. Depois ele acordava, olhava pra mim em silêncio, fazia um cafuné na minha cabeça e ia cambaleando buscar uma cerveja. Eu imitava ele nisso também, e ele ria. Meu avô falava pouco, porque quando começava a contar alguma coisa, logo esquecia. Aí ele ficava chateado. Um dia eu perguntei pro meu pai porque ele era assim tão quieto e meu pai falou que ele tinha trabalhado muito, e agora tava descansando tudo o que não descansou na vida toda. Parecia que ele vivia num barco à parte do mundo, no meio do rio. Mas eu entendia o meu avô, gostava dele pra caramba. Ele me entendia também. Num dia, a gente tava num barco pescando mesmo num rio, lá em Oriente, eu e meus primos, todo mundo pegava peixe, menos eu. Eu não falei nada porque estava com vergonha, mas meu avô percebeu. Ele sentou do meu lado, e me passou a vara de pescar dele. Falou que aquela vara era encantada, e com ela eu ia pescar. Depois de um minuto, eu pesquei um peixe enorme. Meu avô fez a maior festa, mostrou pra todo mundo. Hoje eu sei que aquele peixe já tava no anzol do meu avô, mas no dia achei mesmo que a vara era mágica. Mágico mesmo foi aquele dia, que eu vi meu avô sorrindo, e percebi, mesmo sem entender, que lá naquele mundo dele a gente estava junto. Ele levava a gente com ele, e de repente por ficar tão quieto, ouvia de lá nossos sonhos. Naquele dia, meu sonho era pegar um peixe. E só meu avô percebeu.

vá (ou assim falou Beatrice)

então feche os olhos.

vá ficando assim, meio sorrindo. livre a roupa que aperta.

vá ficando assim, meio livre

tire o suor do sacrifício. não, nada sacro. balance o sacro, ao invés.

vire de pernas pra cima,

vá ficando assim, meio vermelha.

vá ficando assim, meio vapor na cabeça, meio carne viva.

latejante.

vá ficando assim, mulher sem vergonha.

vá ficando assim, vida sem medo.

como quem pica couve

Vou te falar… não se pode começar a escrever e logo já vem a criatura.

Ela disse que o nome dela é Loren, mas vai ficar igual à Lauren, então pra não confundir – e pra contrariar – vou chamar a persona de Hercília. Com H.

Ela tem todos os cacoetes da escritoura. Só falta morrer ao ver uma máquina de escrever antiga. cria playlists de personagens. escreve com musiquinha de frase puladinha. é engraçadinha (mas sem senso de humor), ou às vezes tão profuuuuunda que é tipo nescau com o triplo de açúcar, e com o tripo de palavras necessárias. Um saco. Mas nunca aprofunda: nem sangra, nem goza.

Resolvi apresentar a Hercília a mim mesma, apesar do medo de ser internada por esquizofrenia. Porque se o Fernando Pessoa pode, eu também posso.

Vai ter dia que talvez ela fale no meu lugar, mas paciência. Demora pra perceber que a bicha apareceu, porque ela é metida a sofisticada e sabe disfarçar. Isso ela faz bem, reconheço.

Aí um amigo uma vez me disse: quer escrever? então escreve como quem pica couve. A Hercília odiou a falta de glamour, mas eu adoro ficar com a mão com cheiro de tempero.

 

a parede debaixo da estante

Hoje ela tentou cruzar os mundos. Deu com a parede.

A mesma parede que havia debaixo da estante do seu quarto, quando criança. Debaixo de uma prateleira branca de três estantes onde pousavam porta-jóias, bichos de pelúcia e pequenos enfeites. A última prateleira ainda ficava alta em relação ao chão, e formava com as bases laterais um perfeito quadrado vazio. Naquele vão, ali embaixo, havia uma promessa. Era um portal perfeito demais para que de lá nada saísse.

Ela bem que esperava que do nada abrisse uma porta, do nada surgissem seres. Morreria de susto, é verdade, mas então não seria mentira aquele lugar que mandava sinais há tanto tempo. Mas com os olhos de sempre, ela não viu, nunca viu, como jamais veria. Sua escola não ensinava ver além.

Agora, novamente, a parede. Foi até lá, esperou, e cadê? Deu com a cara no vazio só vazio. Talvez estivesse já chegando tão perto que o lado de cá tenha mandado exércitos de fadiga, de mentiras, de desilusão. Quem sabe? Ou poderia ser o calor pela falta de chuva, o sentimento de escassez do fluxo…Mas não, tudo desculpa. Esse lugar não é de agora, desse tempo, dessa estação. E se ela não rompesse o torpor, e  os nãos, e não se dignasse a ir até lá e ver, jamais saberia como romper essa casca. Ver onde a parede se formou pela primeira vez.

Ela ia precisar de uma dose de crença para começar. Colheria crença dentro da descrença?

Talvez no pico de desilusão tivesse semente de outro lugar. Não é do auge de alguma coisa que outra brota?

 

Chiara Fersini2

crônicas da bússola azul – segunda viagem ao sul

e a mulher girou e novamente caiu no descampado celeste. era noite, e havia ainda o fogo. e havia ainda a menina.

e ela lhe apontou as estrelas.

eram muitas.

e disse que era bom esperar. era uma espera preenchida.

então a mulher viu  que era ela, e não a menina, quem havia se perdido. que a imagem desolada do primeiro encontro era pura projeção da parte crescida.

e como quem diz que é verdadeiro seu mundo, ela a levou a sua aldeia. um lugar de casas entre clareiras, onde muitas outras crianças brincavam. um lugar entre as árvores, que certa vez, a mulher lembrou, há muito tempo, havia desenhado – numa tarefa de escola, cujo título era “minha cidade”.

sua cidade era de casas entre árvores, abaixo e no alto dos galhos, casas conectadas por passarelas douradas, por onde se desliza como por anéis de saturno. sua cidade era tecida em espirais, hexágono de colméia, forjada por tecnologia da mata, de mensagens telepáticas, de crianças voadoras, e pequenas luzes amarelas, e pequenas fogueiras, e muitos sorrisos.

então ambas deitaram abraçadas debaixo do céu de estrelas. e a mulher ficou pensando se algum dia, há muitos anos, alguma vez sentiu um abraço de mãe que não era a sua. abraço do seu próprio braço, anos mais tarde, num lugar onde os anos não existiam.