Uma hora de palco no teatro do Célia Helena, e mais outra de conversa com Tatiana. É o que tínhamos hoje. O dia seria para fazer as marcações de cena e luz (único ensaio no palco antes da apresentação), e todos os outros diretores que mostrarão suas cenas no dia 21 teriam que se preparar também. O horário estava escalonado, e não poderíamos atrasar.
Estávamos marcados para as 11h. Cheguei um pouco mais cedo com Garbel, e Tatiana e Cris já estavam nos esperando. Minha mente operava em duas velocidades: o tempo externo, absolutamente corrido, porque era claro que não teríamos como cuidar de tudo, e o tempo interno, que estava absolutamente dilatado. Chegando ao interior do teatro, olhando para o palco vazio, um segundo de rapto: lembrei do por que de tudo isso, como um flash da primeira vez, do amor à primeira vista num teatrinho de escola. O grande espaço pintado de preto por um instante me tragou até essa memória, e me lançou, como um túnel, a tantas memórias futuras. Mas logo a Dani chegou, e hoje era tempo de correr e estar presente.
Eu havia passado na 25 de março para comprar algumas coisas que queria testar na cena. O tal lança-confetes de festa e papel crepon para as flores. Enquanto conversávamos, fui fazendo bolinhas de papel amassado para testarmos o efeito cênico, enquanto conversávamos sobre o que seria o ensaio, enquanto falava com o técnico sobre a luz desejada, enquanto pedia um balde de água – para testar o que seria a idéia de se molhar em cena – enquanto marcava a cena com os atores. Enquanto tentava não pensar no quanto que faltava pra cena ficar razoavelmente boa.
Enquanto Jeferson, o técnico de luz, montava os refletores, passei com os atores um esboço de marcação. Nunca havíamos feito o recorte corrido, com todas as cenas juntas. Garbel deu uma idéia interessante para as transições: ele e Cris correndo em círculos separados, um horário e outro anti-horário, dando a idéia de desencontro entre os personagens, porém evitando um realismo desnecessário (efeito mais fácil de fazer que explicar). Como eles ainda não tinham o texto totalmente seguro, optamos por ainda ter o papel em mãos, para a cena do balcão. E depois de tudo mais ou menos combinado, começamos.
As “flores de papel” deram um efeito inesperadamente bom, mesmo sendo, ainda, bolinhas de papel amassado. A idéia de preparação do espaço pelos atores ficou interessante, porém longa. É incrível como há uma medida certa para o tempo ritual. Ou se estabelece ou não, e ver somente a forma do ritual ao invés de termos a verdadeira atmosfera torna tudo muito lento. Claro que era uma primeira vez, portanto foi tudo muito técnico, mas já deu para perceber que o tempo não poderia ser aquele. O tempo de Romeu e Julieta é rápido, não há tempo, nunca há tempo. Ou esse era meu tempo?
Dali passaram à cena do baile. Também está clara a necessidade de fechar uma partitura, porque ainda há altos e baixos. Tatiana sentou ao meu lado e ia fazendo comentários. No início da fala de Romeu, ela achou que estava tudo muito intimista, como se nós, espectadores, não participássemos do momento. Quando Cris abriu a cena para o público, melhorou bastante. Fica evidente, pelo menos nesse processo, que os maiores desafios do texto estão exatamente nos solilóquios. Ancorar o olhar em direção à platéia ajuda a ter algum interlocutor, do contrário o personagem literalmente flutua, perde o lastro das ações, e as palavras ficam cheias de ar, perdendo sua consistência. Ao chegarem no momento do soneto, melhorou um pouco. A marcação que já havíamos conseguido para a cena se perdeu um pouco no novo espaço, mas eles descobriram um cantinho ao fundo do palco que foi essencial para a intimidade do beijo.
Na entrada de Mercúcio, o efeito do estouro do lança-confetes foi muito bom, apesar de ter sido em um momento anterior ao ideal. O barulho foi maior do que eu imaginava, e deu exatamente o efeito desejado: uma entrada brusca, violenta, como um tiro. Em contraste, o tubo liberou uma chuva de estrelas prateadas, que caíram lentamente sobre o palco, e deixaram o espaço forrado delas. A princípio, minha idéia era comprar uma chuva de corações laminados (para que o espaço fosse sendo gradualmente pintado de vermelho), mas como apenas encontrei essa opção de prata, resolvi levar só para testar o efeito da explosão. Felizmente, porque pude ver o resultado dessa nova possibilidade, o céu espelhado no chão. O que é, exatamente, o clima da próxima cena: como se os céus pudessem, por um instante, coexistir na densidade.
Sobre o texto de Mercúcio, Tatiana também fez alguns comentários. Segundo o que combinamos, Garbel falou o texto para a direção que Cristiano havia saído. Mas vendo o resultado, essa opção gerou um efeito bem estranho, pois o ator estava bem em frente à platéia, sozinho em cena, porém olhando para o lado. Se fosse apenas um problema ajuste da direção de olhar, eu poderia pedir para que Romeu saísse pela platéia, fazendo com que Mercúcio se voltasse para a frente. Mas além desse problema, Tatiana observou que ao olhar em direção ao personagem recém-saído, parecia que ele já se referia àquele Romeu que vimos, ao Romeu que já havia se encontrado com Julieta, quando na verdade Mercúcio ainda não sabe desse encontro, não sabe onde está Romeu, sabe bem menos que nós, espectadores. Se a intenção do olhar não for direcionada a um ponto referente ao personagem, ao invés disso, tiver a intenção de uma procura, o efeito muda. E Mercúcio ganha uma fragilidade interessante, pelo simples fato de sabermos mais do que ele.
Assim, corrigidas a direção e a intenção do olhar, o código preciso se estabeleceu. Então a questão era outra: a intenção da fala. Ainda falta imprimir o deboche, especialmente quando o personagem evoca Rosalina (que pensa ser, ainda, o objeto de desejo de Romeu), nessa fala:
Vês? Nem me ouve, nem dá sinal de vida.
Só se o diabo morreu, vou ter que apelar.
Pelos olhos brilhantes de Rosalina, eu te invoco!
Por tua fronte elevada, lábios vermelhos,
seus pequeninos pés e pernas finas, torneadas,
Pelas coxas tremulantes e pelo reino aos arredores,
Apareça do jeito que for!
Ele está escondido ao pé de um pessegueiro
pensando em fusões com aquela fruta de formato
que faz as mocinhas rirem escondidas.
Ó Romeu! Se ela fosse, se ela fosse um pêssego rachado
e tu, uma pêra pontuda!
O texto, claramente provocador, ainda padece de um certo lirismo, que é até interessante de ver na evocação da rainha Mab (na cena anterior ao baile), mas que não pode existir nesse momento. O objetivo dessa cena no texto – e nesse recorte cênico – é apresentar o contraste entre as diferentes formas de “amor” presentes na dramaturgia: o puramente romântico-idealizado de Romeu por Rosalina, o erótico/sagrado/carnal/sublime de Romeu e Julieta, e o erótico/banalizado/pêssego-pêra de Mercúcio. Ao menor sinal de lirismo, o sarcasmo se esvai, e a cena perde o efeito desejado. Ajustes ainda necessários, especialmente para um ator que nos últimos anos vem transitando entre Drummond e Guimarães Rosa, e atualmente orbita o universo de Hamlet.
Percebi, então, que esse trabalho de encontrar a energia correta, vibrar exatamente na frequência do personagem, não acontece da noite para o dia. E não importa se o objetivo seja montar uma cena ou a peça inteira – o trabalho é o mesmo. E assim como ainda buscamos Mercúcio, também buscamos Romeu, especialmente o Romeu desse momento. Diferente de Mercúcio, que não sofre muitas transformações ao longo da história, Romeu e Julieta atravessam os ácidos alquímicos, e a partir do amadurecimento disparado pelo momento do encontro – expresso também nas diferenças poéticas do texto – a cada cena são pessoas diferentes. Assim, se no baile vivem o êxtase do amor verdadeiro e encarnado, se no baile vivem o instante do encontro absoluto, do desejo recíproco e sem barreiras e da alma em festa, mesmo que a madrugada no jardim dos Capuletos seja um prolongamento desse estado, ele já está contaminado do perigo, da morte iminente, da tragédia sempre à espreita, porque a festa termina com o conhecimento de seus sobrenomes. Mas como as saídas ainda não estão fechadas, o momento ainda é luminoso.
Isso me dá sempre uma sensação de um Romeu inquieto, ágil, com o corpo em constante fricção, o que não está ainda acontecendo em cena. Novamente, nos deparamos com o problema dos solilóquios:
Silêncio! Que luz é essa agora na janela?
É o oriente! E ela, o sol nascente!
Surge então, formoso sol! E mata a lua invejosa
que desfalece doente e pálida de tristeza
ao ver que sua fiel sacerdotisa
é mais linda que sua face prateada. Deixa então,
de servir a essa deusa ciumenta
e essa veste esverdeada e doente das vestais
que só as dementes vestem, joga fora!
Minha amada, meu amor!
Se ao menos ela soubesse…
Ela fala! Mas não diz nada ainda. O que será?
São os olhos que estão falando! então respondo?
Vou-lhe responder.
Sou muito ousado! Não é pra mim que ela fala!
Duas das estrelas mais brilhantes desse céu
receberam uma tarefa, assim, chamaram seus olhos
para orbitar em seus lugares até que elas retornem
estarão, então, as estrelas em seu rosto
enquanto estão os seus olhos no céu?
o brilho da sua face ofuscaria a luz dos astros
como uma tocha empalidece à luz do dia
e seus olhos, lá de cima,
entornariam à escura noite tanto brilho
que os pássaros acordariam pra cantar
como fazem, todo dia, à luz da aurora.
Ai! Quem me dera ser a luva dessa mão
para poder tocar seu rosto!
Como dizer esse texto sem atropelar as palavras, porém na velocidade necessária, na energia necessária, para que sintamos a força do desejo que não se contém num corpo parado? E como a ação do personagem é aparentemente passiva – observar Julieta da janela – realizá-la com essa intenção não ajuda em nada o ator. Foi o que vi com clareza pela primeira vez. É certo que o ralentar da fala que observo na cena ainda tem suas razões no tempo de lembrar o texto, que ainda não está totalmente firme, mas também sinto que o Romeu que aqui se apresenta já carrega uma melancolia que só seria vista num momento seguinte da peça. Nesse momento do texto, o personagem está tão tomado pelo entusiasmo que possui uma coragem quase alucinada, sobe por muros, diz possuir asas. Tem o corpo energizado, também por seu desejo crescente por Julieta. Então, apesar de só termos mais um ensaio no horizonte, nele certamente será incluída uma partitura nada estática para esse primeiro movimento.
Em relação ao solilóquio de Julieta, está um pouco mais resolvido, porque Dani encontrou um lugar que ajudou o texto a ter, simultaneamente, intimidade e visibilidade. Como uma adolescente que escreve em seu diário, mas sabendo que será visto. Testamos localizar o “balcão” de Julieta em diferentes lugares do teatro, até que encontramos um cantinho ideal, uma pequena elevação na lateral do palco onde ficam cadeiras para a platéia.
Logo que Julieta vê Romeu, ela desce do pequeno balcão e a cena passa a ser no palco. Nesse momento, o texto ganha certa agilidade, especialmente devido à sintonia existente entre Cris e Dani. Apesar da partitura ainda não estar clara, há momentos bem interessantes, alternados com outros em que ainda tenho a impressão de vê-los um pouco perdidos na gestualidade e na movimentação. É clara a necessidade de direção, de parar a cena e ir marcando passo a passo, enxugando e sintetizando o que eles já trouxeram, para que eles fiquem mais confortáveis e não percam a energia já conquistada. Mas como estávamos com o tempo totalmente estourado, tivemos que seguir em frente sem muitas interrupções.
Talvez seja uma boa saída recuperar a partitura da cena do baile com algumas variações. Dentro do que já temos desenhado, um momento muito bonito é quando, nesse momento, eles vão para o chão:
Romeu – Juro, pela lua encantadora
que com suas luzes prateadas
tinge o topo dessas árvores.
Julieta – Não! Não jures pela lua!
Ela tem alma inconstante,
cada mês com um semblante!
Romeu – Pelo que devo jurar?
Julieta – Não jure então!
Ou jura por ti mesmo
querido deus amado,
e te acreditarei.
Romeu – Pois jurarei!
Se o amor sincero desse coração…
Julieta – Pare! Não jures!
Apesar de tua presença ser razão da minha alegria,
eu não posso querer sentir tudo numa noite só
Tanta alegria num encontro tão brusco,
súbito, imprevisto,
qual relâmpago que, mal luz na escuridão,
Se apaga antes que a gente exclame: que clarão!
Ao final desse trecho, eles estão deitados, Julieta de braços abertos, enquanto Romeu a beija. E esse momento, no texto, encerra também um movimento. A partir daí, o acúmulo de desejo é tão grande que ou ele seria interrompido ou levado até sua consumação. Mas como Shakespeare é Shakespeare, é claro que ele nos deixaria em suspensão, até que esse ato seja consumado somente no quase-fim do terceiro ato. Então ele segue assim:
Julieta – Querido, boa noite!
E que o sopro do verão amadureça esse botão de amor
para que ele possa se abrir em linda flor
no nosso futuro encontro.
Boa noite, boa noite!
Ah, que essa doce calma que me enche o coração
encha também a sua alma!
Romeu – Vais deixar-me assim, insatisfeito?
Julieta – Mas que satisfação esperas ainda, essa noite, de mim?
De qualquer maneira, se a fala “que clarão” é o ápice desse acúmulo do desejo, precisamos sentir esse crescente, e para isso ele tem que ser construído anteriormente. O que me deu a idéia de trabalhar de trás pra frente. Então, esse efeito já tem que ser construído durante os solilóquios – como se a fala de cada um fosse uma forma com que evocam, novamente, a presença do outro, e essa presença tingida dessa necessidade dos corpos presentes. No momento em que os dois se encontram e o diálogo se inicia, o movimento se acelera, o que é também indicado pelo ritmo do texto, que soma desejo e perigo, aumentando a carga de erotismo:
Julieta – (…) Romeu! Renuncia o teu nome, que não é parte de ti,
Em troca dele, toma-me a mim, que já sou inteira tua!
Romeu – Aceito! Eu farei o teu desejo
Por ti serei, então, rebatizado.
Não mais serei Romeu, mas sim Amor.
Julieta – Quem és, que vem assim, acobertado,
na noite, desvelar o meu segredo?
Romeu – Não sei mais como devo me chamar
Meu nome, minha querida,
é tão odioso a mim, agora,
por ser nome odioso a ti,
que se o tivesse escrito aqui, o rasgaria.
Julieta – Meus ouvidos nem beberam
cem palavras de tua boca
mas já reconheceram seu tom.
Não és Romeu, e um Montecchio?
Romeu – Nem Romeu nem Montecchio, se os dois te desagradam!
Julieta – Como pudeste vir até aqui? O que vieste fazer?
Como conseguiste entrar?
Os muros do jardim são muito altos pra escalar!
Aqui é tua morte se um parente te encontrar!
Romeu – Pelas asas leves do amor
eu voei sobre esse muro!
Porque o amor não é barrado
pelos duros limites da pedra.
o que o amor deseja e não consegue?
Nenhum parente seu poderá me segurar!
Julieta – Sim, mas se te virem, irão matar!
Romeu – Ai! Mas nos teus olhos tem mais perigo
que em vinte espadas de inimigos.
basta um doce olhar do teu olhar
e ficarei imune a qualquer ódio.
Julieta – Por coisa alguma desse mundo
gostaria que fosses visto aqui!
Romeu – A noite me protege com seu manto
basta que tu me ames
e não me importa quem me veja
Pois prefiro morrer cedo por teu ódio,
do que muito viver sem teu amor
Julieta – Quem foi que te ensinou a vir aqui?
Romeu – Pelo amor, que primeiro encorajou
me deu conselhos e eu lhe emprestei meus olhos
não sou piloto, mas se acaso tu estivesses
na mais longínqua praia do oceano,
eu me lançaria à travessia
só pra esse tesouro encontrar.
O diálogo segue no ritmo até aqui, e o jogo cênico se ancora no texto. A próxima fala de Julieta, contudo, é um momento perigoso. Por ser relativamente longa, caso a partitura não esteja totalmente desenhada de forma a seguir o movimento, pode fazer parar a cena:
Julieta – Tu bem sabes que a máscara da noite
vela o meu rosto, senão verias
o pudor que se pinta em minha face
só de pensar no que eu disse essa noite.
Deveria ter recato, e então negar,
negar cada palavra que eu disse
Mas não me importa. Adeus formalidade!
Tu me amas?
Pois se disseres que sim, eu acredito.
Mas não o jures!
Poderias trair teu juramento. Dizem que Júpiter ri
dos perjúrios de amor. Meigo Romeu,
se me amas, diz, então, sinceramente.
ou se julgas que eu fui fácil demais
eu farei cara de má e direi não;
para que, de novo, me conquistes.
Mas se achas que não fui assim tão fácil
por nada nesse mundo farei isso
Ai Montecchio!
A verdade é que eu estou mesmo perdida!
Louca de amor!
Se parece que estou sendo leviana,
acredite! Serei a mais sincera
que as outras de aparência recatada.
Confesso que seria mais reservada
se tu já não tivesses surpreendido,
escondido,
essa minha paixão já declarada.
Então perdoa.
Não julgues leviana minha entrega a esse amor
que nem a escuridão pôde esconder.
Esse momento de Julieta resume o movimento da personagem ao longo da peça: Apesar de saber as convenções, apesar de ser pressionada por elas, ela se rende à força de seu desejo. Porém não é uma entrega louca, inconsciente, ela se dá pela luz, é uma entrega a algo maior que ela. Tem, portanto, algo de religioso. Julieta é uma sacerdotisa do amor e da luz, como bem observa Romeu no seu solilóquio apaixonado. E essa transformação se dá dentro do próprio texto, como se as próprias palavras por ela faladas tivessem o poder de liberá-la de toda a convenção. Porque, ao fim dessa fala, Julieta está totalmente entregue à força desse sentimento, mas com consciência e manejo suficientes para interrompê-la com um “boa noite”, no momento seguinte.
A questão aqui é: que ações terá Romeu enquanto Julieta vive essa transformação? Da forma como estão fazendo, há momentos preenchidos, mas em geral Romeu está apenas escutando. Isso dá a impressão de uma Julieta mais ativa que Romeu, mas como tudo o que acontece com um é resultado da ação do outro, e vice-versa, de alguma forma a ação de Romeu deve alimentar Julieta para que ela chegue a essa entrega. Portanto, sua ação não pode ser apenas a de “escutar”.
E se no momento seguinte a cena atinge seu ápice erótico, é esse o pulso que deve ser alimentado a partir daqui. Ao ver a cena no palco, tive vontade de ver Romeu beijando o pescoço de Julieta, ou quaisquer outras ações que sugerissem preliminares. Porque apesar de ambos servirem ao Amor, o contato com essa divindade se dá a partir do outro, portanto deve ser disparado pelas ações do outro. Dessa forma, Romeu dá a Julieta a força necessária para que ela supere as convenções, assim como Julieta dá a Romeu a coragem para que ele supere, em si, a sintonia competitiva característica do seu grupo de amigos – em especial, Mercúcio – que, mesclando sexo e violência, não conseguem fazer com que a potência dessa energia vital se eleve – a palavra “coragem”, não coincidentemente tem o mesmo prefixo que “coração”.
Loucura mesmo é perceber tudo isso, querer testar em cena, e saber que só teremos mais um ensaio.
Mas voltando ao teatro, quando a cena chegou ao fim, tivemos que rapidamente deixar o palco para que o próximo grupo pudesse trabalhar. Fomos para o camarim para discutir o que vimos, e ainda com um problema extra, relativo às regras da apresentação: a cena está longa demais. Calculo que tudo esteja levando quase meia hora, e teremos, no máximo, 15 minutos. É claro que ela ainda será enxuta, mas o texto também precisaria de cortes. Então começamos a conversa pensando que trechos seriam possíveis de se descartar.
Apesar dessa decisão ser contrária à minha proposta original – ver o sentido da ação de cada fala na dramaturgia – tive que me render a ela por razões evidentes. Rapidamente pensamos dois trechos que são “retiráveis” sem muito prejuízo à cena (em vermelho):
Julieta – Como pudeste vir até aqui? O que vieste fazer?
Como conseguiste entrar?
Os muros do jardim são muito altos pra escalar!
Aqui é tua morte se um parente te encontrar!
Romeu – Pelas asas leves do amor
eu voei sobre esse muro!
Porque o amor não é barrado
pelos duros limites da pedra.
o que o amor deseja e não consegue?
Nenhum parente seu poderá me segurar!
Julieta – Sim, mas se te virem, irão matar!
Romeu – Ai! Mas nos teus olhos tem mais perigo
que em vinte espadas de inimigos.
basta um doce olhar do teu olhar
e ficarei imune a qualquer ódio.
Julieta – Por coisa alguma desse mundo
gostaria que fosses visto aqui!
Romeu – A noite me protege com seu manto
basta que tu me ames
e não me importa quem me veja
Pois prefiro morrer cedo pelo ódio de quem seja,
do que muito viver sem teu amor
Julieta – Quem foi que te ensinou a vir aqui?
Romeu – Pelo amor, que primeiro encorajou
me deu conselhos e eu lhe emprestei meus olhos
não sou piloto, mas se acaso tu estivesses
na mais longínqua praia do oceano,
eu me lançaria à travessia
só pra esse tesouro encontrar.
Julieta – Tu bem sabes que a máscara da noite
vela o meu rosto, senão verias
o pudor que se pinta em minha face
só de pensar no que eu disse essa noite.(…)
Como esses cortes não seriam suficientes, também resolvemos terminar a cena antes do previsto. E pensamos que um bom momento para isso seria justamente no “boa noite”, logo após “que clarão”. Assim chegamos ao ápice de um movimento, e terminamos com a primeira fala que inicia o último movimento da cena, quando eles se despedem muitas e muitas vezes.
Refletindo sobre o que torna esses trechos “retiráveis”, concluí que sua função é reforçar o lirismo de Romeu. As duas falas são parecidas, e são a tentativa de descrever o próprio Amor que o toma. Elas não movem a ação adiante, ou seja, não afetam diretamente o outro, mas reforçam o estado apaixonado, colaborando para a atmosfera da cena. Como essa atmosfera também pode ser dada com outros códigos além do texto, a cena não sofre grande mutilação em relação a seu movimento dramático.
Não coincidentemente, essas palavras também tinham problemas quando ditas em cena. Percebi, então, que assim como nos solilóquios, nas falas de função lírica se dá o mesmo desafio: como dizer as palavras sem descolar os pés do chão? Em um dado momento do ensaio, Tatiana deu a Cris a instrução de firmar as imagens propostas – se não me engano, justo quando ele falava das estrelas – e isso fez com que ele aterrasse. Eis o grande desafio: firmar o pé dos atores para que a palavra ganhe corpo, ganhe imagens e sentido, e o que voe seja apenas a sua reverberação.
Sobre a ambientação cenográfica, pensamos em já começar com os atores meio molhados, e manter a idéia ritual somente com as flores, e também sendo tudo mais enxuto. Gostei também da chuva de estrelas prateadas, que completou o espaço deixado pelas flores. Talvez eu ainda teste o pó vermelho (ainda queria sujar o figurino em cena), mas do jeito que está já existe uma proposta cênica, e ainda que seja simples, não está distante do que poderia ser numa montagem (talvez eu insistisse nos arames farpados, coisa que agora é impossível). A proposta de figurino que eles levaram me agradou bastante: um vestido fininho para Julieta (com alguns detalhes levemente estampados e prateados), uma bermuda de algodão cru para Romeu (sem camisa) e um Mercúcio meio “Alex-Laranja-Mecânica” com camiseta prateada. Sobre a projeção, acabei desistindo da idéia, porque algumas coisas, para ficarem boas, precisam de maturação. E penso que seria mais um item a ter que manipular no dia, e prefiro dar esse espaço ao trabalho com os atores.
Ao final, depuramos mais algumas coisas. Não falarei mais da falta de tempo, porque esse é um assunto recorrente e já é redundante. No pouco que nos restou, Tatiana reforçou a necessidade de Cris e Dani ocuparem o espaço com a fala (evitando um intimismo psicológico), e concordamos sobre a necessidade de marcar com precisão a partitura cênica, o que será feito no próximo ensaio. Também falou sobre a força do texto, da sua capacidade de, em si, gerar as imagens que movem a cena – talvez, pensei eu, como uma máquina que já funciona sozinha e, se bem articulada, aumentando em sua potência. Para finalizar, entre risos gerais, ela comentou sobre minha timidez em dirigir, porque a cada necessidade de instruir os atores, eu ia até eles, no palco, para falar ao pé do ouvido. Eu achei realmente engraçada essa observação e, obviamente, me deu o que pensar. Falarei sobre isso depois, em outra reflexão.
E muito mais coisas aconteceram, mas de tão concentradas me escaparam à memória. E por estarmos na Liberdade e com fome, fomos juntos almoçar, para celebrar o encontro. E por estarmos em liberdade, foi bom, muito bom, termos mais uma horinha juntos, falando da vida e dos astros, comendo sushis e devorando sonhos.