MATRIX E A PÍLULA ROXA

 

Era uma tarde como outra qualquer, em que eu me movia entre consultorias literárias e refletia sobre o roubo das narrativas. Esperava o ônibus para ir ao próximo encontro literário, enquanto pastoreava pensamentos. O foco da minha revolta era o final da série Game of Thrones, um sequestro da história original – que também seguia rumos originais – que fora completamente distorcida pela indústria. Especialmente as personagens femininas.
 
Era essa minha briga da semana. Eu, escritora, revoltada com a manipulação da saga, das personagens, de toda a audiência. Eu bem sei o quanto custa escutar e pescar uma história verdadeira de dentro de si, daquelas que te obrigam a romper os próprios preconceitos. Ver todo um trabalho sério ser conduzido a um filme Disney da pior qualidade foi sofrido.
 
Com esse discurso debaixo do braço, aguardava o ônibus. Estava cansada, o dia havia começado cedo e já estava há doze horas na ativa. Por isso, quando o vulto aproximou-se de mim com clara intenção de contato, nem olhei. Só disse, cortante, para que me deixasse em paz:
 
– Não tenho dinheiro.
 
Mentira.
Qualquer outro dia seria verdade. Não carrego mais notas. Mas nesse dia eu tinha, e bastante, tudo com endereço certo, boleto específico, mas o fato é que eu tinha. E não estava disposta a dar.
 
Já estava esperando a réplica óbvia, mas não foi o que eu recebi.
 
– Você não está me escutando, moça. Eu não estou te pedindo nada. Por favor, não coloque palavras na minha boca.
 
Se é uma coisa que me deixa feliz é uma linha de diálogo que foge do óbvio. Seja quem fosse aquela pessoa, me conquistou pela dramaturgia. Pelo menos a cena seria outra.
 
Olhei, finalmente, para o vulto.
Era um homem velho. Velho e musculoso, portando uma bengala em uma das mãos e uma caixa de balas na outra. Falava meio enrolado, com dificuldades motoras (teria sofrido um derrame?), o que tornava tudo mais lento. Pedi desculpas pela grosseria, ainda disposta a acabar logo com aquilo e pegar meu ônibus. Mas algo me deteu.
 
Não sei ainda o que foi. Talvez o fato dele ter me olhado nos olhos, e ter qualquer coisa de vivo ali. Mais vivo do que qualquer outra pessoa navegando em black mirror. Ao cruzar meu olhar semi vivo e cansado, ele se encorajou a contar sua história. Lentamente. Com um ônibus atrás do outro passando, com meu horário encurtando, e com algo me fazendo ficar ali, com os pés no chão, ouvindo.
 
Mostrou suas marcas, de quando era morador de rua. Mostrou os músculos que ganhou quando superou a rua. Falou da filha, de onze anos e onze meses, que era o motivo pelo qual ele estava ali. Trabalhando. Nessa hora, voltou a me repreender:
 
– Você colocou palavras na minha boca. Você me diminuiu. Me desculpe, mas eu não podia deixar você fazer isso.
 
É claro que não. O quanto lhe custou construir essa dignidade do nada absoluto?
 
“Não coloque palavras na minha boca”.
 
Como fiz isso? Através do diálogo. Minha linha dedicada a ele foi a história óbvia: você é um impertinente que quer algo de mim, e eu não tenho nada para te dar. Caso ele entrasse nesse drama pobre e requentado que eu estava lhe propondo, a ele só caberia duas falas: Se desculpar ou insistir. Ao se recusar a viver essa história, ele me liberou desse martírio social.
 
“Não coloque palavras na minha boca. Não me diminua”.
 
(Não faça comigo o que você odiou que os roteiristas de GOT fizeram com sua seriezinha de estimação, moça.)
 
O mais louco é que ele falava tudo isso sem violência. Sem ressentimento. Era quase paternal. Inclusive me disse:
 
– Você foi malcriada comigo, mas depois me escutou e eu vi que você é uma pessoa boa.
E pediu desculpas.
 
Pelo que ele se desculpava? – me perguntei. Por ter me atravessado a ponto de ver minha maior fraqueza e me jogar na cara – me respondi.
 
Eu, roteirista, dramaturga, escritora. Sempre colocando palavras na boca dos outros. Sempre no controle da narrativa. E agora, o que faço com essa sombra? Meu ofício é também meu tormento. É possível abrir mão de estar todo o tempo escrevendo, com a pretensão de saber o que irá acontecer, linha por linha? Com a pressão de escrever todos os diálogos, moldar todas as personagens, dar nomes, falas, ações???
 
Na vida?
Nem no papel.
Caí no chão. Fui pega na minha maior mentira. E com uma frase:
“Não me diminua”
 
Mas havia a conexão. Havia uma estranha gratidão no ar. Ele me deu um drops. Eu quase recusei, esse é seu trabalho, tem certeza?, mas ele quis me dar mesmo assim. Isso me fez pensar que também devo ter dado algo a ele. Talvez minha vulnerabilidade. Porque, ao contar sua própria história, ainda que fosse tão mentirosa quanto minha falta de dinheiro, ele chorou. E eu também. Não por pena. Mas por compartilhar com ele esse cansaço de uma vida fadada a viver papéis tão pequenos. Nós, expressões da divindade, que podemos ser o que quisermos ser, condicionados à mediocridade. Essa conversa nos libertava disso. Ali, naquela pequena zona autônoma temporária, instauramos o tempo da poesia. Ainda que fingida, forjada. É necessário esforço para sucumbir à grande narrativa imposta.
Ali, cocriamos algo novo. Quase perguntei a ele o nome da sua filha, só para ver se era invenção. Mas algo em mim que não se importava com nada daquilo tomou a frente da minha fala. O nome que perguntei foi o dele.
 
– Miguel – ele disse.
– O meu é Claudia.
 
Finalizamos aquela cena com um abraço. Como uma celebração daquelas verdades encobertas por mentiras. A verdade que compartilhamos: estamos fartos das mesmas histórias. Só queremos contato, ouvir, sermos ouvidos. E que ninguém nos roube nosso nome, nossas falas, nossa dignidade, impondo sobre o grandioso que somos uma história pobre e fadada ao sofrimento.
 
Depois me despedi, carregando em meu corpo seu perfume barato. Seu nome reverberando, logo esse, no ano de São Miguel. E seu andar claudicante, como meu próprio nome.

Marielle presente em verde rosa e purpurina

Esse é só o começo.

Não se detém, de forma alguma, o que está no cerne de uma nação.
Em 2018, no auge do meu desalento, eu pensei: “Como as forças dessa terra permitiram isso? Tanto ódio, tanta injustiça?”

Difícil lidar com tanto, partindo da ignorância de quem vive a vida em tempo linear, segundo após segundo, ao rés do chão. Mas em suave perspectiva histórica, poucos meses depois, a despeito de gritos despeitados, a semente não apenas brotou. Rompeu o solo com tudo e desabrochou na maior ópera a céu aberto do planeta.

Eis nossa resistência: o grito forjado na festa. No passo do corpo livre, ao som de tambores, mexendo com tudo, deixando de lado todo moralismo que nunca foi nosso: veio importado em pele extrativista.

Pois bem, bem-vida seja a nossa cura. Pois se as sombras todas também saíram em desfile, é tempo de cuidar. E harmonia, como uma escola de samba bem sabe, não um exército marchando uníssono no medo e na violência covarde. É diversidade que dança junto, cada qual a seu passo, movida pelo sentido de alegria e beleza.

Valeu, Mangueira, por ter me lavado a alma!

 

Performers hold flags with an image of slain councilwoman Marielle Franco during the perform of the Mangueira samba school during Carnival celebrations at the Sambadrome in Rio de Janeiro, Brazil, Tuesday, March 5, 2019. (AP Photo/Silvia Izquierdo)

 

 

 

14

 

 

 

 

Deslizando lentamente
Nessa superfície macia,
afago
essa rota antes preta, carvão.

A fricção, desfiada no tempo,
gera fogo,
forja,
nos anos a fio.

14

Para cada ano firmado,
A transmutação das veredas finas,
afago
agora rios vertendo prata.
Testemunhando a linda dança
das cores
da inevitável espiral dos dias.
na indomável espiral que te coroa.

14
longas voltas
línguas
novas inventadas, renomeando lugares repassados em outros estranhamentos
reinventando o que é fixo, para que entre ar nas estruturas prontas
rememorando o que é móvel, curando, curando, curando…

14.
E cá estamos.
Desde que, de lá, firmamos
Num rito mágico
Primeiro entre montanhas, depois entre linhagens,
O sentido dessa travessia compartilhada

14 voltas espiraladas
vendo passar, na ponta dos dedos que afagam
as cores cambiantes
alternando, na ponta do carbono-grafite
do lápis
o denso das contas mensais
vincando o traçado
(imaginário)
(nas pontas dos dedos que amam)
no seu corpo,
ligando pontinhos espalhados, ora pretos, ora vermelhos,
organizando constelações.

Preto carbono forja tempo
Amor em balão alquímico
(matrimônio)
transmutando a forma das estruturas
dançando
a busca incessante
do carbono-diamante.

quase um ano.

– O Dr Alfredo não vem mais aqui?
 
A gente nunca sabe que frase vai abrir a comporta.
De frente para a barraca da feira, aquela pergunta parou o tempo. Depois descongelou e eu respondi.
 
– Ele faleceu. Já vai fazer um ano.
(nossa, já vai fazer um ano em março…)
 
Sempre uma situação difícil: quem pergunta nunca espera uma resposta dessas. Mas ele apontou para o filho, que o ajudava na barraca.
 
– Uma vez ele tratou do meu menino. Ele ficou bom mesmo.
 
Era isso que meu pai fazia. Deixava as pessoas boas mesmo.
Agradeci àquele homem por lhe trazer a memória, e por me fazer perceber que o nó na garganta que venho sentindo não é só sobre o desgoverno, não é só sobre a enxurrada de lama que cobriu o país em 2018 que se fez matéria viva em 2019 (em mais um desastre), não é só sobre ameaças de morte atiradas sobre militâncias que lutam pelos direitos óbvios, ou pela extorsão de terras indígenas, ou por…
 
Não é só.
(Como se fosse pouco.)
 
É ausência. É ainda luto. E foi tanta coisa pra enlutar no último ano que não tive muito espaço para sentir que esse era um grande vazio.
 
Mas um vazio preenchido.
Porque a presença dele, no meio daquelas barracas, se fez forte. Quase ouvi sua risada, e um comentário seu com o sotaque mineiro que eu também carregava, mas agora nem tanto.
 
Feita a feira, pai, sentei numa mesinha de plástico para esperar a mãe comer o pastel inteiro, aquele de sempre que encerra as compras, aquele mesmo que vocês dividiam. Essa manhã estava fresca, um oásis nesses dias quentes, e enquanto lembrava de você sem resistir à comoção, a ventania era forte, arrepiava tudo. Desviei a cadeira para evitar o golpe nas costas, coisa que você sempre recomendava. Senti o vento de frente, batendo no peito.
 
Eu acho que te dei um abraço.

solutio

amigues, sinto que estou morrendo.
nada sério. vou ali dissolver e já volto.
porque nada nada nada que até então me sustentava existe mais.
aproveito esse momento entresonhos, em que minhas culpas ou meus pensamentos obsessivos deram uma trégua, para dizer: é quase um alívio.
 
abri mão do controle da narrativa.
(vejam só, para uma escritora isso é bem mais que morrer)
 
aceito, com tremor entre os dentes, que só me cabe cuidar. das pessoas próximas, de mim mesma, de quem conseguir.
e ser cuidada também. porque somos troca.
 
talvez o único que eu tente levar comigo nessa travessia (e terei que abrir mão na passagem final) seja um desejo de que tudo isso tenha um sentido, e que a humanidade caminhe para um outro patamar
(espero, não às custa de tanto do nosso sangue.)
(ofereço aquele que sai de mim todo mês pela causa, mas ainda é pouco)
 
só sei que cansei de sofrer.
mesmo com tanta dificuldade de confiar, sinto que não há outra saída: apenas morro.
desaguo, entrego, desfio minhas certezas.
e também minhas p a l a v r

um voo para as estrelas

Já conto alguns meses desde que ele atravessou a ponte.

Desde então, com toda correria malabarística do dessassossego contemporâneo, tenho vivido esse luto às prestações.

Uma coisa é clara: esses seres queridos passam a viver dentro da gente, em algum espaço profundo. Sua voz se faz clara. Sua presença, constante.

No dia de sua partida, eis aqui a história:

 

Minha fala ainda está engasgada.
Minha escrita não dá conta.
Só consigo agradecer. Inclusive o último presente que você me deu: me enviar um recado que precisava conversar.
Fui pra varanda, aquele lugar entre intermediário: nem aqui nem lá.
Fumei o cachimbo que foi da vovó, depois seu, e que você me deu.

Conversamos longamente. Eu confiei que você estaria me escutando. No começo não sabia nem por onde começar, mas depois da primeira palavra, o resto escorreu como uma cachoeira:

“Não sei o que te falar, pai. Nunca passei por isso. Mas se for como nos partos, posso dizer: tem aquela hora que a gente se entrega pro nada, se joga e confia. Ali você não cai no vazio. É o colo da mãe que te recebe. Deve ser parecido na hora que a gente faz a passagem”.

Lembrei dos nossos grandes momentos. Do som do seu sapato batendo na pedra enquanto andávamos de mãos dadas, minha primeira memória de caminhar ao seu lado. Do dia em que você disse que queria conhecer as estrelas numa nave espacial, e eu chorei tanto, tanto, com medo que você fosse embora. Hoje digo àquela menina: “o dia em que isso acontecer, pequena, será tão bonito! Não haverá medo, só amor e conexão. Sim, ficará a saudade, uma grande saudade, mas misturada com a certeza de que não estamos sós nos infinitos mundos.”

Nessa conversa, narrei a história-síntese da nossa vida. Te falei que ficaríamos bem, e recordei a você todo o amor que você deixou plantado, seja como um médico maravilhoso, como um pai tão protetor que às vezes eu protestava, ou como um homem capaz de grandes atos de entrega pela minha mãe (o que vocês atravessaram é um imenso exemplo pra mim).

Te agradeci por ter vivido com intensidade e inteireza tudo, por ter sido tão humano, tão verdadeiro em todas as suas escolhas. Muitas delas só entendi agora, nesse último mês no hospital, que pareceu um século. Nesse campo, seu local de trabalho por tantos e tantos anos, onde você salvou tantas vidas, uma grande cura aconteceu: o tempo se dilatou para que nossa família inteira e amigos próximos tivéssemos um aprendizado profundo.

Bateu um vento na varanda, senti que você me escutava. Te vi embarcando radiante, acenei com um gesto de entrega. Depois fui jantar com o Djair e os meninos, ainda entre os mundos. Finalizada a refeição, o telefone tocou. Eu já sabia. A notícia apenas confirmou meu presente: saber que você partiu sincronicamente ao som da nossa conversa. Esse foi meu grande sacramento.

Você, pai, que foi o grande contador de histórias, para quem eu fingia que só comeria ao escutar uma delas (e com toda paciência do mundo, me contava). Histórias e medicina se misturavam na sua essência, e eu herdei esse segredo. Você me iniciou nessa vida, e encerrou sua existência terrena me dando um diploma, e mais um aprendizado. Depois disso tudo, impossível não acreditar em um destino maior, em uma vida que segue além do espaço e tempo, e nessas conexões profundas que nunca irão se deter quando o espírito deixa o corpo e segue seu destino luminoso.

Estaremos aqui, continuando seu legado de amor e integridade.
Obrigada, pai.
Um lindo voo para as estrelas, para a luz que seu espírito merece.
Te amo, hoje e sempre. 

Meu inverno é fluxo. Minha paz é vermelha.

 
30 dias já. Nada dela chegar.
Isso é terrível. Essa suspensão, sob um céu cinza, trovejante.
Tempestade que ameaça, mas nada de água.
 
Às portas da tenda, aguardo a autorização para o repouso. Tenho me dado esse suspiro: pelo menos, um certo recolhimento. Aquele, para a refazenda.
(ai, abacate do Gil, fruta-fêmea que se escuta e respeita).
 
Mas nada.
Não é gravidez, fiz até o teste. Nada excepcional.
Apenas espera.
 
O fluxo, antes, era reduzido. De 28 pra 25. Três dias apenas na conta da diferença, até passei em consulta pra ver se tudo bem ficar assim, “desregulada” e tal – contudo, em segredo, gostava dessa estação adiantada. O resguardo virou luxo em tempos de tanto barulho. Essa era minha pequena subversão: adiantar-me à lua. Experimentava o fluxo ora na cheia, ora minguante, nova ou crescente, esse pequeno delay me fazia caminhante pelas fases, vivendo o descanso em cada uma delas.
 
Agora, tudo parou.
Aguardo, estática, a chegada da quarta estação. Anseio por ela, que para mim não é fria.
É silêncio.
 
Mas nada.
 
Quem me avisa?
“Não farei mais por você, ó mente inquieta, a tarefa de apaziguar tremores.”
Avisa a mim ou o que penso ser, identificada com o pensamento que já voa além do calendário gregoriano?
 
Corpo, taurino que é por essência, empacou.
A cabeça do touro, forma-útero, então me falou por dentro, por baixo, do centro:
 
“Se eu sou você, então venha aqui me escutar. Venha e seja, desidentifique-se com a palavra corpo, como algo que se vê sem estar. Corpo é só ser, coisa una. Seja corpo, e deixe a mente ser o outro – até estranho – a que você se refere como coisa fora de si.”
 
Muito confuso – pensou o ser-mente, coisa que penso ser.
 
“Seja, ou não sentirás mais o giro do fuso” – Sentenciou.
 
Sede de vermelho. Sede de fluxo, do descanso do ciclo. Quero noite, quero escuro, quero a caverna que me refaz e acalenta. Quero o colo da mãe, aquele que me embala nesses três/quatro dias de júbilo. Quero sangue.
 
Em mim, o inverno ainda aguarda.
Céus em tempestade.
Nunca senti que seria tão desesperadora a imortalidade.

renamorados

clau&Dja

 

Nos poucos silêncios que nossa vida louca nos oferece,
às vezes contemplo a chuva de prata que se derrama calmamente sobre seus fios escuros.
Como se o tempo não fosse acelerado
Como se a rotina não fosse intensa
Escorre o pra(n)teado pelos anos a fio, lembrando cada uma das tantas travessias.
Desafios mortais, ora em desertos de acidez,
ora em pântanos de desalento.

Eis o conto de fadas da vida adulta: o heroísmo nos mínimos atos cotidianos,
enquanto a aventura grita dentro.

Combatemos feiticeiras, barba-azuis, manipuladoras, assassinos, descrentes da vida, errantes desafortunados,
Combatemos a inconsciência que nos faz refém das vilanias, aquelas que tomam o corpo do ser amoroso.
Mas essas são as provas.
Esses são os percursos que fortalecem, em corrosão, a força do elo.
Por isso sei que te amo. Porque a cada dia, isso é testado. Pelas paisagens interiores, pelo caos do macroambiente, pelas eternas dúvidas que nos chegam da louca década dos nossos 40.

Hoje, meu amor por você é revolucionário.
Porque ele me faz tentar entender sempre, curar padrões, ir além do simplificado e irreal,
além da primeira estampagem que nos finge o romantismo.

Ele nos brinda, espantados,
Como se Romeu e Julieta tivessem renascido após sua primeira morte.

Talvez sim.

Café com anjos

café com anjos

 

Às vésperas dos meus 42, acabo me permitindo uma pausa para o momento presente fora das telas. Surpresa com a terceira (ou quarta?) dimensão, observando a espiral que acompanha o aroma da manhã, agradeço.

Apesar de tantas provações, (tantas mesmo, entre paredes, entre bairros, cidades, fronteiras), vou construindo o espírito nessa forja insana dessa época. Tentando manter o peito aberto, a escrita fluida, buscando a arte acima de tudo (em peças, em livros, em imagens), subvertendo a ordem que aponta o dedo para a distopia, subvertendo a vergonha de ser um fracasso nesse sistema, sobrevivendo à tendência de odiar, dividir, pregar o fim dos tempos.

Essa sou eu, aos meus quase 42, início do sétimo setênio. Essa sou eu, mesclada a tantos e tantas que aprendi a reverenciar. Pois se esses tempos me tiram parte do chão (tudo é líquido, ou até vapor), também me levam ao essencial.

Luto, como sempre lutarei, frente às atrocidades dessa época. Mas não deixo de ver que, com a queda de tantas coisas, também sobe o espírito de comunidade. As tantas redes solidárias que se formam na necessidade, e nunca mais se dissolverão.

Nunca precisei de tanta ajuda, e nunca fui tão ajudada.

A começar pelos meus pais, Alfredo e Dadora, que me apoiam desde sempre, e a quem eu tanto amo e admiro. Meus segundos pais, Socorro e Djair, Minhas hermanas Adriana, Denise, Dayse, Flavia, meu querido bro Alfredo (em seu silencioso cuidar), Cecilia e Amanda, acolhendo Chico em seu novo castelo no Espaço Bem Viver, nossa querida comunidade da Escola Waldorf Guayi, terra do coração-semente, Priscilla e Sabine, pelo sonho engendrado nos infinitos mundos, em imagens da Milá. Alessandra, Isabella, Daniela , Cristiano, Daniela, Marco e nossa esperança (ainda) no teatro. Lizandra, primeira parteira dos meus filhos de papel, abrindo uma nova fase da minha vida. Ivana, Roberta, Adriana, pela irmandade compartilhada, e Maria Esther por manter sempre acesa a chama da nossa amizade nas dimensões do espírito. Laura Belo, Felipe Amato, por provarem que o alimento do futuro é possível e acessível, e compartilharem essas informações pro mundo todo.

Não cabe todo mundo aqui. Tantas e tantas mais pessoas ao redor, tanto a agradecer. Filhos, árvores, livros, a casa, agora uma escola sendo contruída tijolo a tijolo, literalmente. O amor sempre renovado com Djair Guilherme. Nossas difíceis e diárias decisões, tantas depois daquela primeira, em que decidimos expandir nossa egrégora de enamorados em uma família. (Vocês vão ter mesmo 3 filhos? Que coragem, hein?!) Nem em sonho poderíamos saber o que nos esperava, e faria tudo de novo, sempre.

Assim como lá fora da janela os dias alternam entre a chuva e o sol, dentro choro e reanimo. As águas amolecem a terra dura da minha taurinice, me mostram a reverência. Levantam meu olhar para além da terra que aro sem parar, me direcionam o foco para um novo horizonte. Sim, há esperança, sempre houve, se ainda existir o afeto.

E o afeto, ainda bem, só cresce. Assim como os primeiros fios brancos, assim como os fios invisíveis que tecem os anjos ao nosso redor.

Gracias a la vida, hoje e sempre.

(escrito em 08/05/17)

 

a mãe que consigo ser

Na velha Raposo (Tavares) de sempre. Gabriel, no carro, narrando um pesadelo.

– A gente estava na escola, brincando. Daí chegou um homem, roubou o brinquedo do Chico (o irmão caçula). Depois, mãe, você ofereceu carona pra ele. Aí quando entramos no carro, e ele jogou a gente pra fora. Roubou a gente.
– E você viu que ele tinha feito tudo isso? Por que não me avisou que o homem era assim?
– Porque eu fiquei sem voz.

E eu, abismada.
Foi um sonho muito forte.
Refleti sobre seu sentimento, essa sensação declarada de que o adulto responsável (no caso, eu), não conseguia identificar o perigo iminente.

“Será que é assim que ele me vê?”- pensei. “Tão distraída, no mundo da lua, a ponto de não conseguir protegê-lo?”

Culpa é um bicho alinhavado à revelia na barra da saia da mãe, né? Jurei em segredo que ia ficar mais atenta, presente, e bla bla bla.

Mas o pesadelo já tinha sido.
(Será que se muda passado?)

Como o conflito é minha matéria prima, propus a ele um jogo: Voltar lá e mudar essa narrativa. Fui fazendo perguntas, e ele foi recontando a história com um “novo final”.

Na primeira sua primeira versão, ele conseguia me avisar do perigo e eu dava uma bronca danada no homem, que saía assustado da escola.
Mas aquilo não me convenceu.

– Acho bom falarmos com esse homem. Você não acha?
– Tá.
– Pergunte por que ele roubou o brinquedo do Chico, pra começar.
(O Gabri ficou quieto, ouvindo de fato a resposta lá de longe, no seu interior.)
– Ele disse que roubou porque ele é ladrão.
– Bom, pergunte por que então. (pausa)
– Porque ele quer.
(Vixi. Como saio dessa?)
– Então pergunte por que ele quer esse brinquedo
(silêncio maior)
– Porque a mãe dele morreu. Ele quer roubar a minha mãe porque ele não tem.
(chegamos a um ponto importante)
– Agora pergunte o nome dele.
(silêncio)
– O que ele disse? – insisti.
– Ele disse que ele não se lembra. Faz tanto tempo que ninguém chama ele pelo nome…
(…)
– Peça para ele tentar se lembrar.
(pausa)
– Ele é xará de um de nós aqui. – respondeu, com suspense.
– Então diga, filho.
– Francisco.
– Ótimo. Agora pergunta pro Francisco se ele quer um abraço.
– Ele disse que quer muito.
– E você? Quer abraçar ele?
– Quero sim.
(pausa para o abraço)
– Tá tudo bem agora? – perguntei.
– Tá sim, mãe. Tá tudo bem.

A essas alturas, já estávamos perto da casa dos pais do Dja, para onde estávamos indo. Mas eu fiquei tão mexida com aquilo tudo que quando me dei conta, tinha entrado em uma rua X, virado numa y, e já não sabia onde estava. Pedi ajuda pro Waze, enquanto ouvia risadas dos meninos. Eles não se conformavam: Como alguém pode se perder num caminho tão cotidiano?

Sim, filhos, essa sou eu. Eu me distraio e me perco muitas vezes, porque vivo no mundo das histórias.
E elas vivem nos sonhos.